A Aurora pintada pela artista italiana Artemísia de Gentileschi em pleno Barroco Italiano, talvez, possibilite um diálogo com as emoções e o poder, os diferentes sentidos que essa palavra um tanto puída ressoa em nosso cotidiano. Aurora se apresenta no imaginário mitológico como essa deusa que abre o caminho para o amanhecer, nos anuncia a chegada do sol. Com seus abraços abertos e seu dorso levemente torcido, podemos pensar como seria possível esquivar-se da invasão cotidiana de um arsenal de imagens, de notícias e de atravessamentos distópicos a cada manhã que se inicia. Entre o remoto mundo de nossas circunvizinhanças até o Estado policialesco em que nos encontramos, quantas emoções produzidas e qual sua relação com o poder? Qual lugar ocupam as emoções em nossos corpos sujeitados pelos acontecimentos?

Na conferência apresentada em 2016 intitulada “Que emoção! Que emoção?” o teórico de arte francês Georges Didi-Huberman reflete a partir de uma série de imagens presentes na história da arte, a importância das emoções, como estas sobrevivem em nosso imaginário e como nos relacionamos com elas. Huberman tensiona a relevância ético-estética de nos emocionarmos com as coisas do mundo ou de como somos educados a reprimir nossas emotividades frente a um ideal de razão e de controle dos sentidos. Através das nossas emoções somos capazes de perceber a forma de existência em que escolhemos existir, as atitudes frente as situações, a fruição diante de uma obra de arte; os contornos sensíveis que demandam a coragem em expor nossa fragilidade diante dos sobressaltos apresentados pelos acontecimentos. Nesse ritual de sensações, muitas vezes não estamos preparados ou não compreendemos o que nos passa.

As emoções são lugares habitados por recortes de gênero, de raça, de desigualdades sociais, de contextos culturais e históricos. As mulheres, as crianças e os loucos são a tríade autorizada ao sensível, por considerar-se a sensibilidade um lugar menor. Choramos, nos entristecemos, sentimos alegria, raiva, tédio, consternações, encantamento, de formas suntuosas e variadas. Cada época transborda seu refratário de emoções que dizem respeito aos sujeitos que a compõe. Como se formam nossas emoções em meio a virtualidade dos sentidos? Quando as representações de contentamento, desgosto, falta, alegria, medo, amor são representados por emojis? O que um emoji tem a dizer da vida emocional de um sujeito? É como se uma espécie de linguagem perdesse seu lugar para uma outra, ideogramática, que pudesse reduzir nosso sentir a uma “carinha”. Percebo o esvaziamento da paciência para a emoção, é como se nunca tivéssemos falado tanto em sentimentos, da importância do emocional, de uma formação que precisa reiterar o caráter sensível de se viver. Mas que ao mesmo tempo, precisa neutralizar a dor que as emoções podem causar com múltiplos dispositivos de distração, anestesias e diagnósticos compulsivos. Assim, vamos perdendo a atenção sobre si e o mundo.

Não é à toa estarmos diante de confrontos ético-políticos que expressam sujeitos com uma vida psíquica difamada, com poder para produzir as emoções mais vis e serem aplaudidos por uns e produzirem raiva e descontentamento em outros. Didi-Huberman relata que a emoção é uma forma de ação diante de algo que nos afeta. Por isso, ela é política, mas para tanto precisamos dar voz a ela, compreendê-la para além do excesso. Se relacionar com as nossas emoções é se despedir de práticas ressentidas, lembrando que ressentimento é um sentimento em seu estado latente de repetição e que muitas vezes está soterrado em lugares de difícil acesso dentro de nós. Já que nossas emoções se constituem como “fósseis” pertencentes a uma longa história que mora no nosso inconsciente, é preciso olhar para esses sentimentos que sobrevivem em nós, para que sejamos capazes de observarmos a nós mesmos e o contexto cultural que se apresenta. Deixar ou se esquivar de habitarmos os nossos sentimentos é como dar autorização ao carrasco que se manifesta nos papéis de governos autoritários, indústria farmacêutica, relações abusivas, de dizer como devemos ou podemos sentir o mundo.

Os sentidos são um lugar de presença que nos exige uma força plástica diante da existência, quanto mais honestos formos diante do que sentimos menos atrocidades serão cometidas. Por isso, a importância do viver artístico e sua história, seja das artes visuais; do teatro; da fotografia; da dança; da música ou do cinema ser experienciado como “uma longa história figurada das emoções”, dos gestos emotivos. Quando se impede uma cultura e seus povos de terem acesso a essas expressões, é como impedir que floresça em cada sujeito a possibilidade de criar esteticamente diante das sensibilidades e acontecimentos que se apresentam, sejam estes de luto ou vontade de vida.

