Artista e professora no Departamento de Artes Visuais na Universidade do Estado de Santa Catarina desde 2006, Silvana Macêdo atua nas áreas de pintura, multimeios, instalação multimídia e artes midiáticas. Seus trabalhos estabelecem um diálogo entre a arte contemporânea, ciência, natureza e tecnologia, o tema de seu doutorado (2003), na Northumbria University, Newcastle Upon Tyne, no Reino Unido. Desde então desenvolve projetos artísticos que envolvem tecnologia de telepresença com o uso de novas, antigas, high e low tech sobre a temática do meio ambiente e do feminismo. Com uma poética intimista, acaba de encerrar duas exposições simultâneas na Galeria Municipal de Arte Pedro Paulo Vecchietti e no Memorial Meyer Filho, em Florianópolis (SC) em que apresentou pinturas, gravuras e uma performance. Agora integra a Bienal de Curitiba – Pólo SC, no Museu da Escola Catarinense. A obra Nó Materno, uma fotografia digital, situa-se nas recentes experimentações estéticas da artista que põem o foco no maternalismo, abordagem usada no pós-doutorado na Glasgow School of Art, Escócia (2014), em andamento no departamento no qual atua na Udesc. O projeto de pesquisa intitulado O Poder Materno e a Arte Contemporânea investiga a representação do maternal na arte contemporânea e sua relação com os debates feministas. Palavra de origem inglesa, o maternalismo tenta desconstruir a carga patriarcal e opressiva do mito da maternidade, um viés que ajuda a pensar a recente série de fotografias Devoção e Nó Materno; e a videoinstalação Sombra de Névoa. Nesta conversa exclusiva para o portal Catarinas, Silvana Macêdo compartilha seu refinado pensamento que estabelece um diálogo com a histórica representação do corpo feminino na arte. “Por séculos as mulheres assumiram o lugar de modelo, enquanto que os homens ocuparam o lugar de criador, construindo à sua maneira e de acordo com seus interesses, uma imagem do corpo feminino como centro de um espetáculo feito para o olhar masculino”, diz ela.

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Nanquim Macula Silvana Macêdo

Catarinas – Pesquisadora e artista que investiga, entre outros temas, a representação do maternal na arte contemporânea e sua relação com debates feministas, antes de tudo, qual é a diferença entre maternidade e maternalismo?
Silvana Macêdo – A distinção está presente na literatura feminista sobre a função materna. Em debates feministas na década de 1970, escritoras como Jessie Bernard e Adrienne Rich, fizeram distinções importantes entre a instituição patriarcal da maternidade (motherhood) e a real experiência feminina da maternar (mothering). Na língua inglesa, portanto, foi feita a distinção entre os termos maternidade (motherhood) e maternalismo (mothering), sendo que o primeiro é considerado nos debates feministas um termo profundamente carregado de ideologia patriarcal, enquanto que o segundo passou a ser adotado no discurso e práticas feministas como um discurso de resistência. A distinção continuou sendo articulada depois nos trabalhos de Tuula Gordon, Rose Glickman e Fiona Green, entre outras autoras.

Catarinas – Por que na história da arte, esse tema custa a ser abordado? As primeiras referências surgem nos anos 1960 e sobretudo nos 70 nos Estados Unidos e no Reino Unido. Betty Friedam, inserida na segunda onda do feminismo, escreveu o emblemático A Mística Feminina em 1963. À luz deste século, não há uma lentidão?
Silvana Macêdo – Nas décadas de 1960 e 70, falar de maternidade dentro do movimento feminista era delicado, pois as mulheres estavam buscando romper com o papel tradicional da mulher exclusivamente como mãe e esposa, sendo este um ponto fundamental do discurso patriarcal. A liberação sexual, a luta pela igualdade de direitos sociais e políticos, enfim, havia muitos tópicos na agenda feminista daquela época em que a maternidade parecia um assunto pouco adequado para algumas artistas feministas. O livro Um Amor Conquistado: O Mito do Amor Materno, da filósofa francesa Elisabeth Badinter, publicado em 1980, é um marco no estudo feminista da desconstrução da maternidade. Badinter argumenta que a ideia do instinto materno é um mito, um conceito historicamente construído, portanto não faz parte necessariamente do ideal de vida de todas as mulheres. Voltando ao contexto artístico, acredito que a aversão ao tema persiste até hoje… Mesmo com uma crescente produção artística de mulheres explorando maternalismo nos seus trabalhos, ainda encontramos uma dificuldade para mostrar esta produção. Há uma rejeição do tema por instituições artísticas. Esta é minha percepção e também a de outras artistas brasileiras e estrangeiras. Por exemplo, no Canadá, Myrel Chernick, curadora da exposição Maternal Metaphors, relata no catálogo da mostra a dificuldade de realização do projeto, que levou seis anos até encontrar uma instituição que o acolhesse! Posteriormente o projeto teve continuidade com mais edições inclusive em outros países. Muitas vezes o tema materno é considerado muito “feminino” por instituições artísticas, que querem ter um ar de “descolada” e jovem. Por outro lado, pelas próprias artistas e feministas parece ser um tema percebido como uma posição conservadora, e talvez por isso seja um pouco evitado? Não sei bem dizer, é perigoso generalizar…

