A luta cotidiana de mobilização das agendas feministas
Nós, Feministas, juntamente com nossos aliados, precisamos mais uma vez reunir forças militantes, conhecimentos estatísticos e pesquisas acadêmicas para forjar as lutas.
Os últimos anos, principalmente com a consolidação do golpe à democracia brasileira de 2016, estão marcados pelo ascenso e estabelecimento de grupos autodenominados de “conservadores”, especialmente no campo político. Esses grupos são compostos por homens e mulheres financiados por igrejas neopentecostais, indústria armamentista, agronegócio e outros grupos econômicos defensores do liberalismo econômico, tanto nacionais quanto estrangeiros. Eles instrumentalizam ideologias fascistas e fundamentalistas para arregimentar seguidores e, por consequência, eleitores com finalidades nada claras à Democracia nacional.
De uma gama imensa de assuntos que são possíveis discorrer, a questão de gênero é uma das mais importantes e central à compreensão das desigualdades. Questão que está no campo político-legislativo e tem sido a principal a agenda da denominada “Bancada da Bíblia” – e não somente dela, mas de todos os alinhados à extrema-direita. Portanto, é urgente o debate sobre os corpos e as vidas de mulheres, pessoas com útero e meninas daqui e de toda a América Latina, sob uma perspectiva decolonial e antirracista.
A saber, a América Latina é o lugar no Mundo mais desigual às mulheres nos campos econômicos, políticos, socioculturais e socioambientais, marcados por relações assimétricas históricas.
Na política legislativa nacional (sem citar aqui as aberrações inconstitucionais estaduais e municipais), em 2024 foram levados à discussão em plenário e comissões do Congresso Nacional Projetos de Lei sobre o “escola sem partido”, “estatuto do nascituro” e a “PEC do estupro”. Esta última visa acabar com os abortos legais estatuídos pelo Código Penal de 1940 (nos casos de risco de morte da gestante e gravidez proveniente de estupro), bem como o caso reconhecido pelo STF em 2012 de aborto em caso de anencefalia (ADPF 54).
Para termos a dimensão da desumanidade política, na última semana veio a público que a Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados votou contra o PL 59/2023, que buscava garantir dignidade menstrual em Penitenciárias Femininas, com o fornecimento de absorventes e fraldas aos bebês.
Ao que tudo indica, nós, do campo democrático, estamos em desvantagem nesta luta contra a insanidade de pessoas que projetam essas leis ou que são contra a garantias e avanços mínimos a mulheres e crianças.
A tentativa de criminalização do aborto às vítimas de crimes sexuais, por exemplo, lega às vítimas a maternidade compulsória, o que por si só já é uma afronta direta aos Direitos Humanos de Mulheres, Pessoas com útero e Crianças, mas se analisarmos a fundo suas consequências, estaremos à beira da institucionalização da tortura.
Podem dizer os incautos e incultos: “suportaria ficar mais um pouquinho?” A solução para eles e elas é destinar o fruto de uma violência sexual à adoção ou, quem sabe, a morte da mãe para garantir o nascimento vivo de um bebê? Que sentido faz isso para quem tem um olhar crítico minimamente humanista? Não bastasse vivermos num país que mata e violenta mulheres e crianças cotidianamente.
“A cada 8 minutos, uma mulher é vítima de estupro no país (…) o maior grupo do Brasil, cruzando cor e gênero, é composto por mulheres negras (pardas e pretas), 54,5%”, afirma o Relatório Anual Socioeconômico da Mulher (Raseam), 2024.
Essas são também as que mais morrem em abortamentos inseguros, o último recurso do desespero, quando o Estado já falhou miseravelmente em todas as políticas assistenciais anteriores a uma gravidez indesejada. E sejamos francas: quem aqui não conhece alguém, próximo ou distante, que já fez um aborto, seja ele legal ou não? A realidade é esta: mulheres e pessoas com útero abortam.
O que define se elas vão viver ou morrer é o quanto podem pagar pelo procedimento. E é por isso que nosso posicionamento deve ser pela legalização do aborto, por ser ele um problema de Saúde Pública e não do Sistema de Justiça Criminal.