A filósofa estadunidense Judith Butler em sua obra A vida psíquica do poder: teorias de sujeição apresenta os meandros do poder a partir da vida psíquica, apropriando-se das teorias da filosofia e da psicanálise. Se o poder possui uma vida psíquica precisamos reconhecê-lo, quais são os seus mecanismos de ação, como podemos reconhecê-los e assim, compreender os disparates emocionais que nos sobressaltam diante do medo, da insegurança, da opressão e de supostas dependências.

Butler nos fala da construção imaginária da necessidade de um soberano para nos apoiarmos, argumenta a partir da psicanálise e da construção de nossa vida psíquica na infância. Pois, nessa fase já se esboça a dependência por alguém que construímos como maior que nós mesmos. A questão é: continuamos repetindo isso quando não mais necessitamos de alguém para nos alimentar, vestir, falar. Mesmo assim, acreditamos precisar de alguém que nos diga como nos alimentar, como nos vestirmos, como devemos falar. É como se fôssemos formados a partir de uma voz de autoridade que possuímos profunda dificuldade de abandonar: “Consideremos que o sujeito não seja apenas formado na subordinação, mas também a subordinação forneça a condição de possibilidade contínua do sujeito. O amor de uma criança é anterior ao julgamento e à decisão; quando a criança é cuidada e nutrida de uma forma ‘boa o suficiente’, o amor acontece primeiro; só depois ela terá condições de discernir entre os que ela ama. Em outras palavras, não é que a criança ame cegamente (pois, desde muito cedo, já existe algum tipo importante de discernimento e ‘conhecimento’), mas sim que, para a criança persistir, no sentido psíquico e social, é preciso haver dependência e a formação do apego: não existe a possibilidade de não amar quando o amor está vinculado aos requisitos da vida. A criança não sabe ao que se apega; contudo, tanto o infante quanto a criança precisam se apegar para persistir por si e como si mesmos. O sujeito não surge sem essa ligação, que se forma na dependência, mas também nunca lhe é possível, no decorrer dessa formação, ‘enxergar’ totalmente esse elo.”

O que Butler apresenta nos permite compreender os paradoxos da sujeição na sua relação de como formamos nosso entendimento e comunicação com o outro. Até a difícil tarefa de nos emanciparmos desse lugar de dependência, por medo de não se reconhecer como ser autônomo frente ao que resta do mundo. Sendo essa a responsabilidade de se assumir quem se é, sem nenhuma perspectiva de salvação, mas de respeito e empatia mútuos. Dessa forma, as emoções são um lugar privilegiado para pensarmos esse paradoxo, qual o tempo destinado para o sensível quando somos obrigados a sermos produtivos incansavelmente? Quem não reconhece a sua subjetividade é capaz de matar e deixar-se morrer. Talvez não haja possibilidades para ser livre sem a compreensão dos sentimentos que nos pertencem. Quando somos impedidos de ter uma formação sensível que leve em consideração nosso corpo e a inventividade, perdemos aquilo que é o mais essencial em uma cultura – a possibilidade de ser livre – de construir parcerias honestas. Porque quando não se é honesto consigo mesmo, não há possibilidades de ser com o outro, o exercício é sempre de uma política dos afetos.

Para encerrar ou dar um novo início penso em Hannah Arendt que em sua palestra na década de 1960 nos EUA intitulada Liberdade para ser livre diz: “Ser livre e iniciar alguma coisa nova eram sentidos como iguais. E, obviamente, este misterioso dom humano, a capacidade de começar algo novo, tem a ver com o fato de que cada um de nós veio ao mundo como um recém-chegado ao nascer. Em outras palavras, podemos iniciar alguma coisa porque somos inícios e, portanto, iniciantes. Na medida em que a capacidade de agir e falar não é senão outro modo de agir – nos torna seres políticos”. Que não deixemos nossas emotividades soterrarem diante do absurdo, mas que ali onde nos querem “servidão voluntária”, sejamos livres o suficiente para sermos iniciantes de um novo caminho.

 

*Carolina Votto Doutoranda e Professora do Centro de Ciências da Educação – UFSC.

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    Carolina Votto é professora no Departamento de Metodologia de Ensino (UFSC). Doutoranda em Educação na linha de Filosofi...

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