Nada é mais urgente que falar sobre a eleição presidencial neste momento. E é também urgente que nós mulheres tenhamos uma conversa franca sobre tudo o que vivemos e perdemos nos últimos quatro anos e o que está em risco para os próximos quatro (ou mais) se não nos mobilizarmos na luta a favor da democracia e dos direitos humanos, que atingiu um ponto crítico em nosso país. É uma conversa sobre vida e morte, segurança e violência, liberdade e repressão. E que precisa acontecer agora, não dá mais para deixar para depois. Somos 53% do eleitorado brasileiro, temos pouquíssimo tempo e muito trabalho a fazer.

Na tentativa de tornar esse diálogo o mais objetivo possível, optei por trazer na coluna deste mês uma lista breve, destacando alguns pontos do que o governo fez com e para as mulheres nos últimos quatro anos e reflexões sobre o que pode acontecer a partir de 2023. Vejamos:

1.Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos: Em 2019, Damares Alves assumiu o controle de políticas públicas que deveriam atender a uma grande parcela da população, que se encontra em estado de vulnerabilidade histórica como mulheres, crianças, adolescentes, idosos e minorias étnico-raciais. Na contramão de suas atribuições, trabalhou intensamente pela retirada de direitos e aumento da insegurança desses brasileiros, em vez de proteger e garantir que seus direitos humanos fossem respeitados. O foco na manutenção da estrutura familiar tradicional e a defesa fervorosa das chamadas “pautas de costume” foram os grandes marcos da gestão.

2.Fundamentalismo religioso: As atividades do Ministério foram voltadas a promover discursos propagadores de dogmas religiosos fundamentalistas, que são preconceituosos e excludentes, como os carregados na clássica frase “meninos vestem azul e meninas vestem rosa”.

Combativa a respeito de questões como o ensino de linguagem neutra nas escolas, a ministra da mulher concordou silenciosamente com o veto ao uso do termo “violência obstétrica” pelo Ministério da Saúde, em clara tentativa de apagamento de uma violência que é epidêmica e faz das mulheres negras suas maiores vítimas.

Além disso, Damares e o governo Bolsonaro nunca esconderam que priorizam crianças imaginárias que nem nasceram à vida de mulheres e meninas que sofrem violência. Durante todo o mandato, criaram inúmeros obstáculos para o acesso ao aborto legal no país, distribuindo desinformação sobre o assunto e chegando ao absurdo de apresentar um projeto de lei que forneceria uma “bolsa estupro” para que a vítima de violência sexual não optasse pela interrupção da gravidez, que é seu direito.

Em vez de proteger nossas crianças, Damares vazou informações pessoais e movimentou a máquina do Estado para pressionar uma menina de 11 anos, vítima de estupro, a não exercer seu direito legal ao aborto. A perseguição institucional foi tão intensa que, para conseguir realizar o procedimento, a menina precisou viajar para outro estado e passar por uma corrente de extremistas religiosos, que tentavam impedir a entrada dos profissionais de saúde no hospital. Toda essa violência endossada e incentivada pelo Ministério, que tem no combate ao aborto uma das suas bandeiras centrais, mesmo nas hipóteses permitidas por lei.

Quando caso semelhante ocorreu em Santa Catarina e uma juíza removeu uma criança de sua família, forçando-a a manter gestação fruto de estupro de vulnerável, o Presidente, com o apoio do Ministério, em manobra visivelmente eleitoreira, incentivou e ordenou a perseguição das jornalistas que denunciaram o caso e dos profissionais que possibilitaram a realização do aborto legal.

Defesa da família na concepção desse governo não significa garantir a sobrevivência e a dignidade das famílias brasileiras, mas impor e tentar preservar a qualquer custo um modelo idealizado, heteronormativo e patriarcal de família nuclear capitalista, em que o papel social da mulher é servir ao patriarca e dever obediência a ele.

3.Pânico moral: Representantes do governo têm como hábito espalhar mentiras sobre crimes sexuais praticados contra crianças e adolescentes, sem noticiar qualquer atitude concreta tomada em relação a essas denúncias. Na mais recente, Damares Alves fez um relato gravíssimo sobre a existência de vídeos em que crianças da Ilha de Marajó eram vítimas de violência extrema, fazendo acusações e dizendo ter provas sem mencionar nenhuma ação realizada pelo Ministério, sob seu comando à época, para a apuração e erradicação dos supostos fatos. A ministra foi rapidamente desmentida pelo Ministério Público Federal do Pará, que informou não haver recebido nenhuma denúncia sobre tais acontecimentos nos últimos 30 anos.

