A decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em março deste ano, de inocentar um homem de 20 anos pelo estupro de uma menina de 12, que resultou em gravidez, sob o argumento de haver união estável entre eles, é demonstrativa de como a violência sexual contra crianças é naturalizada na sociedade brasileira. 

Os dados reforçam como essa realidade faz parte do cotidiano: uma criança é mãe a cada 30 minutos no país. É o que mostra o Estudo Meninas Mães 2023, realizado pela Rede Feminista de Saúde, que traz dados de 2020 e 2021. Nesse período, mais de 17 mil meninas de 10 a 14 anos foram mães anualmente, conforme análise da organização com base nos dados do Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos (Sinasc – Datasus).

A manutenção da gravidez, levada a termo nestes casos, é uma nova violação que se soma ao estupro de vulnerável, ou seja, a essas crianças e adolescentes foi negado o direito ao aborto legal, conforme garante a legislação brasileira, além do direito à infância e outros fundamentais. Casos que chegam ao conhecimento público, como os das meninas do Espírito Santo, Santa Catarina e Piauí não são raros, como apontam os números.

“Falta informação para as escolas, para os profissionais de saúde e, principalmente, para as meninas, que não conhecem seu próprio corpo e as políticas e leis que podem dar-lhes proteção”, afirma, ao Catarinas, Lígia Cardieri, secretária adjunta da Rede Feminista de Saúde.

O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania lançou neste mês a campanha “Quebre o ciclo da violência”, em referência ao 18 de maio, Dia Nacional de Enfrentamento ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. O objetivo é convocar adultos e responsáveis a serem a pessoa em quem as crianças e adolescentes possam confiar para denunciar qualquer tipo de violência sexual.

Em seminário que tratou sobre a temática, Marta Volpi, diretora de Proteção de Crianças e Adolescentes da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ministério, destacou a necessidade de articular ações conjuntas de proteção às crianças.

“Nós somos atores importantíssimos naquele momento difícil da vida da criança, em que ela foi abusada, explorada sexualmente, então é preciso que a gente esteja alinhado, para que esse sofrimento de precisar contar sua versão para vários serviços, seja reduzido a zero. Essa criança já passou por um sofrimento e não precisa passar por outro”, ressaltou.

Entre as ações desenvolvidas pelo Ministério, está o aprimoramento no Disque 100, com o formulário específico para as denúncias contra crianças e adolescentes em razão de violência sexual. Outra iniciativa é o aprimoramento do Sistema de Informação para Infância e Adolescência (Sipia), que será relançado até o fim deste mês. Além disso, estão sendo implementadas Escolas de Conselhos em todo Brasil, que funcionarão como canal oficial de capacitação e formação de conselheiros de direito, conselheiros tutelares e demais atores do sistema de garantia de direitos.

Entramos em contato com o Ministério para questionar quais ações estão sendo adotadas para garantir o acesso ao aborto legal em casos de estupro de vulnerável, mas não obtivemos resposta até o momento.

Para Cardieri, um ponto central que precisa ser implementado é a educação sexual nas escolas. “Precisamos que as escolas trabalhem conhecimento do corpo, para que a própria menina possa identificar essa violência e como se dá uma gravidez. A primeira ação é tentar evitar que esse abuso ocorra”, destaca. 

Meninas mães

A taxa de meninas mães no Brasil em 2021 foi de 0,6% em relação ao total de partos de nascidos vivos. Entre 2019 e 2021, houve uma queda de 0,7% do número de gravidezes infantis, o que representa uma preocupação significativa, porque a tendência de redução de 28% observada na década anterior parece ter diminuído.

Além disso, a queda do número de meninas mães foi identificada somente em grupos específicos.

“A redução vem acontecendo nas regiões que supomos que possuem melhores serviços e redes, além de atingirem, basicamente, as meninas brancas. O porcentual segue maior para as meninas negras”, expõe Lígia Cardieri, secretária adjunta da Rede Feminista de Saúde.

Em 2021, 13 mil meninas negras foram mães, em comparação com 2789 brancas e 963 indígenas. “O estudo mostra como as meninas das regiões mais pobres e negras e indígenas são as que mais tiveram filhos nascidos vivos”, coloca Cardieri.

Meninas negras também foram as maiores vítimas de morte materna. Em 2021, 11 crianças morreram em decorrência da gravidez, sendo que 9 eram negras e duas indígenas. Oito desses óbitos foram registrados na região Nordeste. No Norte e Centro-Oeste, houve uma morte materna em cada uma das regiões.

Casamento e união

Outra questão levantada pelo estudo foi que 16,8% das meninas que foram mães no período eram casadas ou estavam em união estável, mesmo que o Código Civil só permita o casamento a partir dos 16 anos.

“É preocupante o número de meninas unidas, o que significa que houve um acordo, ou porque a cultura permite, ou porque foi uma maneira de mascarar o estupro”, aponta a secretária da Rede Feminista de Saúde.

Cardieri lembra caso que teve repercussão na mídia. Em março, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) anulou a condenação pelo crime de estupro de vulnerável de um homem de 20 anos que engravidou uma menina de 12, por ele ter constituído união estável com a vítima, apesar de não residirem mais juntos no momento do julgamento. “A justiça mesmo ainda é muito permissiva”, afirma a integrante da Rede.

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  • Daniela Valenga

    Jornalista dedicada à promoção da igualdade de gênero para meninas e mulheres. Atuou como Visitante Voluntária no Instit...

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