Por Susana Draper e Verónica Gago, com tradução de Fernanda Martins.

A decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos sobre a criminalização do aborto leva a tramar um diálogo transfronteiriço entre as lutas do feminismo no norte e no sul do continente.

“Aborto legal a nível mundial!”, era o canto predominante há alguns dias em frente à embaixada dos Estados Unidos em Buenos Aires. Os lenços verdes¹ tomaram as ruas, os sinalizadores foram acesos novamente e vários cartazes manuscritos circularam em inglês (“Abort capitalism!”, “Abort the court!”²) com uma gramática abortista, anti-imperialista e contra a corporação judiciária.

Não é para menos: as decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos sobre o livre porte de armas em espaços públicos e a criminalização do aborto levam a um diálogo transfronteiriço sobre as lutas do feminismo que vêm ocorrendo na América Latina e a necessidade de ativar novas chaves comuns para enfrentar o que está por vir nestes tempos de reação patriarcal, conservadora e neoliberal.

De fato, durante as mobilizações da última segunda-feira, 4 de julho, o que “interrompeu” o feriado mais importante nos Estados Unidos foram os protestos contra a criminalização do aborto, que ocorreram em diferentes partes do país. Em Akron, Ohio, eles também convergiram com os protestos #BlackLivesMatter, após a divulgação de informações sobre o assassinato de Jayland Walker, um homem negro de 25 anos que ultrapassou o sinal vermelho em 27 de junho e foi baleado sessenta vezes por oito policiais que “acreditavam que ele estava carregando uma arma”. As críticas à decisão sobre o livre porte de armas voltaram ao centro do debate naquele mesmo 4 de julho, quando uma pessoa disparou repetidamente em um desfile em Chicago, deixando seis pessoas mortas e cerca de vinte e quatro pessoas feridas.

Várias manifestações feministas já haviam anunciado que hackeariam a data: “4 de julho foi cancelado por falta de Independência. Saudações, as mulheres”, dizia um dos cartazes; outro defendeu a não utilização das cores da bandeira (vermelho, branco ou azul) e a utilização apenas do verde em todo o país; em cada chamada, foi dada ênfase à necessidade de ocupação das ruas: #GetInTheStreet (vá para as ruas), #StayInTheStreet (fique nas ruas). Da Riseup4AbortionRights³, em Los Angeles, foram lançados panfletos nas redes sociais convidando companheires do sul do continente a compartilhar suas histórias de luta pelo aborto livre para lê-las nos atos e traçar uma zona de aprendizado, uma reverberação oral de estratégias que coloca pedagogias feministas em curso.

“Não há justiça reprodutiva sem acabar com a violência policial”, um dos slogans lançados por diferentes grupos dos feminismos negros, talvez seja uma das melhores sínteses para vislumbrar a lógica de articulação das lutas que se impõe em um momento urgente como o presente. Com isso queremos enfatizar várias coisas. Por um lado, que as intensas discussões contra as armas e contra a violência policial nas semanas anteriores à decisão do tribunal de garantir seu porte “livre” em espaços públicos e de penalizar o direito ao aborto, tiveram uma continuidade chocante nos dias seguintes. O que é legislado tem um impacto imediato no que é permitido nas ruas.

Enquanto isso, por outro lado, a herança do movimento feminista na América Latina, protagonista da maré verde, se converteu numa presença fundamental nas manifestações estadunidenses através dos lenços verdes e nas tentativas de recriar ações coordenadas.

O que podemos ler no que está acontecendo e como fortalecer sequências de análise coletiva que nos permitem imaginar como reverter as decisões da Corte e, ao mesmo tempo, nutrir um movimento feminista popular transfronteiriço em nível hemisférico? Como enfrentamos essa associação patriarcal entre a liberalização das armas e a criminalização do aborto, quando ambas apontam diretamente para a perseguição de mulheres e pessoas racializadas? Quais efeitos de empoderamento das direitas em outras latitudes se produz com esse avanço antidireitos?

Não podemos deixar de trazer aqui o escândalo de poucas semanas atrás no Brasil, denunciado pelas colegas do Portal Catarinas, quando a juíza Joana Ribeiro Zimmer, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), buscou convencer a uma criança vítima de estupro de não abortar (quando no Brasil o aborto por estupro é legal) e, para tanto, ordenou que ela fosse colocada em um “abrigo” de menores para impedi-la diretamente de abortar. A indignação viralizou sob a hashtag “Criança não é mãe” e o aborto foi finalmente realizado, prática que o presidente Bolsonaro chamou de “inadmissível”. Ainda, esse episódio foi usado para veicular, em audiência pública convocada por órgãos administrativos federais, discursos que descreviam as mulheres como “mentirosas e assassinas” ou que “concebem bebês dançando funk”. Essa audiência, à qual a sociedade civil não pôde comparecer, tornou-se um espaço de propaganda antiaborto.