Catarinas – Como surge o seu interesse de aproximar arte contemporânea e maternidade?
Silvana Macêdo – Quando me mudei com a família para o Reino Unido em 2010, meu filho tinha apenas três anos. Naquele momento de vida, a maneira que encontrei de sair de um bloqueio artístico paralisante foi o de explorar justamente a condição materna no trabalho, já que isso era minha nova realidade. Assim, comecei as séries fotográficas Devoção e Nó Materno; e a videoinstalação Sombra de Névoa. Há um forte conteúdo autobiográfico nesta pesquisa, da produção artística à análise de obras de diferentes abordagens de outras mães artistas. Permeando tudo isso, estudo também os debates teóricos e discussões de caráter mais político, sobre a questão dos maternalismos contemporâneos.

Silvana Macêdo

 Catarinas – Quais seriam as maiores tensões entre feminismo e maternalismo?
Silvana Macêdo – A relação do feminismo com a maternidade foi muitas vezes conflituosa e ambígua, pois mesmo havendo uma profunda crítica da maternidade por algumas autoras feministas, por outro lado encontramos uma grande celebração da experiência materna por outras autoras. A argumentação crítica contra a maternidade considera a mesma como uma fonte de opressão e controle da mulher, pois com ela vem o isolamento doméstico e a exclusão do mercado assalariado e perda de oportunidades de crescimento profissional. A ideologia da “boa mãe”, como afirma Amber Kinser, se baseia em interesses de dominação masculina, do capitalismo, do poder religioso, homofobia e racismo. Na corrente feminista em que o maternalismo é exaltado, as autoras argumentam que a experiência materna pode ser uma importante fonte de poder para as mulheres.

Catarinas – Sem pendores autobiográficos e intimistas no restante de sua produção, como explica em sua trajetória as exposições Entranhas e Mácula, e a performance Maculada?
Silvana Macêdo – Na verdade, apesar de ter sempre tido uma camada política mais explícita em meus trabalhos anteriores, houve também um caráter autobiográfico subjacente. Toda minha produção é fortemente ancorada na experiência vivida. Por exemplo, nos trabalhos que desenvolvi em colaboração com a artista Henna Asikainen, apesar de nunca termos articulado isso abertamente, pois nosso foco era na mediação da arte e ciência na relação humana com a natureza, o processo de produção dos trabalhos foi muito marcado pela dinâmica do nosso relacionamento. Isso se torna explícito na videoinstalação ar, quando referenciamos as duas florestas, finlandesa e brasileira, para falar do problema do aquecimento global. Nossas raízes culturais se tornam entrelaçadas ao conteúdo político e ambiental. Mas em Entranhas e Mácula, a questão autobiográfica ganha maior visibilidade. Mesmo assim ali, estou dialogando com muitas outras questões, por exemplo a histórica representação do corpo feminino na arte. Por séculos as mulheres assumiram o lugar de modelo, enquanto que os homens ocuparam o lugar de criador, construindo à sua maneira e de acordo com seus interesses, uma imagem do corpo feminino como centro de um espetáculo feito para o olhar masculino. Com a arte feminista, a mulher se torna protagonista, e desde a década de 1960 vêm trabalhando com seu próprio corpo. Nós mulheres assumimos a tarefa de nos auto representar e nos autodefinir.  Nas exposições Entranhas e Mácula faço um mergulho no meu corpo, exploro a relação da saúde com as emoções e memória. Percebo como o corpo foi marcado pelos acontecimentos traumáticos e pelos significados que atribuí a eles. Penetrar no corpo é também uma tentativa de decifrar e reinterpretar os conteúdos emocionais nele ancorados. Acho que o processo de cura está, muito ligado a hermenêutica.

