A antropóloga Simony dos Anjos, 36 anos, se tornou uma voz expoente quando se trata de falar sobre a defesa de pautas feministas e antirracistas dentro do segmento evangélico. Casada e mãe de dois filhos (Bernardo e Nina), ela conta que a experiência da maternidade foi fundamental para que ela se tornasse uma militante pública, assumindo o compromisso de dialogar com mulheres evangélicas, especialmente, mulheres negras, sobre questões como racismo, igualdade de gênero e justiça reprodutiva.

Ela é uma das seis protagonistas de  “FÉministas: evangélicas por um futuro democrático e amoroso”, terceira temporada do podcast “Narrando Utopias” que já está disponível nas plataformas digitais. A produção conta com a parceria do grupo Prosa, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e a colaboração da Rede de Mulheres Negras Evangélicas, da qual Simony é secretária executiva.

“Eu começo a dizer: Olha, existe um gap enorme entre a bancada evangélica e a realidade do chão das igrejas e aí eu começo a entrar nesse diálogo com os movimentos feministas não religiosos, seculares, sobre a importância da gente comunicar feminismo pras mulheres evangélicas”, conta Simony.

Nascida e criada no meio evangélico, em Osasco (São Paulo), Simony destaca que foi o acesso ao ensino superior, a partir de políticas públicas, que lhe possibilitou questionar as violências de gênero que observava em seu cotidiano. Ela congrega na Igreja Presbiteriana Independente do Brasil e atua no campo político progressista, saindo, inclusive, como candidata à deputada federal pelo PSOL nas eleições de 2022. 

Confira a entrevista com Simony dos Anjos: 

Por vezes a igreja realmente não é esse lugar acolhedor que deveria ser. Qual foi a sua principal motivação para ter seguido com as pautas que você defende, ao mesmo tempo em que mantém a fé? 

Em primeiro lugar pra você entender a militância de uma pessoa temos que entender o momento histórico no qual ela vive. No caso, a popularização do feminismo e o acesso ao ensino superior. Mas pessoalmente, a maternidade foi um divisor. Foi a experiência de me tornar mãe de menina que me convocou para esse lugar de uma militância pública, de externar a minha opinião. Afinal, eu preciso melhorar a próxima geração para minha filha.

Ainda mais com tudo que a bancada evangélica fez contra a presidenta Dilma, em 2016. Durante o golpe eu estava grávida de uma menina vendo uma mulher sofrer violência. Tudo isso fez com que eu me tornasse essa militante pública e aí eu fui procurar os coletivos. Entrei no Evangélicas pela Igualdade de Gênero e atualmente me encontro na Rede de Mulheres Negras Evangélicas, onde me identifico com a natureza das angústias e dores de ser uma mulher negra e evangélica. 

O que que é Teologia Feminista? 

A teologia é o estudo da bíblia e o estudo da bíblia em duas perspectivas. De maneira bem resumida, hermenêutica quando você interpreta os textos sagrados e utiliza isso no seu contexto de fé, no teu contexto de vida. E a outra perspectiva é chamada de exegética, que é entender o contexto em que aquele texto foi escrito. A principal questão é que os grandes teólogos que nós conhecemos são todos homens, brancos, eurocentrados, então as interpretações desse texto bíblico, tanto de maneira exegética quanto de maneira hermenêutica, sempre são a partir da vivência do homem.

Muita opressão que é diariamente reafirmada pela religião não é por conta só do texto pura e simples é por conta da interpretação que se faz desse texto.

Essa é uma teologia feita a partir de outras experiências de corpos, de vida e de entendimento de mundo, que é a partir da perspectiva das mulheres. A teologia feminista foi apelidada de teologia da suspeita. A gente suspeita do texto o tempo inteiro.

Então, você vai chegar e vai dizer assim: se estavam mandando essas mulheres ficarem quietas, o que elas estavam dizendo que estavam incomodando? Será que elas estavam denunciando um líder abusador? Será que elas estavam discordando da maneira como a igreja estava sendo organizada? Porque quem escreveu era homem e, muito mais, quem traduziu dos originais para as línguas do vernáculas também foram homens. Então, a teologia feminista é esse entendimento do texto bíblico a partir de experiências diversas. Elizabeth Stanton vai inaugurar, no século 19, essa interpretação da bíblia na perspectiva da mulher. 

Simony, você citou a Elizabeth Stanton e ela criou a primeira Bíblia da Mulher comentada, certo? Atualmente existem várias Bíblias da Mulher, a maioria delas incentivando a submissão. Você pode pontuar as diferenças entre as versões? 

Hoje a gente tem a Sociedade Bíblica do Brasil (SBB) e ela tem critérios muito financeiros para criar bíblias. Se você chegar na SBB e falar “Quero fazer uma bíblia em comemoração ao meu aniversário de 25 anos de casamento” você consegue fazer uma tiragem. E a Bíblia é uma ferramenta de disputa. Quando eu quero disputar essa narrativa da Bíblia, o que eu faço? Eu construo esse instrumento de fé de acordo com o que eu acredito. Então, tem a Bíblia do jovem, da mulher, do papai, do casal, com comentários.

