A chica da semana é a escritora Bernadette Lyra que também é professora universitária. Licenciada em Letras pela UFES, e doutora em Artes/Cinema pela ECA/USP, e pós-doutora pela Universidade René Descartes, Sorbonne, França. Já publicou diversos livros e foi indicada ao prêmio Jabuti em 2007, com o livro de contos “Memórias das Ruínas de Creta”.
Como de costume, para começar você poderia contar um pouco de sua trajetória como escritora? Por que começar a escrever? E mais, por que continuar escrevendo?
Minha vida de escritora começa assim que aprendi a ler. Descobri que era prazeroso jogar com as palavras. Creio que tive uma fase oral, em que juntava coleguinhas de escola para contar histórias inventadas, quase sempre fantasiosas, fantásticas e surreais. Histórias que, mais tarde, reapareceram (e ainda reaparecem) aqui e ali, fragmentadas em meus contos e romances, sempre temperadas pela a busca do ritmo, coisa essencial para mim. E, assim, continuo escrevendo para dar forma às histórias que invento e cumprir a necessidade de sentir que estou viva, fazendo aquilo que mais me dá gosto.
Agora enquanto leitora. Poderia nos contar quais suas principais influências? Autores muito queridos ou livros que te marcaram? Qual foi sua última leitura?
Desde os sete anos, leio tudo que me aparece debaixo dos olhos. Com o tempo e a maturidade, fui me inclinando para certos tipos de escrita, com predileção para quem partilha o universo da ficção deslavada, sem preocupações com o chamado “realismo” (não tenho problemas com a “realidade”, desde que se considere que a ficção literária é uma realidade também). Meu encantamento maior sempre foi “Alice” (Através do espelho e No país das maravilhas), a menina criada por Lewis Carroll. Ela talvez seja o marco dessa minha investida no universo da fantasia quase surreal que me faz ser devota de tantas outras gentes que professam a literatura como uma misteriosa alquimia. E, para temperar a “asa ritmada” do estilo, estou sempre lendo poemas de Cecília Meireles, minha poeta de eleição. Agora, estou na fase de leitura de biografia de escritoras. Revendo “Amarga fama”, uma biografia de Sylvia Plath, escrita por outra poeta, Anne Stevenson.
Você publicou mais de 10 livros, mas gostaria de saber um pouco mais sobre o “Ulpiana” que foi semifinalista do Prêmio Oceanos. Poderia compartilhar um pouco sobre essa obra com os leitores?
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Ulpiana fala da morte e do espanto que causa, em especial a morte assumida de alguém. O título do romance é o nome de uma antiga necrópole em ruínas situada no Kosovo. A narradora tenta decifrar o enigma que cerca o suicídio de uma tia doente e solitária, mas se vê enredada na própria narrativa, à medida que a trama central vai sendo despedaçada por fragmentos de outras narrativas envolvendo a morte de muitas mulheres. Todos meus livros, sejam de contos ou romances, têm mulheres como personagens centrais e mais fortes. Penso que isso se dá pelo sentimento de ser, pelas minhas vivências e pelas circunstâncias histórico-culturais que cercam minha condição de escritora no Brasil.
Recentemente tivemos uma nova reimpressão do seu livro “Água Salobra”. Um livro de crônicas, certo? Poderia falar um pouco sobre o tema das crônicas e o processo de escrita do livro?
Costumo dizer que uma crônica é um pastel de vento. Quem a lê põe o recheio emotivo que mais lhe convém. “Água salobra” gira em torno de memórias de minha infância e juventude em Conceição da Barra, cidadezinha em que nasci, no extremo norte do Espírito Santo. Foram coisas, fatos e sensações que deixaram marcas em minha existência e que fui juntando e transformando em palavras.
Além de escritora você também é pesquisadora, correto? Poderia nos contar um pouco sobre essa outra atividade? De que forma ela conversa com sua literatura?
Tenho um doutorado em Cinema (ECA/USP) e me dediquei à pesquisa e ao ensino nessa área. Na Socine, de que sou sócia fundadora, e nas Universidades em que lecionei, desenvolvi um trabalho sobre o que chamei de Cinema de Bordas, ou seja, filmes toscos de ficção, feitos com orçamento baixíssimo, por realizadores autodidatas (pedreiros, serralheiros, camponeses etc), moradores de cidades interioranas ou da periferia de cidades maiores, sem formação específica, porém com o intenso desejo de fazer cinema. Como curadora de mostras de cinema, pude apresentar esses filmes em festivais de todo o país. Também me dedico ao estudo de filmes produzidos por coletivos queer. São atividades diversas das de uma escritora, mas que não interferem no meu trabalho criativo. Pelo contrário, andam lado a lado com ele.
Como foram suas experiências de publicação no decorrer da carreira? O que mais te marcou no processo?
Para o bem ou para o mal, muita coisa aconteceu comigo desde que comecei a publicar. Entre as coisas do bem, ganhei prêmios em concursos literários nacionais e internacionais; ganhei tradução de contos para outros países; ganhei resenhas em revistas e jornais; ganhei leitoras e leitores em várias latitudes e diferentes lugares, enfim um lote prazeroso. Mas nada me é mais emocionante quanto aquele momento de receber o primeiro exemplar de uma obra que escrevo, tenha ela sido publicada por editoras de realce, com força no mercado, ou por editoras pequenas, atrevidas e independentes.
Por fim, há algo que você gostaria de dizer para outras mulheres que escrevem? Ou, alguma mensagem final?
Gosto de repetir a Tille Olsen:
“Toda mulher que escreve é uma sobrevivente”.
Sejamos sobreviventes nós todas, então.
Por favor, indique um livro para os leitores e também um filme ou série.
Um livro: “Os Malaquias”, romance de Andrea Del Fuego (Prêmio José Saramago 2011).
Um filme: “ Lindinhas” (Mignonnes, 2019), da diretora Maimouna Doucouré .