Nanquim Macula Silvana Macêdo

Catarinas – Considerando as noções de interseccionalidade embutidas na teoria feminista do maternalismo, tendo em vista que os trabalhos de Entranhas e Mácula podem estão associados à perda da mãe, é possível aproximá-los das investigações sobre a representação do maternal na arte, a exemplo da série Nó Materno? Se não, qual é a diferença?
Silvana Macêdo – Nas exposições Entranhas e Mácula exponho minhas vísceras, minhas partes mais íntimas, especialmente os órgãos que foram afetados ou envolvidos nos mecanismos patológicos do lupus eritematoso sistêmico, um diagnóstico que tenho há 30 anos. Esta condição crônica se manifestou após a morte da minha mãe, quando eu tinha 20 anos. Na série Nó Materno foquei no relacionamento de algumas mulheres mães com suas mães. Meu interesse foi o que investigar as possíveis mudanças no relacionamento entre mães e filhas, quando as filhas passam pela experiência da maternidade. A ideia de fotografar outras mulheres com suas mães, partiu de um desejo de ter tido esta experiência, pois minha mãe morreu antes de eu me tornar mãe. Neste sentido indireto, esses trabalhos estão relacionados mesmo.

Pintura Entranhas Silvana Macêdo

Catarinas – O que é o poder materno no século 21? Já é possível falar em uma nova concepção de maternidade?
Silvana Macêdo – De acordo com Andrea O’Reilly, a teoria feminista do maternalismo começa com o reconhecimento de que tanto as mães quanto os filhos se beneficiam quando a mãe vive sua vida e age a partir de uma posição de poder, agenciamento, autoridade e autonomia. Portanto, em muitos debates feministas a maternidade deixou de ser necessariamente considerada uma experiência opressiva, mas passou-se a explorar as condições e estruturas socioeconômicas que interferem na capacidade das mulheres de exercerem seu poder materno. Como ressalta Kinser, nesta abordagem vamos além da simples questão de que perguntamos se a mulher tem ou não poder de decisão ou agenciamento, pois entende-se que sim, mas a questão importante reside em examinar uma imagem mais complexa do poder materno. Hoje é mais produtivo perguntarmos quais os problemas específicos que a mãe enfrenta no contexto social, econômico, entre outros, que interferem na sua capacidade de exercer seu poder, escolher o tipo de educação ela quer dar ao filho, por exemplo. Ao longo das décadas, nossa concepção de família e maternidade mudou, hoje estamos mais conscientes como sociedade de que o modelo tradicional do núcleo familiar não se compõe necessariamente de uma mãe, um pai e filhos, mas sim de uma diversidade de formas familiares. Portanto, nas discussões feministas atuais sobre maternalismo, a agenda se ampliou para considerar a intersecção entre a experiência materna e questões de raça, sexualidade, gênero, classe entre outros aspectos identitários da mãe, considerando também como as mulheres vivem globalmente, adquirindo portanto, um caráter politicamente mais amplo e inclusivo.  Mas essas novas abordagens convivem com as concepções mais tradicionais, claro. Isso também é parte da escolha das mulheres, que tipo de mãe ela prefere ser, quando tem a possibilidade de escolher… Quando pensamos nas trágicas circunstâncias de muitas mães em países em guerra, ou áreas de pobreza extrema, a margem de possibilidades de escolha são mínimas. Não há uma conceito universal, as coisas são complexas e uma multiplicidades de questões surgem em cada contexto.

Serviço
Florianópolis
O quê: Antípodas Contemporâneas na Bienal de Curitiba – Pólo SC
Quando 30.9.2017 (abertura). Até 13.11.2017
Onde: Museu da Escola Catarinense (Mesc), rua Saldanha Marinho, 196, centro, Florianópolis (SC), tel.: (48) 3664-8110
Quanto: Gratuito

*Néri Pedroso, jornalista. Assina a coluna Mosaico no jornal Notícias do Dia.

 

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