Madonna está no Rio de Janeiro para o encerramento histórico da turnê Celebration, que comemora seus 40 anos de carreira, fazendo show gratuito para o público na Praia de Copacabana. O Brasil tem uma das maiores bases de fãs da Rainha do Pop, que chegou ao país na segunda-feira (29) para esta apresentação única na América do Sul, que acontece no sábado (4). 

A estrutura gigantesca montada em uma das praias mais famosas do planeta será palco para “a maior pista de dança do mundo”, e fãs já lotam o Rio desde o começo da semana. Tudo é hiperbólico: mais de 1,5 milhão de pessoas são esperadas no megaevento, e é estimado que a cidade receba R$300 milhões em faturamento. A prefeitura investiu R$10 milhões, e deu boas-vindas à diva montando uma força-tarefa digna dos Réveillons em Copacabana. A “Operação Madonna” mobilizou 4.500 policiais, 800 bombeiros e 64 patrulhas. 

A arte e expressão dessa superestrela de 65 anos forjaram muito de quem sou, e do meu feminismo. Sou fã desde que me lembro, e no meu universo simbólico particular não há registro no qual ela não seja relevante. Madonna não é a primeira diva ou estrela pop, e se é ou não a maior que temos, varia com a medida. Gosto de ter vindo ao mundo depois dela e da linguagem para a qual ela deu caminho. 

Letreiros no palco da última turnê de Beyoncé diziam “Queen Mother Madonna”, e outras divas a reverenciam abertamente. Viralizou há pouco tempo uma entrevista com a cantora P!nk, que elegantemente respondeu a uma pergunta misógina e etarista sobre o rosto de Madonna dizendo que fazer tal pergunta não demonstra progresso. O rosto de Madonna dominou as manchetes após a aparição dela na premiação do Grammy, em fevereiro de 2023, e ela mesma rebateu o furor, constrangendo quem tentou envergonhá-la. 

Madonna escreveu em seu Instagram que “um mundo que se recusa a celebrar as mulheres com mais de 45 anos sente a necessidade de puni-la se ela continua a ser forte, trabalhadora e aventureira”.

Duas semanas depois da premiação, um texto meu sobre divas foi publicado na íntegra no Catarinas para, durante o feriado de Carnaval daquele ano, ser promovido com cards diferentes no Instagram. Os cards de Rihanna, Björk, Beyoncé, Miley Cyrus e Shakira – estas últimas, na época hitando com músicas em que falam mal dos ex – tiveram engajamento baixo comparado ao que obtivemos com o card feito justamente com a polêmica imagem do Grammy e a chamada “O rosto de Madonna“.

Em um outro vídeo de 2016, que voltou a viralizar recentemente em trechos curtos, Madonna profere um discurso como Mulher do Ano do prêmio Billboard Women in Music daquele ano. Essa não foi a primeira vez que ela se posicionou como alguém cujo entendimento feminista sobre gênero encoraja mulheres a fortalecer outras mulheres. Ela acumula muitas boas falas e entrevistas, em que seu raciocínio afiado e rápido proporciona veneno anti-misoginia, além de sagacidade e entretenimento que sempre me incentivaram a pensar e agir criticamente. E no mês que precedeu este show, não faltaram lembranças, histórias e memes distribuídos à revelia pelos algoritmos de quem está orbitando ao seu redor. 

Muita gente entrou na brincadeira de perguntar sobre a música favorita da Madonna, um exercício impossível de que nem me arvorei a participar. Não sei o que ela vai cantar no show, mas carrego no meu pântano semiótico músicas como Over and Over, Angel, Like a Virgin e Dress You Up (todas do álbum Like a Virgin, de 1984) sem conseguir nem traçar origem. O mesmo posso dizer de Papa Don’t Preach (de True Blue, 1986), e Everybody (Madonna, 1983). Estas músicas são tão parte de mim como o gosto por sorvete de morango, ou a preferência pelo verão. 

