O aborto é uma questão bastante polêmica nas culturas ocidentais e, posso dizer, um verdadeiro tabu nas sociedades africanas. São raros os países do nosso continente que avançaram na descriminalização e/ou legalização da prática. A maioria segue negligenciando o assunto e se omitindo diante do fato: as mulheres optam pelo aborto por inúmeras razões e acabam tendo que se sujeitar à clandestinidade, correndo risco de vida e comprometendo sua saúde.

Entender o que ocorre nessas situações é um desafio de amplas dimensões e mudar a realidade é uma tarefa coletiva. Depende todos nós: mulheres, homens, cidadã/ãos comuns e fazedoras/es de políticas públicas. Implica no debate religioso, cultural, político e, acima de tudo, no reconhecimento de direitos. Cada um desses fatores demanda, por si mesmo, uma reflexão particular e muito vem sendo discutido, embora poucos estudos consistentes estejam disponíveis, em função da dificuldade de registro real. Há uma tentativa legítima de se traçar o panorama, mas os dados oficiais apenas expressam o que acontece na superfície das nossas sociedades. Os índices de mortalidade em decorrência das práticas inseguras não são claros, mas sabemos empiricamente que são altos.

Mesmo a prática sendo legalizada em alguns países e, aqui, não me limito ao continente africano, na maioria deles não há políticas públicas instituídas de maneira a garantir o acesso e a assistência necessária para as mulheres e a proteção do seu direito de escolha. Em muitos casos, as leis são restritas às condições de saúde física da mulher e do feto e incluem gravidez estupro, mas não levam em consideração sua saúde mental. Simplesmente não há espaço para se discutir o estado emocional da mulher.

Na Guiné, por exemplo, sabemos que muitas mulheres casadas, já com filhos, acabam recorrendo ao aborto clandestino porque estão fragilizadas por duas gestações consecutivas. Muitas, inclusive, temem a reprovação da comunidade, acreditando que irão tecer comentários negativos sobre a sua vida sexual. Afinal, que mulher é essa que engravida durante o “período de resguardo”?! Há situações em que o marido também é favorável ao aborto, pela mesma razão. Em outras ocasiões, o motivo é a dificuldade para sustentar uma família com muitos filhos. Mas, às vezes, o marido não fica nem sabendo da gravidez e a mulher toma a decisão sozinha e age escondido para não entrar em confronto com o marido.

Foto: reprodução

Na África, a maternidade é uma questão sagrada. Praticamente uma imposição social e cultural sobre o papel da mulher na sociedade. O poder de decisão sobre a reprodução acaba ofuscado pelos valores sociais, em especial na comunidade muçulmana, e o planejamento familiar é visto de forma totalmente negativa. O direito sobre o corpo e a liberdade sexual da mulher são temas tabu e dificilmente conversado em família. As meninas crescem sem informação e quando engravidam na adolescência se sentem desorientadas. Apelam para formas inseguras de aborto, acreditando que vão se livrar do “problema” e, recorrentemente, contraem infecções graves que levam à perda do útero ou até à morte.

O perfil das mulheres que fazem aborto é o que tem de mais comum em nosso país: casadas, com filhos, religiosas e de baixo poder aquisitivo. O controle dessa prática é ineficaz e as mulheres não deixam de abortar, apenas recorrem a pessoas despreparadas e se submetem às condições sanitárias precárias ou quase inexistentes porque não contam com nenhuma alternativa. E, quanto mais pobres, maior o risco. Mas este perfil também é reconhecido em outros países em via de desenvolvimento ou até mesmo em países desenvolvidos (países de capitalismo central). A diferença nos outros países é que são as mulheres negras as que mais frequentemente morrem em decorrência dos abortos clandestinos (de 3 a 4 vezes mais que as mulheres brancas).

Os serviços de saúde na Guiné, principalmente em Conakry, atendem regularmente mulheres que tentaram o aborto por outras vias (o uso das garrafadas é bastante comum, talvez o mais utilizado) e chegam com hemorragias sérias, à beira da morte. Elas aparecem sozinhas ou, no máximo, com alguma amiga-confidente. Uma parte significativa delas engravidou após terem sido sexualmente violentadas e, desamparadas, optam pelo aborto porque não têm condições nem moral, nem emocional, nem social para levar a termo a gestação. E, muito menos, acreditam que receberiam o apoio de suas famílias. Em casos assim, a mulher sequer denuncia o estuprador.

No mundo inteiro, as mulheres vivem sob a proibição ou a restrição do aborto, imposta por uma legislação feita maioritariamente por homens. No nosso continente, isto representa em torno de 93% das mulheres em idade reprodutiva. Por isso, precisamos reconhecer a urgência de implantar políticas públicas mais efetivas na área do planejamento familiar, desvinculando esta demanda das questões religiosas que impedem o avanço do debate. E é fundamental também incluir nos programas de saúde a assistência médica e psicológica às mulheres que optam pelo aborto.

Foto: reprodução

* Versão em português elaborada por Andrea Silveira, autora da biografia da Maimouna Diallo sob o título: “Guinée Fagni: a trajetória de uma mulher africana – a história de todas nós”, que pode ser baixada gratuitamente em PDF e/ou E-Pub.

 

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  • Maimouna Diallo

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