Situamo-nos nesta encruzilhada para escrever: queremos aprofundar a dimensão internacionalista que o movimento desenvolveu nos últimos anos para entender a escala global da contraofensiva, elaborar o que pode ser acionado diante da situação atual e propor chaves de experiência organizacional como um terreno comum. Como se expressa esse internacionalismo? Como construir e sustentar alianças?

Queremos destacar as formas pelas quais a luta pelo direito ao aborto, que obteve vitórias recentes na Colômbia, Argentina, México e que avançou significativamente no marco da reforma constitucional no Chile, funciona como uma força de ligação entre as lutas, não é uma mera reivindicação enclausurada em direitos de propriedade sobre o corpo individual. Queremos investigar se essa chave de conexão e mobilização é aquela que começa a ser testada nos Estados Unidos, que aparece de uma forma particular: aprendendo com o sul do mundo e, ao mesmo tempo, conectando-se com uma longa luta clandestina contra a vigilância sistemática e a criminalização de certas vidas e comunidades.

Estamos experimentando uma inversão epistêmica: desde nossas geografias do sul emergiram conhecimentos organizacionais que podem ser lidos à luz das vitórias verdes no marco da massificação do feminismo em conexão com as greves do 8M, que se trama e se prolonga nos sindicatos, coordenações populares, movimentos sociais, coletivos de migrantes, iniciativas territoriais etc. As ações e desejos que o movimento feminista vem manifestando também estão ligados a uma saga de lutas e protestos (como as revoltas no Chile, Colômbia e Equador e em outros múltiplos conflitos menos visíveis para a imprensa) que atualiza tanto sua capacidade internacionalista quanto sua versatilidade para atuar em vários níveis ao mesmo tempo: rua, legislativo, sindical, eleitoral, judicial. Vemos que é preciso buscar nessas capacidades as razões pelas quais hoje a negação do direito ao aborto torna-se a ponta de lança de um corte mais amplo de direitos e recursos públicos para torná-los acessíveis.

Empobrecer, endividar, vigiar e criminalizar

Silvia Federici diz sobre a situação atual nos Estados Unidos: “A guerra contra as mulheres é nervo central no atual momento do neoliberalismo. Porque quem controla o processo de reprodução controla as formas de exploração”. As imagens que compilou em sua pesquisa histórica sobre a caça às bruxas têm uma nova versão no século XXI, que mais uma vez nega a progressividade dos direitos, suas conquistas definitivas.

Constatamos também que, conforme exposto pela legislação antiaborto no Texas, está sendo reforçado um sistema detalhado de vigilância onde não apenas a pessoa que aborta é perseguida, mas toda uma rede possível de cúmplices que se tornam sujeitos criminalizáveis. Nesse sentido, reforça-se uma cultura baseada na suspeita, no controle e na denúncia, incluindo agora as formas de perseguição de todas as informações que estão registradas nos aplicativos de fertilidade, ovulação e ciclo menstrual.

Diante da precarização cada vez mais intensa da vida, os feminismos populares do sul colocaram a reprodução social no centro. No mesmo tom, constatamos que nos Estados Unidos isso vem acontecendo desde a transformação nas narrativas e nos enquadramentos em que se inscreve a luta atual contra o retrocesso do direito ao aborto. Ao falar de “justiça reprodutiva” e não apenas de direitos, gera-se um deslocamento para pensar a reprodução em sentido amplo, conectando-se com o trabalho (remunerado e/ou não remunerado), com a migração, com os territórios de precariedade e com as formas de agressão sistêmica que implica a violência neoliberal.

Como explica Loretta Ross, uma das fundadoras históricas do SisterSong, a justiça reprodutiva abre um quadro de análise que se refere ao direito à autonomia, incluindo o direito de ter ou não filhos, bem como o direito de ser mãe em comunidades sustentáveis e saudáveis. Insistimos: isso também permite que o quadro mais liberal do aborto funcione como uma “escolha” (choice) individual e como um direito que pode ser sustentado isolado dos outros. Ao longo das décadas, as discussões e visões foram tomando outros rumos a partir das intervenções dos feminismos negros, onde as formas de entender tudo o que estava em jogo quando se falava em “reprodução” foram ampliadas e conectadas.

Lenços verdes e lenços brancos

No momento de avanço de uma extrema direita conservadora que tem na mira os corpos de mulheres, lésbicas, travestis, trans e não-binários, acreditamos que essas conexões, embora vinculem histórias específicas de diferentes territórios, expressam a força de um internacionalismo que se manifesta no cotidiano de cada luta. A tomada da rua com o verde expressa uma luta feminista que vai além do território particular e nos sustenta em uma teia de solidariedade internacional que, esperamos, esteja apenas começando.