Num discurso falsário, que usa temores de toda família para mobilizar emoções e manipular o pensamento popular, sem apresentar provas ou tomar providências que façam cessar as supostas violências, agentes do governo causam pânico moral, que acoberta a total ausência de preocupação real com os direitos humanos, das famílias e das mulheres.

4.Misoginia: O mesmo governo que conta mentiras envolvendo erotização e exploração sexual de crianças e adolescentes, vive lançando mão de estratégias para tentar contornar os constantes atos de misoginia do Presidente da República e de seus apoiadores. Tanto que nas últimas semanas, quando o Presidente insinuou que adolescentes venezuelanas de 14 anos estavam se arrumando para “ganhar a vida” e que depois de “pintar um clima” decidiu entrar na casa delas, coube à primeira-dama Michelle Bolsonaro e à ex-ministra, agora eleita senadora, Damares Alves, fazerem o trabalho sujo de pressionar e tentar silenciar familiares e representantes da comunidade para limpar a imagem do “candidato da família”.

Candidato este que em 2019 já dizia que, no Brasil, “quem quiser vir fazer sexo com mulher, fique à vontade”, reverberando discurso difundido na ditadura, de vender uma imagem objetificada das mulheres brasileiras, na tentativa de atrair mais visitantes ao país, incentivando o turismo sexual e nos impulsionando ao 2º lugar no ranking de exploração sexual de crianças e adolescentes.

Apesar das invenções do Presidente e seus asseclas, a prática desses crimes é um problema real e grave no Brasil, que coopta mulheres e crianças pobres, sobre o qual o governo Bolsonaro não tomou qualquer atitude para combater. Em vez disso, uma das únicas propostas de Damares foi a construção fábricas de calcinha em locais de alta incidência de violência sexual contra meninas. Seria cômico, se não fosse muito, muito trágico.

5.Tesouradas e desmonte: A gestão Bolsonaro foi responsável pelo desmonte de órgãos e políticas públicas indispensáveis para a emancipação e sobrevivência das mulheres como Casas da Mulher, creches e programas de enfrentamento à violência. Fez cortes profundos no orçamento e apresentou redução de mais de 90% nas verbas destinadas a essas políticas para 2023, menor previsão dos últimos 10 anos. Como se não bastasse, do pouco dinheiro investido, boa parte da quantia sequer foi gasta, com a baixa execução orçamentária adotada como regra, em 2020, por exemplo, ano de pandemia, a pasta usou menos de 30% da verba disponibilizada.

Para encobrir a falta de investimento e a implosão de todo o trabalho realizado pelas gestões anteriores no campo dos direitos das mulheres, o governo federal focou na promoção de algumas poucas “políticas” de combate à violência, deixando de lado todas as outras muitas necessidades da mulher brasileira.

6.“Maria da Penha ou pistola?”: Bolsonaro trouxe a liberação de armas de fogo como suposta política de segurança pública, usando a resposta individual como forma de isentar o Estado de responsabilidade na proteção das mulheres, ainda que os dados comprovassem que a presença de armas de fogo em casa aumenta significativamente o risco de violência doméstica, podendo inclusive inibir que mulheres procurem ajuda, pela ameaça que a simples posse da arma pelo parceiro representa. Como já era previsto, os resultados foram catastróficos, causando aumento nas medidas de proteção com busca e apreensão de arma de fogo e colocando o Brasil em quinto lugar dentre os países que mais matam mulheres no mundo.

Mesmo com a amplificação da violência e da insegurança para as mulheres, o atual presidente e candidato segue insistindo que a solução é distribuir mais armas e se recusando a apresentar propostas reais, com medidas efetivas de segurança.

7.Pandemia: Não é segredo para ninguém e virou manchete em jornais do mundo inteiro a gestão tenebrosa da pandemia de Covid-19 realizada pelo governo Bolsonaro. O presidente não mediu esforços para minimizar a gravidade da crise e a letalidade do vírus, investiu pesado na fabricação e distribuição de medicamentos ineficazes e fez campanha ativa contra a vacina, obstruindo o desenvolvimento das pesquisas, atrasando a compra e questionando a eficácia dos métodos de prevenção comprovados cientificamente.

No que diz respeito às consequências socioeconômicas da pandemia, momento em que as desigualdades se aprofundaram muito, a concessão do auxílio emergencial foi uma medida que impactou fortemente nas mulheres, principalmente mulheres negras e periféricas, parcela da população que sofreu as maiores perdas neste período.

Mas apesar do que diz a campanha do presidente, a base do governo federal inicialmente foi contra e usou de todas as ferramentas que dispunha para atrasar a aprovação e liberação do auxílio. Sem alternativa, chegou a propor que a parcela do benefício fosse de apenas duzentos reais.

