Em mais de 12 horas de atividades, o 8Marielle em Florianópolis foi um dia histórico para a luta feminista na capital. Milhares de mulheres se engajaram em ressignificar o Dia Internacional das Mulheres, demonstrando que, mais do que comemoração, esse é um dia de greve. Dia também de tomar as ruas na reivindicação de nossos direitos, pela manutenção de nossas vidas, enfrentando e denunciando uma sociedade machista, racista e LGBTfóbica. Ao longo de toda a sexta-feira, que contou com a presença do sol, da chuva, de um grande arco-íris, mais de cinco mil mulheres acompanharam as rodas de conversa, as tendas temáticas, as apresentações artísticas e as falas no palco montado em frente ao Terminal de Integração do Centro (TICEN).

 

Sequência de fotos: Ana Carolina Dionísio

Entre atos políticos e atos de afeto, o 8M em Florianópolis terminou com uma grande marcha que refletiu em seus cantos e palavras de protesto o descontentamento com o cenário político reacionário e moralista que o País vem enfrentando e deixou o seu recado: as feministas estão alertas, são muitas, e vão transformar, a partir da união das mulheres, a lógica machista, racista e LGBTfóbica que estrutura há séculos não só o Brasil, mas a América Latina.

Juliana Passos cantou seu axé de resistência e espiritualidade/Foto: Beatriz Coelho
MC 47 denunciou o abuso da autoridade policial nas comunidades em seu rap/Foto: Beatriz Coelho

A revolução feminista já começou e nada pode parar a força de quem luta contra a injustiça social. Como dizia um cartaz: “Dias mulheres virão”. As diversas apresentações artísticas deram o tom da concentração para a marcha do 8M. Juliana Passos, MC k47, MC Clandestina, Yagbás, Samba das Yabás e Baque Mulher subiram ao palco durante a tarde. Também foi realizada pela Frente Catarinense pela Legalização do Aborto a performance “Nós abortamos”.

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As sementes deixadas por Marielle Franco, assassinada em 14 de março do ano passado, fizeram ecoar nas ruas centrais de Florianópolis as suas bandeiras, nossas bandeiras “Marielle perguntou, eu também vou perguntar, quantas mais têm que morrer para essa guerra acabar?”, questionaram em coro as mulheres em marcha. Ao sair em caminhada, a banda de percussionistas mulheres Cores de Aidê, que trouxe cartazes com a frase “Ninguém solta a mão de ninguém” se somou à marcha, que passou por um local emblemático, a Assembleia Legislativa de Santa Catarina (ALESC).

A feminista Clair Castilhos, primeira vereadora de Florianópolis, seguiu na linha de frente/Foto: Ana Carolina Dionísio

As mulheres deixaram um recado para a deputada declaradamente antifeminista Ana Caroline Campagnolo (PSL-SC), que lançava um livro de ataque à trajetória feminista. Vaias e os gritos “Fora, Campagnolo”, “Nem deputada e nem do lar, a mulherada está na rua para lutar”, “Feminismo é revolução!” fizeram eco nas paredes da Alesc.

A marcha seguiu pela avenida Mauro Ramos e retornou pela avenida Hercílio Luz e Praça XV, terminando em frente ao Ticen. Por duas horas, em torno de oito mil participantes, conforme estimam as organizadoras, alertaram a população que se encontrava na rua, retornando do trabalho, das aulas, em bares e restaurantes, sobre os ataques do atual governo às trabalhadoras e trabalhadores: “Trabalhadora, preste atenção, o Bolsonaro tá do lado do patrão” e “Eu sou mulher e vou lutar pelo direito de me aposentar”. A legalização e descriminalização do aborto também foi uma das reivindicações das mulheres durante a caminhada, assim como o enfrentamento ao capitalismo e ao fascismo e a luta diária contra o machismo, o racismo e a homofobia.

Os direitos das mulheres em debate

Logo que o dia 8 começou, as rodas de conversa tiveram início na tenda montada em frente ao Ticen, que ficou lotada de participantes durante todas as temáticas debatidas. A primeira delas, abrindo a programação do 8M em Floripa, teve como tema “Via campesina: resistência do campo à cidade”. A advogada popular e representante do MST, Daniela Rabaioli, uma das integrantes da roda, falou sobre a reforma da previdência. Segundo ela, a Via Campesina traz como principal eixo para o 8M a questão da previdência.

Roda abordou os desafios das mulheres do campo, de assentamentos e de áreas de barragens/Foto: Carol Concado

“Ela é uma contrarreforma porque ela vem para retirar direitos e não para melhorar a condição de vida da classe trabalhadora. Hoje temos uma garantia constitucional da seguridade social, que compreende previdência, assistência social e saúde. A proposta enviada ao Congresso é a desconstitucionalização deste direito, a perda da garantia constitucional”, afirmou.

Já o déficit da previdência, de acordo com Daniela, não foi causado pelos trabalhadores, mas pelas próprias políticas do Estado, sendo uma delas as isenções fiscais. “Hoje, as trabalhadoras e trabalhadores do campo tem uma aposentadoria especial de um salário mínimo, não é nenhum privilégio, mas um valor para garantia existencial destas pessoas. Para muitas mulheres, a aposentadoria é o momento em que pela primeira vez elas recebem um recurso próprio. Hoje as agricultoras se aposentam com 55 anos e os agricultores com 60. Pela proposta, ambos se aposentarão com 60 anos”, explica a advogada.