De Material Girl, especialmente, lembro com o som da agulha na vitrola – e de experimentar a mesma euforia musical no primeiro acorde mais tarde, com Just Dance da Lady Gaga em 2011, e Show das Poderosas da Anitta em 2013. Who’s That Girl? (Into the Groove, 1985) existe no inconsciente coletivo de uma geração de brasileiros por conta das chamadas, na Globo, de “Procura-se Susan Desesperadamente”, um clássico da Sessão da Tarde da infância dos anos 1980, em que os visuais de Madonna e Rosanna Arquette eram – e até hoje são – muito mais interessantes do que o roteiro aloprado do filme. 

E daí veio Like a Prayer, em 1989. A capa sempre me pareceu a do disco Índia, de Gal Costa, que meus primos também tinham. A lembrança do álbum rodando nos encontros de família só não é mais forte do que a do videoclipe sendo lançado no Fantástico, e assunto do dia seguinte.

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Videoclipe de Like a Prayer | Crédito: reprodução.

Na minha cabeça, maior do que a repercussão desse lançamento – que imprimiu no meu cérebro outra possibilidade de operar imagens do cristianismo, colocando cruzes em chamas ao som de um coral gospel negro – somente tiveram as duas do Michael Jackson: Thriller, de 1983, e Black and White, em 1991.

Em 1990, quando escolhi meu primeiro (e por muito tempo único) CD, foi o The Immaculate Collection, lançado naquele ano. Com ele (que tenho e escuto até hoje) gastei a sola do sapato ao som de Borderline, Lucky Star e Into the Groove, aprendi muito sobre o patriarcado e as mentiras que os homens contam em Live to Tell, concebi a ideia de guitarra espanhola com La Isla Bonita, e comecei minha educação para exigir honestidade nas relações com Open Your Heart, e para navegar o mundo na franqueza com Express Yourself. 

Lembro da excitação literal de Astrid Fontenelle apresentando Erotica na TV em 1992, e falando sobre a ousadia da diva em dedicar um álbum inteiro à expressão de sua sexualidade. Com o disco, veio o livro Sex, que vi uma vez e nunca mais. Mega hits como Deeper and Deeper e Bye Bye Baby mantiveram Madonna nas pistas de dança, e tudo o que ela usava na moda – desde as rendas e pulseiras de borracha nos anos 1980 aos loiros platinados e delineador dos anos 1990, ela definiu o estilo de uma era. 

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Registro do livro Sex | Crédito: reprodução.

This Used to Be My Playground – que foi trilha sonora do filme Uma equipe muito especial, do mesmo ano, estrelando Madonna e Geena Davis – junto com Bad Girl e Rain (ambos de Erotica), se apresentaram para mim como a pura e cristalina habilidade de Madonna de fazer das baladas românticas e sentimentais aulas de como navegar as dores do amor com dignidade.

As músicas lentas de Madonna não servem para chororô; ao contrário, são um convite à reflexão sobre a dor, sem sucumbir nem sublimar, nos convidando a achar meios de superação. You’ll See, Love Don’t live here Anymore e Oh Father (todas em Something to Remember, de 1995), têm o exato mesmo efeito: reparar o coração quebrado com muito amor-próprio.

Cherish, do álbum Like a Prayer (1989), retornou para meu radar a partir da versão de Renato Russo em seu  álbum em homenagem ao Stonewall, de 1994; lembro que eu costumava confundir o videoclipe de Madonna com o de Wicked Games, de Chris Isaac, ambos lançados em 1989, quando o mundo era outro e videoclipes eram raramente vistos no Brasil. Vogue, que faz parte do álbum I’m Breathless e da trilha sonora do filme Dick Tracy (1990), junto com Justify My Love (de Immaculate Collection, do mesmo ano) passou a fazer bem mais sentido para mim depois de Erotica, quando eu entrava na puberdade. 

O álbum Bedtime Stories, de 1994, lançado perto do verão em que eu já tinha pra lá de 15 anos, me acometeu como um trem-bala de futuro empoderamento sexual, afetivo e romântico.

