Um discurso muito frequente, hoje, nos movimentos, reuniões e mesmo nas listas de whatsapp de pessoas que se dizem “de esquerda”, é o de dizer que determinadas questões sociais como as relativas ao feminismo, às sexualidades e ao racismo, bem como aos indígenas, aos deficientes físicos, idosos, e outros grupos considerados por estas pessoas frequentemente como “minoritários”, seriam questões “identitárias”. Considero muito importante discutirmos e pensarmos bem sobre o que estamos dizendo quando usamos este termo.

Em primeiro lugar, minha impressão é que ao usar este termo, estas pessoas estão querendo diminuir a importância das lutas e das reivindicações ligadas a esses grupos. Como nos anos 1970, durante a ditadura, eles e elas tentam dizer que todos devem se unir em uma causa maior, e que esta causa é a luta de classes, e que para isso devem esquecer suas outras reivindicações, deixá-las em alguma gaveta, esperando para depois da “revolução”.

Numa leitura marxista um tanto anacrônica, considerando-se que Marx escreveu seus trabalhos no século 19 na Europa, uma sociedade e uma economia bastante diferente da que vivemos hoje, não conseguem atualizar sua visão de mundo e sua percepção política, incorporando as mudanças sociais, econômicas, tecnológicas e culturais que vivemos ao longo do século 20 e das primeiras duas décadas do 21.

Não estou aqui me colocando contrária ao marxismo e a Marx, pois considero sua leitura fundamental, e uma ferramenta muito importante para a compreensão do capitalismo, mas temos que nos atualizar. O próprio Marx, certamente seria favorável à essa atualização, ele que era conhecido como rato de biblioteca.

Mas tenho repetido em conversas com pessoas de vários partidos e ideias alguns argumentos contra essa visão das chamadas lutas “identitárias”:

A luta das mulheres, por igualdade de direitos, contra a violência e pelo direito ao seu corpo, não pode ser vista como uma luta “identitária”. A violência, o assédio, a desigualdade salarial e as mortes por abortos e gestações sem assistência, tantas outras violências, atingem pelo menos metade da humanidade. Segundo a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua) do IBGE, em 2018 51,7% da população brasileira é formada por mulheres. Ou seja, a maioria. A luta contra a violência e a desigualdade de mais da metade da população não pode ser vista como uma luta “identitária”, ela não diz respeito a afirmar uma identidade, ela diz respeito à humanidade.

A luta antiracista, contra a desigualdade, contra o preconceito racial, contra as mortes de jovens negros, contra a violência baseada no preconceito também não é uma luta “identitária”. Conforme a PNAD de 2015 do IBGE, 45,22% dos brasileiros se declararam brancos, 45,06% pardos, 8,86% pretos, 0,47% amarelos e 0,38% indígenas, ou seja, a maioria dos brasileiros não se considera branca. E mesmo que você se considere branca ou branco, você acha que a luta antirracista não é sua também? Nem que seja em sua própria cabeça e no seu coração, é preciso iniciar essa luta!

O Brasil é reconhecido como um dos países em que mais ocorrem assassinatos de homossexuais e pessoas trans por eles serem homossexuais e trans. Não importa a taxa de pessoas homossexuais e trans na população, eles merecem respeito. Lutar contra a violência, contra o preconceito e o desrespeito, não pode ser uma luta somente das pessoas que se identificam como homossexuais e trans. É uma luta de todos nós.

As mulheres e homens indígenas são as pessoas que carregam em sua história, em sua cultura e em seus corpos uma incrível história de extermínio e expropriação, mas também de uma resistência que deveria nos servir de alento e de esperança nesses tempos tão difíceis. Eles tem sobrevivido, e mantido seus conhecimentos sobre a vida nesta terra que podem significar a sobrevivência da nossa espécie se soubermos aprender com eles. Lutar pelo reconhecimento de suas terras, pela sua segurança, saúde e educação não é uma questão identitária, e não cabe somente aos que se reconhecem como indígenas.

E por aí vai. Certamente se somarmos as mulheres, os negros e negras, indígenas, lésbicas, gays, transhomens, transmulheres, bissexuais, travestis, cegas e cegos, surdas e surdos, paraplégicos, tetraplégicos, asiáticos, pessoas com doenças mentais, sobrarão uns poucos homens, brancos e heterossexuais, para carregar a bandeira não identitária.

Penso que temos que esquecer esse termo, lutas identitárias. Já se foi o momento dessas lutas, nos anos 60, 70 e 80, para dizer que esses grupos existiam. A luta agora é outra e precisa de uma aliança. Corpos em aliança, como propõe Judith Butler, alianças que podem ser provisórias, mutantes, e se atualizar, mas que precisam superar essa visão antiquada, racista e misógina de uma esquerda que só olha para trás. Fico lembrando das propostas de Chico Mendes, nos anos 80, propondo uma aliança dos povos da Floresta, povos que muitas vezes foram inimigos no passado, como os indígenas e os seringueiros.

Estamos vivendo um momento de perigo, precisamos construir caminhos conjuntos que incluam e respeitem as diferenças, as liberdades, as alegrias e os afetos, para chegar em segurança, para pensar outras possibilidades de uma vida melhor.

*Cristina Scheibe Wolff é historiadora e professora.

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  • Cristina Scheibe Wolff

    Professora de História de Santa Catarina no Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

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