“Branquitude e Negritude” foi o tema da segunda roda de conversa, que contou com a participação de Maria Aparecida Conceição, Vanda Pinedo e Lia Vainer. A representante do Movimento Negro Unificado (MNU), Vanda Pinedo, falou sobre as violências perpetuadas pelo racismo estrutural contra a população negra na sociedade brasileira e destacou que falar sobre racismo é falar sobre o privilégio branco, de um lugar que oprime e que não consegue entender a opressão negra. Ela ressaltou o racismo estrutural presente no caso da Mãe Gracinha, mulher quilombola que teve suas duas filhas retiradas por decisão Judicial, no município de Paulo Lopes.

Vanda Pinedo do MNU falou sobre o racismo estrutural que violenta a população negra/Foto: Ana Carolina Dionísio

“Somos 54% deste país e vamos continuar gritando, não tem como a população negra ser silenciada. É preciso que ao falar de sindicalismo, se fale do povo negro. Que ao falar do feminismo, se fale desde a África, que foi invadida e as mulheres negras tornadas escravas no mundo. O caso de Marielle é emblemático, assassinada há um ano e ainda o Judiciário não conseguiu descobrir nada”, afirmou Vanda.  A representante do MNU também criticou o decreto que facilita a posse de armas, destacando que a medida vai aumentar a morte da população negra.

“Para o MNU, estar no 8M é conseguir aliados na luta contra a violência que o capitalismo, o racismo, o machismo e a homofobia nos impõe”.

Os direitos das mulheres negras, transexuais, lésbicas e com deficiência foram debatidos na roda “Mulheres e Diversidade”. Victória Spinola falou sobre a importância de inclusão real das mulheres trans no feminismo. “Vamos segurar a mão de todas, mas nem todas querem segurar as nossas mãos. Existe uma marginalização e subalternização das mulheres trans no trabalho, até dentro da família. Então, é importante segurar a mão de mulheres que não tiveram as suas mãos seguras”, afirmou.

Sobre a questão de gênero e deficiência, Fernanda Busse afirmou que ser mulher com deficiência é lutar para que não existam hierarquias entre as pessoas. “Durante muito tempo da minha trajetória não me reconheci como uma mulher com deficiência e isso reflete um termo que hoje tem sido falado, que é o capacitismo, que tratada as pessoas com deficiência como incapazes de amar, de estudar, de ser uma pessoa. Esse termo hierarquiza as pessoas e a gente vai se entendendo como menos merecedora de ocupar os espaços”, falou. Fernanda abordou também os altos índices de violência contra mulheres com deficiência, pois infelizmente muitos homens acreditam que esses corpos são mais fáceis de abusar. “Precisamos mostrar que é um corpo que deve ser respeitado”, enfatizou.

Guilhermina Cunha, da Marcha Mundial de Mulheres (MMC), representou na roda de conversa as mulheres lésbicas e bissexuais e começou a sua fala demarcando a diferença entre orientação sexual e identidade de gênero. “Orientação sexual é o meu desejo, identidade de gênero é como me vejo. Sou uma mulher lésbica e cis, que até os anos 1990 era considerada doente, até 1999 acreditavam que precisava de terapia para me curar”, afirmou ela, lembrando a patologização que pessoas LGBTs enfrentam há algumas décadas. A violência contra mulheres lésbicas também foi um dos temas trazidos por Guilhermina. “A violência contra as sapatão e as trans nasce dentro de casa. É só ver as estatísticas do movimento. Dizem que Floripa é gay friendly, não para as manas que chegam de busão para pegar praia”.

Jeruse Romão abordou a apropriação cultural/Foto: Ana Carolina Dionísio

A experiência de ser mulher negra e de religião afro foi tratada pela Yalorixá Jeruse Romão, que trouxe exemplos de mulheres negras escravizadas, como Anastácia e Caetana, que resistiram à violência dos homens brancos para recontar a história do feminismo. “Yansã é uma feminista, Oxum é uma feminista, Yemanjá é uma feminista, as mães de Santo são Feministas”, disse. Jeruse abordou também o contexto de Santa Catarina, com um grande encarceramento de pessoas negras. “Nós temos naturalizado demais a violência contra indígenas e negros, inclusive as mulheres brancas. Cabe lembrar que se há sexismo, também há racismo no sexismo. Se há racismo, há sexismo”, ressaltou.

A legalização e descriminalização do aborto foi discutida na roda “Precisamos falar sobre aborto”, com a participação de Ingrid Maria e Morgani Guzzo. Desde tempos imemoráveis, mulheres, pessoas que têm útero, abortam e o tema continua sendo tabu em nossa sociedade, afirmou Morgani. “Estamos tentando tirar o estigma entorno desse tema, discutindo de uma forma honesta, trazendo a experiência de pessoas que abortam, falando sobre a legislação brasileira, que não é acessível para todas as pessoas, nem mesmo nos três casos de aborto legal previsto. Essa discussão que envolve a autonomia das pessoas sobre os seus corpos é uma discussão que a gente está pautando”, explicou.

O direitos ao aborto foi defendido por integrantes da Frente Catarinense pela Descriminalização e Legalização/Foto: Beatriz Coelho

Os outros temas abordados em rodas de conversa foram Violência Obstétrica, com Ivone Borges e Ariela Rodrigues; Maternidade e descentralidade do cuidado, com Ana Bezerra, Gabriela Balster e Juliana Dreher; Mulheres encarceradas e racismo estrutural, com Marinês da Rosa, Ana Paula Crispim e Isadora de Assis; Violência: Formas e Recursos, com Paula Lopes, Fernanda Malty e Iris Gonçalves; e Direitos trabalhistas e previdenciários, com Angela Conrad, Anna Julia Rodrigues e Edileuza Fortuna.

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