As mulheres foram muito prejudicadas pela pandemia, perderam mais postos de trabalho e retiveram a sobrecarga do cuidado da família, causada pelo fechamento de serviços essenciais como creches e escolas, sem que qualquer iniciativa de apoio fosse adotada pelo executivo federal. Houve ainda aumento expressivo da violência doméstica e familiar e o Brasil ocupou a triste posição de epicentro mundial de mortes maternas por Covid-19.

8.Violência política: Durante ambas as campanhas presidenciais e mesmo antes delas, o bolsonarismo e seus perpetuadores, apoiados em preceitos de dominação masculina, nunca tiveram o menor pudor de adotar comportamentos violentos no trato com as mulheres, como ocorreu em 2014, no fatídico episódio contra a Deputada Maria do Rosário e em todos os muitos outros que seguiram, sendo mais recente, o vídeo de Roberto Jefferson, grande aliado de Jair Bolsonaro, proferindo ofensa e fazendo alusões sexuais contra a Ministra Cármen Lúcia.

Além da violência contra aquelas que ocupam cargos de poder, os apoiadores do governo, em especial o Presidente, colecionam orgulhosamente momentos bastante públicos de desrespeito e ofensas a mulheres jornalistas, artistas, servidoras, presidenciáveis e todas as demais.

Isso ocorre porque o padrão de pensamento que permeia a ideologia bolsonarista é o de que mulheres são seres de segunda classe e de que, além de suas demandas não serem prioritárias, homens podem usar de todo tipo de violência que objetive reafirmar a hierarquia nas relações.

Portanto, no que diz respeito a nós, a postura do atual governo sempre foi e sempre será a de nos submeter às vontades masculinas, negligenciar nossas necessidades por não as considerar importantes e não só endossar, mas incentivar que métodos violentos de “correção” sejam utilizados contra as que se recusem a se adequar à ordem estabelecida. Não à toa, homens com histórico de violência contra a mulher como o goleiro Bruno, o jogador Robinho e Guilherme de Pádua, declararam apoio e enxergam Bolsonaro como um exemplo a ser seguido, uma inspiração.

A manutenção do bolsonarismo no poder significa dar continuidade a um processo de retrocesso, destruição de políticas públicas e criminalização das mulheres, com adoção de posturas antidireitos humanos e imposição de dogmas religiosos que atentam contra a nossa dignidade.

Não há como esperar nada de diferente de um governo com um longo histórico de pressão contra mulheres socialmente vulneráveis para emplacar pautas morais e que brinca com a vida das pessoas, inventando histórias e retirando direitos, sob o véu dissimulado da “defesa da família”. Mas afinal, de qual família estamos falando? Em uma gestão com convicções profundas sobre qual estrutura familiar é “aceitável” e quais não, para quem esse governo governa?

Neste momento, Bolsonaro precisa do apoio das mulheres para vencer, pois somos a parcela do eleitorado que adotou posturas mais críticas em relação ao governo e que pode realmente fazer a diferença no segundo turno. Depois de tudo que vivemos nos últimos anos, fica evidente a estratégia de prometer e não cumprir e a demagogia no discurso eleitoral do governante que se diz convencido de que “o político precisa mentir” e proclama em sua campanha a sanção de diversas leis dedicadas às mulheres, omitindo que não foi autor de nenhuma proposta, pelo contrário, vetou algumas delas.

Para sair desse abismo, precisamos nos mobilizar para demandar e defender governantes que reestabeleçam os laços de solidariedade entre a sociedade e o Estado e que apresentem propostas palpáveis de emancipação, segurança e dignidade.

Precisamos de investimentos e regulamentações que coloquem em prática as medidas preventivas de segurança previstas na Lei Maria da Penha e que sustentem uma rede de apoio multidisciplinar sólida, que garanta às mulheres liberdade concreta para fazer suas próprias escolhas. Boas políticas de educação de qualidade, com ensino de gênero e sexualidade, para formarmos uma sociedade mais bem informada e norteada pelo respeito à diversidade e aos direitos humanos. Boas políticas de saúde, com acesso gratuito e informado a métodos contraceptivos, aborto legal e atendimento obstétrico humanizado.

É preciso que haja competência no cuidado com o povo, porque ao contrário do que se prega, o cuidado não é um trabalho feminino, mas coletivo, que passa pelas ações do dia a dia e também pelo voto, quando escolhemos os responsáveis pela determinação e execução dessas práticas.

Temos até dia 30 para pensar em quais propostas pretendem nos manter em uma posição servil, de cuidadora submissa e quais levantarão esse peso das nossas costas e nos permitirão caminhar mais longe. Não é uma escolha muito difícil, garanto.

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  • Lívia Reis

    Especialista em Ciências Penais, co-fundadora do Coletivo Nós Seguras e do Projeto Transversais, feminista, abolicionist...

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