Estes dados sobre os marcadores de classe e raça, que nos dizem que são as mulheres pobres e não brancas que mais morrem no Brasil, se confirmam no Atlas da Violência de 2024:
O racismo estrutural e institucional, a interseccionalidade entre gênero e raça, bem como a insuficiência de políticas específicas de proteção a esse público, são chaves interpretativas que precisam ser consideradas para compreender esses altos índices, uma vez que mulheres negras são tradicionalmente mais expostas a fatores geradores de violência, em comparação com mulheres não negras.
Em todo o contexto estamos falando de grupos populacionais que somam mais de 50% da população brasileira, e é sobre esses corpos que querem impor a perpetuação da heteronormatividade misógina e de um pretenso fundamentalismo religioso num Estado Laico, por via de leis que se dizem de “proteção à vida” (sem dizer de qual vida está se falando).
Estamos em vias da institucionalização da violência e da barbárie, por meio de uma política de morte e extermínio. Nós, Feministas, juntamente com nossos aliados, precisamos mais uma vez reunir forças militantes, conhecimentos estatísticos e pesquisas acadêmicas para forjar as lutas. Precisamos enfrentar os embates, que não são poucos e nem imediatos, sobre as condições das Mulheres e Meninas de serem, estarem e sobreviverem na nossa sociedade patriarcal, machista, heteronormativa, misógina e violenta. A conjunção de forças políticas insiste em tentar violar essas condições.
A saída? Sem dúvida alguma, será sempre à esquerda. Neste campo em que está em xeque os Direitos Humanos de Mulheres, Pessoas com útero e Meninas, o instrumental de luta ao nosso dispor são os Feminismos e os Movimentos Sociais de luta contra todas as formas de opressões e violências.
De 2013 para cá, fomos nós, Feministas, Movimentos Negros, LGBTQIAP+, Indígenas, Sem Terras, Sem Tetos, Ribeirinhos, Atingidos por Barragens (mas também atingidos por grandes empreendimentos e injustiças ambientais), que abalamos e movemos as estruturas do Poder.
Fizemos isso por meio das lutas de rua, de enfrentamento, de denúncias e de ocupações. E será desta mesma forma que precisaremos continuar lutando incansavelmente, se quisermos seguir garantindo o mínimo de Democracia.
Isso em um País que tenta se reerguer a duras penas dos tantos golpes sofridos desde 2016 e dos tantos genocídios em curso. O Estado de Exceção é permanente para aqueles que habitam lugares de vulnerabilidade ou são racializados.
Além disso, precisamos retomar o Trabalho de Base, de formação, de diálogo com as comunidades, vilas, Favelas, territórios indígenas, quilombolas, pois sem construção popular não avançaremos nos sonhos e projetos de realizações mínimas de acesso aos Direitos Humanos.
É urgente a reconstrução dos espaços das Conferências Nacionais, com vistas à abertura de diálogos entre o povo e as instituições de Estado, em todos os níveis. Não há como se falar em redução de violências sem a presença do Estado e de Políticas Públicas, com dotação orçamentária adequada.
Não haverá freio à ocupação fundamentalista e extremista, enquanto não encararmos com honestidade a crise do ensino público no Brasil. Precisamos da necessária reestruturação material e teórica emancipatória – sim! Precisamos de Paulo Freire! Isso deve ocorrer desde o ensino fundamental até a pós-graduação, incluindo a valorização dos profissionais da educação.
Uma política feminista decolonial e antirracista, que objetive a vida livre e pacífica de Mulheres e Meninas, tendo como consequência a redução dos índices de violências e mortes, passa também pela geração de trabalho e renda dignos, com igualdade salarial e de oportunidades entre homens e mulheres.
Sem todo este conjunto de lutas diuturnamente em todas as frentes e contra todos os opressores nunca estaremos seguras, e seguiremos morrendo e sendo violentadas, transformadas em meros números estatísticos.