Nesse Julho das Pretas que se encerra, vivi o que parecia ser impossível: transitei entre Europa, Américas e África em apenas duas semanas levando a palavra e o trabalho do Instituto Marielle Franco pra todo canto. Depois de oito voos e longas horas de espera entre conexões, estou de volta ao meu país podendo dizer que vivi algumas das experiências mais inspiradoras e emocionantes da minha vida enquanto ativista e mulher negra. 

A jornada começou partindo do Rio de Janeiro para Kigali, a capital de Ruanda, no coração da África Oriental e um dos menores países do continente. Para se ter uma ideia, o tamanho de Ruanda é quase equivalente ao do estado de Sergipe. Mas isso nem de longe reflete o tamanho da força dessa nação, que há 30 anos foi marcada por um genocídio que vitimou um milhão de pessoas e foi orquestrado a partir de forte influência colonial belga e francesa.

O povo que ainda hoje se recompõe das chagas deixadas pela violência é ao mesmo tempo profundamente acolhedor e alerta, aparentando viver um sentimento permanente de cautela frente a qualquer movimento que acene para a retomada de um conflito.

Vale dizer também que as mulheres tiveram papel fundamental na reconstrução do país e para assumir postos de tomada de decisão, já que após o massacre elas chegaram a representar 70% da população sobrevivente.   

Foi esse o país escolhido para a realização da sexta edição da Women Deliver, uma das maiores conferências sobre igualdade de gênero do mundo – e que esse ano reuniu mais de seis mil pessoas de todas as partes do globo, além de ser realizada pela primeira vez na África. Ao pousar, não podia esconder a empolgação de pisar pela primeira vez no continente africano. E assim, quase que automaticamente, o coração passou a bater mais forte e o choro foi incontrolável ao chegar no aeroporto local.

Ser negra e estar em África simbolizou para mim uma experiência de retomada, de retorno. Talvez o único outro lugar no Brasil que me remeta a essa mesma sensação é a Bahia, terra do meu pai e estado mais negro do nosso país. E a alegria foi sendo abraçada por um certo alívio de só ver gente preta por todos os lados.

O efeito simbólico de me ver no outro fez ebulir uma sensação de liberdade e pertencimento, mesmo sabendo que somos profundamente diferentes. Ser negra em diáspora é ser reafirmada todos os dias como o Outro a partir da diferença de acessos, tratamento, costumes.

No continente, as desigualdades de gênero e classe acabam não sendo tão atravessadas pelo debate racial – ainda que o senso crítico ao colonialismo me pareça extremamente vívido. Por isso me pareceu curioso falar sobre racismo e alguns ruandeses simplesmente não reconhecerem nesse debate – a não ser quando já tinham saído do país e visitado outros continentes. 

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Crédito: Luna Costa.

Durante a Women Deliver, conheci movimentos, organizações e lideranças políticas de diferentes gerações e contextos políticos, econômicos, sociais e culturais. Pude aprender um pouco sobre as sabedorias ancestrais de cuidado e cura das matriarcas africanas, além de me conectar com mulheres negras em diáspora que – assim como nós, mulheres negras brasileiras organizadas – travam batalhas diárias para garantir a participação e representação política, direitos sexuais e reprodutivos, uma vida livre de violências e pelo bem viver para todas as mulheres.

Além da escuta, pude contar um pouco do que construímos a partir do Instituto Marielle Franco em uma das plenárias de encerramento da conferência, chance em que tive a honra de compor um painel com 6 mulheres inspiradoras – e aqui quero fazer dois grandes destaques.

A primeira é para a Irmã Rosemary Nyirumbe, que há décadas vem acolhendo mulheres e meninas vítimas de violências resultantes da guerra civil de Uganda. Irmã Rosemary vem alimentando a esperança e oferecendo acolhimento seguro para meninas que foram alistadas à força como crianças-soldado e mulheres com filhos indesejados nascidos da violência sexual vivida em conflitos, num trabalho incansável por resgate de humanidade e de uma imaginário outro para mulheres e meninas em situação de violência.

A segunda é Stacey Abrams, figura decisiva para a eleição do atual presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e com uma extensa carreira na política e no serviço público, além de exercer seu ativismo na luta pelo direito ao voto para a população afro-americana de maneira muito inspiradora. Stacey, advogada tributária por formação e que serviu onze anos na Câmara dos Representantes da Geórgia – sete como líder da minoria – é uma figura reconhecida não só nos EUA, mas em todo o mundo pela sua atuação incansável em prol da democracia . Ela criou várias organizações dedicadas ao direito de voto, tais como a Fair Fight

Ainda digerindo os aprendizados de Ruanda, parti de volta à América do Sul diretamente para a Colômbia, a fim de acompanhar uma série de agendas relacionadas ao 25 de julho, Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha. A convite da vice-presidente da Colômbia e ministra da igualdade, Francia Marquez, o Instituto Marielle Franco participou do evento internacional que não só marcava essa celebração, mas também no qual se formalizou um Memorando de Entendimento entre os governos da Colômbia e do Brasil prevendo ações voltadas a superação do racismo e promoção de igualdade racial na América Latina.

Aproveitando a passagem da ministra da igualdade racial e parceira de lutas, Anielle Franco, pela Colômbia, nós do Instituto – em parceria com a Asociación de Mujeres Afrocolombianas/AMUAFROC – também construímos uma agenda política de intercâmbio, colaboração e construção de redes entre mulheres negras políticas, num encontro emocionante entre a delegação brasileira (composta pela ministra e deputadas federais) e parlamentares da Colômbia, do México e do Equador. Para fechar de maneira muito especial, também promovemos um encontro do Ministério e das parlamentares brasileiras com líderes sociais negras da Colômbia, reafirmando nosso projeto político de sonhar uma América Latina negra e feminista conectada para além das fronteiras nacionais. 

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Crédito: Luna Costa.

Seguimos ecoando a partir de diversas vozes e movendo as estruturas de poder pelo mundo inteiro. Não tem volta. Ninguém mais para a nossa revolução e só descansaremos quando a dignidade realmente se fizer costume pra todas nós, sem distinção. 

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  • Lígia Batista

    Lígia Batista é diretora executiva do Instituto Marielle Franco. Formada em Direito, pesquisa sobre representação políti...

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