As letras de Survival, Secret, I’d Rather Be Your Lover, Bedtime Story, Human Nature e Take a Bow fazem parte do meu repertório discursivo de mulher num mundo machista, e moldaram a franqueza com que encaro meu desejo.

Este álbum de Madonna norteia uma forma de viver que, poucos anos depois, foi encarnada na personagem de Kim Cattrall em Sex and The City, Samantha Jones: uma sexualidade vivida para si, e que galhofa do ridículo de quem se espanta com essa ser a decisão de uma mulher.

Entre 1998 e 2008 eu já me considerava filha espiritual de Madonna, e ouvi Ray of Light, Frozen e The Power of Goodbye como quem aprende novas orações. Beautiful Stranger, da trilha sonora de Austin Powers, coincide com seu relacionamento com Guy Ritchie, o que sempre achei engraçado.

Em Music, de 2000, ela me pegou de novo com os posicionamentos contidos na música de mesmo nome do álbum, e Don’t Tell Me, que sedimentam a autoconfiança de quem presta atenção em si mesmo. Deste álbum vem uma das minhas canções favoritas, What It Feels Like for a Girl, que pavimenta o entendimento de que os homens não têm ideia do que é ser mulher no mundo. 

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Videoclipe de What It Feels Like for a Girl | Crédito: reprodução.

Mais tarde, em 2005 com Hung Up e Sorry de Confessions on a Dance Floor, essa certeza fica ainda mais consolidada. E, em 2008, ela lança o álbum Hard Candy (doce duro), que ouvi pouco, mas cujo título captura muito do que eu penso ser: açucarada sim, mas tente morder e arrisque quebrar os dentes.

Em 2015, no álbum Rebel Heart, veio a máxima suprema, em que ela deixa bem claro para o mundo que sabe exatamente do legado que criou, e do respeito que lhe é devido, cantando em videoclipe apinhado de estrelas do pop: Bitch I’m Madonna

Entre 2015 e 2018 fiz muitas versões de uma aula sobre feminismo e divas pop, e a primeira já continha Human Nature, cuja letra ainda me importa mais do que a melodia e o ousado vídeo (que também adoro). E Madonna ainda nem tinha lançado essa quando, em novembro de 1993, fui de Criciúma (SC) ao Morumbi, em São Paulo, numa excursão bate-volta para o Girlie Tour, com 14 anos.

A menina em mim voltou a se emocionar quando, já bem adulta, em 2019, viu outra menina brasileira realizar o sonho de cantar com a Madonna: a poderosa malandra Anitta – que oxalá vai fazer aparição no show de sábado – está eternizada na faixa 10 do álbum Madame X, Faz Gostoso. 

Eu cresci ouvindo Madonna, e em um espaço em que todos gostavam dela, mesmo com (ou apesar da) sua ousadia – que, como eu vi criança, achava menos “ousado” e mais “isso é o que alguém como a Madonna faz”. Dediquei meu livro Patriarcado Gênero Feminismo para ela, pois entendi muito cedo que fazer o que alguém como a Madonna faz significa muitas coisas, e sempre tem a ver com tocar fogo no patriarcado.

Ainda na resposta que ela deu aos críticos da imagem de seu rosto no Grammy em 2023, por exemplo, ela disse esperar por “muitos mais anos de comportamento subversivo, ultrapassando limites e enfrentando o patriarcado”. 

Meu aniversário foi na mesma segunda-feira–feira em que ela chegou no Brasil, e, na minha fantasia, ela fez tudo isso só para mim. Completei meus 45 anos como Madonna gosta: forte, obstinada e trabalhando. Neste sábado, mais uma aventura vai entrar para a conta: a de curtir a rainha ao vivo na orla do Rio. 

Madonna, eu te amo. Obrigada por tanto. 

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  • Joanna Burigo

    Joanna Burigo é natural de Criciúma, SC e autora de "Patriarcado Gênero Feminismo" (Editora Zouk, 2022). Formada pela PU...

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