O lenço branco das Mães da Plaza de Mayo é um símbolo global da luta dessas mulheres contra o terrorismo de Estado da última ditadura militar-civil-empresarial-clerical na Argentina (1976-1983), na qual o papel da CIA foi fundamental na coordenação da repressão nos níveis local e regional. Essa simples vestimenta, originalmente feita de uma fralda de pano, as converteu num ícone de resistência.

Com a massificação do feminismo, a reivindicação das Mães e Avós tornou-se um elemento chave ao traçar genealogias com aquela linha histórica de politização de filiações e afetos, de reivindicar o radicalidade e sua tenacidade em pedir memória, verdade e justiça. A Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto, ao se popularizar e virar maré verde em 2018, tornou-se um símbolo igualmente fundamental na multiplicação do lenço verde. A conexão entre as duas cores constrói um caminho particular e sinuoso, onde o lenço verde, além do direito ao aborto, está atrelado à ideia de que “a maternidade será desejada ou não será”.

Nos Estados Unidos, a sequência do lenço branco-verde pode ser vinculada ao que as mobilizações das mães das crianças mortas pela violência policial vêm propondo ao conectar a justiça reprodutiva com o combate à violência policial que, como afirma Monica Raye Simpson, “destrói famílias inteiras e rouba as crianças das famílias negras.” As manifestações contra a criminalização do aborto e contra o assassinato de Walker pela polícia de Akron tornaram essa conexão explícita.

Esse é um ponto fundamental, pois é no marco da luta pela justiça reprodutiva que se visibiliza a situação de vigilância, criminalização e precarização da vida das mulheres pobres e racializadas para poder ser mãe e sustentar uma vida digna dentro de comunidades sustentáveis. Ao vincular as discussões sobre o aborto com uma dimensão coletiva e de classe, como tem sido feito na América Latina, também visa mostrar como as políticas econômicas do capitalismo racial foram limitando a possibilidade de maternidade para as mulheres mais empobrecidas, marcando fronteiras explícitas de classe e raça em que as “infâncias” são protegidas.

Por um lado, as diferentes leis sobre “assassinato de fetos” que começaram a ser processadas em diferentes estados conservadores estavam gerando um cerco sistemático na vida de milhares de mulheres que, se perdessem a gravidez, poderiam receber penas de prisão por décadas. No panfleto “A criminalização da gravidez: uma guerra à reprodução”, criado pela Feminist Research on Violence, detalha-se a intensificação das políticas jurídicas voltadas ao controle e à criminalização da vida de milhões de mulheres de cor e empobrecidas pelas lógicas neoliberais.

Por outro lado, não é por acaso que outra das ações programadas para o dia 4 de julho foi convocada no prédio da polícia de imigração em Nova York sob o lema “Reproductive Justice means Immigrant Rights”. Que a justiça reprodutiva signifique direitos para os migrantes coloca novamente a reprodução no centro, pois que tipo de condições materiais para a reprodução da vida possibilitam um sistema que vem operando a partir da desapropriação múltipla de territórios, moradia, alimentação, assistência médica etc?! Como a criminalização do aborto se relaciona com a longa história de esterilização forçada de mulheres negras e mestiças em prisões, como o caso que veio à tona há dois anos da prática de esterilização forçada de mulheres migrantes nas prisões do ICE em Irwin County, Geórgia?

São essas conexões que devem ser fortalecidas na prática política de construção de alianças. Muitas vezes, porém, são subordinadas quando o ativismo (em geral, organizações mais consolidadas) se concentra na captação de recursos, nas festas de gala, perdendo o vínculo com as bases. Como Judith Butler escreveu recentemente sobre os argumentos do tribunal: “Se a direita nos une como objetivo de forma mais eficaz do que nós nos unimos como movimento, então estamos perdidxs”.

Poderíamos dizer também assim: a contra-ofensiva patriarcal, conservadora e neoliberal nos lê a partir de nossos elementos comuns; prioriza —na chave de nos transformar em “ameaças e inimigas”— o que reivindicamos como uma subversão de uma ordem classista, racista e patriarcal. É aí que devemos tirar uma lição fundamental dos movimentos do sul: sua capacidade de articular, compor e sustentar diferentes planos de ação simultaneamente, mas sempre sabendo que é a mobilização na rua e o trabalho de base que podem alterar uma relação de força, aquela que é capaz de se expressar em alianças concretas e transversais.


¹ Os chamados pañuelos são lenços que fazem parte da história do movimento feminista argentino e, últimos anos, por meio dos panos verdes, tornaram-se expressão global de luta em favor da legalização do aborto.  

² “Aborte o capitalismo”; “aborte à Corte”.

³ RiseUp4AbortionRights é um movimento feminista, organizado no início de janeiro de 2022 nos EUA por Merle Hoffman, Lori Sokol, Sunsara Taylor e outras ativistas, o qual tem atuado pelos direitos ao aborto através da tomada das ruas, da agitação permanente e de protestos por meio da não violência.

Publicado originalmente no site argentino Jacobin.

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