E, de fato, tem uma Bíblia da mulher da SBB em que existem comentários horrorosos sobre a vida da mulher, comentários que reafirmam a submissão da mulher. É um instrumento de religiosos, contemporâneos, para a opressão da mulher. A Bíblia do jovem, por exemplo, tem longas passagens sobre abstinência sexual. Não é à toa que a gente tem hoje um programa chamado “Eu Escolhi Esperar”, reafirmando a abstinência sexual como política pública. Isso tem sido falado dentro das igrejas de maneira contundente.

O que as pessoas precisam entender é que isso é uma possibilidade de interpretação da Bíblia. A gente está numa sociedade patriarcal, numa sociedade em que quem tem poder decide o que será veiculado dentro das igrejas. A gente acaba confundindo a interpretação da Bíblia com a própria Bíblia. 

Um estudo da Sensata descobriu que a ideia de impedir que outros cometam pecado está impulsionando a rejeição das causas ligadas aos direitos humanos, como a LGBTQIA+. Como poderíamos dialogar com essa população evangélica que acredita estar “salvando” as pessoas? Existe outra noção de pecado que pode ser trabalhada?

O que a gente faz na Rede é proporcionar experiências não opressoras com Deus. Falar: “Irmã, será que Deus gosta quando uma mãe expulsa o filho de casa porque ele é LGBTQIA+?”. A gente começou a abordar por esse lado. O que acontece hoje no Brasil é que a gente relaciona pecado com crime. “É pecado ser LGBTQIA+? Então, os LGBTQIA+ não podem se casar”. “É pecado o aborto? Então, a mulher que aborta tem que ser presa”. Entende? A disputa mais importante é dissociar pecado de crime porque a gente criminaliza as pessoas que pecam.

Agora convencer uma pessoa de que pecado não é pecado só vai acontecer quando ela enxergar esse texto bíblico. Essa é a nossa disputa. Fazer com que as pessoas enxerguem no próprio texto bíblico que o que ensinaram sobre o pecado pra elas não se sustenta quando a gente tem uma nova leitura da Bíblia. 

Simony_dos_Anjos_defensora_de_um_cristianismo_libertário_para_as_mulheres_construção_de_diálogos_entre_ fé_política_e_feminismos
Imagem: Correio Paulista. Descrição da imagem. Simony dos Anjos. Mulher negra, de cabelos cacheados escuros, aparece em imagem de perfil em fundo branco. Ela veste blusa preta com o dizeres: quem mandou matar Marielle? Usa batom e lenço vermelhos.

A religião pode ser inclusiva, amorosa, libertária e aberta para o diálogo? Se sim, o que precisa mudar pra que isso aconteça? 

Sim. Inclusive, respondendo ao mote do projeto, eu acho que a nossa narrativa utópica enquanto mulheres feministas, evangélicas, mulheres negras, é construir uma espiritualidade libertária porque a religião tem um lugar poderoso dentro da gente. Um lugar mobilizador, da solidariedade e da humanização. Dentro de todas as contradições do mundo capitalista que nós vivemos, eu acho importante demarcar isso. Em um mundo que desumaniza, explora, um mundo em que você é mais um número, a religião humaniza. Só que uma religião opressora nos mobiliza a não se rebelar contra opressões, como as econômicas. As opressões econômicas são as que mais atravessam as mulheres.

Não podemos esquecer que até o fato de nós termos filhos obrigatoriamente, a maternidade obrigatória, é um fator econômico. A sociedade precisa que pessoas que nasçam para elas sejam exploradas. Se um dia a gente parar de ter filhos, a sociedade acaba. A gente vai chamar de teoria da reprodução. Mas, enfim, entendendo as contradições que estão no campo religioso por conta da opressão eu entendo as potencialidades. Eu entendo, por exemplo, que existe uma rede de solidariedade entre mulheres no território religioso que só é possível porque elas se encontram lá. O espaço religioso também é um espaço de encontro de histórias, de narrativas, de vidas e de acolhimento. 

Qual o futuro que você sonha para o Brasil? O que que você está fazendo hoje pra alcançar esse futuro? 

O futuro que eu sonho pro Brasil é um país que não seja racista, não seja misógino, não seja LGBTQfóbico e que não explore os pobres. E eu entendo que o país que nós temos hoje é assim porque ele foi colonizado, da perspectiva da cultura, explorado da perspectiva da economia, cristianizado da perspectiva da religião, escravizado da perspectiva do racismo e também patriarcalidade da perspectiva de gênero.

E o meu lugar de mulher religiosa, evangélica junto com todas as mulheres negras evangélicas que compõem a Rede e todas as mulheres evangélicas do Brasil que entendem esse processo de colonização cristã, é lutar pelo Estado laico. Lutar por um Estado que não use a religião como maneira de fazer política. Que não se utilize da fé das pessoas para oprimi-las.

A gente nunca experimentou um Estado laico no Brasil. E eu acredito que eu estou construindo junto com as minhas irmãs da Rede uma possibilidade de religião que respeite o Estado laico. Então, a gente se coloca na trincheira da luta para que a constituição seja de fato respeitada e cumprida. Acho que esse é o meu maior sonho, mas nessa caminhada também estamos lutando para que a espiritualidade seja libertadora e que mulheres não tenham seus corpos subjugados a falácias mentirosas e misóginas. 

Este projeto faz parte de Narremos a Utopia, uma iniciativa do Inspiratorio.org para imaginar futuros feministas, interseccionais e inspiradores.

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  • Kelly Ribeiro

    Jornalista e assistente de roteiro, com experiência em cobertura de temas relacionados a cultura, gênero e raça. Pós-gra...

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