Por Clara Spessatto*

Gabriela tinha oito anos quando o pai deixou a família. A menina, que nasceu com cinco meses e meio, foi diagnosticada com paralisia cerebral, síndrome de West (um tipo raro de epilepsia), deficiência visual e distúrbio da deglutição que não permite digerir nada via oral. Dessa forma, ela requer inúmeros cuidados, como sonda para alimentação, cadeira de rodas, fralda e vigia 24h por dia. Agora com 12 anos, mede quase 1,30m, enquanto a mãe, Vera, 1,53m. Vera alega estar acostumada aos desafios diários. Apesar de ter o pai da criança em casa por oito anos, ela diz que sempre foi a responsável por cuidar da filha. “Mães solos são aquelas que, mesmo com os maridos dentro de casa, fazem tudo sozinhas”, relata.

Apesar de pagar pensão, o ex-marido de Vera raramente visita a família, em um encontro mensal de, no máximo, cinco minutos. Assim, cabe a ela lidar com tudo sozinha, sem o apoio de ninguém.

“Às vezes, as pessoas dizem: nossa você é super, mas a gente não é. A gente senta e chora quando a criança dorme. Não é fácil manter uma casa, uma criança com deficiência sendo cuidada e, ainda, quando abre a porta da sua casa, ter que sorrir para todo mundo e dizer que está tudo bem. Às vezes, não está tudo bem”, conta em seu depoimento. 

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Imagem: Vera Farias com a filha | Crédito: arquivo pessoal.

Assim como Gabriela, outras milhares de crianças com deficiência são abandonadas por seus pais e cuidadas por outros membros da família, principalmente as mães. Essas, muitas vezes, não recebem pensão e vivem do auxílio do governo ou de trabalhos informais. Ainda não existe um censo que revele a quantidade de pessoas com deficiência sem o registro paterno ou vítimas de algum tipo de abandono por parte do pai, o que mostra como a questão se encontra invisibilizada na sociedade brasileira.

Na pesquisa sobre o abandono paterno diante do diagnóstico de microcefalia, realizada por Diego Gomes da Silva Melo e Mikaelly Cavalcanti Borges, foi observado o aumento dos casos de negligência paterna após o surto do Zika Vírus. O estudo foi feito na Faculdade de Ciências Humanas de Olinda – PE, em 2019. Diego Gomes relata a dificuldade que teve para encontrar dados relativos ao assunto e pais dispostos a prestar depoimentos.

Após algumas entrevistas com aqueles que não abdicaram de seu papel, percebeu que poucos de fato aceitavam os filhos, sendo comum o abandono afetivo. Segundo Diego, algumas das causas que levam ao abandono, tanto físico quanto afetivo, são o preconceito, ainda muito presente na cultura brasileira, o receio da reputação de ter um filho com deficiência e a quebra de expectativa, como se fosse a morte do filho idealizado.

A psicóloga e pesquisadora na área Alana Lazaretti, por sua vez, relata ouvir com frequência a informação de pais que abandonaram suas crianças por não se julgarem preparados e aptos para cuidar de alguém com deficiência. A própria Vera alega que o ex-marido usava a falta de coordenação motora como justificativa para fugir do seu papel de pai. Já as mães, segundo ela, são obrigadas a se reorganizar. 

Apesar da parte difícil, Vera conta dos mágicos momentos em que sua filha passa a mão no seu rosto e a chama de mãe. Demorou sete anos para ela ouvir a palavra “mamãe”. Assim, todo trabalho é recompensado com um gesto e uma palavra. 

A falta da figura paterna 

“Por que eu não tenho pai?” É o que Nicolas pergunta todo segundo domingo de agosto, quando se comemora o Dia dos Pais. Apesar de não ter nenhum tipo de deficiência, o menino de 14 anos possui sérias crises de epilepsia e a irmã mais nova, Camila, de seis anos, foi recentemente diagnosticada com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). Renata, a mãe das crianças, sempre cuidou delas sozinha, sem nenhum apoio, nem mesmo financeiro, dos respectivos pais. 

A maior dificuldade da família se encontra na questão financeira, porque, como nenhum dos filhos se enquadra em casos de deficiência, a mãe não recebe subsídio do Estado e, por ter crianças que exigem mais cuidado, também não consegue um trabalho formal. Há horas em que tudo o que precisa é de ajuda, mas, como ela menciona, “pedir é complicado”. Além das dificuldades para sustentar a família, Renata comenta que o mais doloroso é ver o filho se perguntando os motivos que levaram o pai a deixá-lo. 

Para Diego Gomes da Silva Melo, mesmo com a presença materna, a ausência do genitor afeta o desenvolvimento cognitivo, social e afetivo da criança, gerando sérios problemas de confiança e de autoestima. Esses efeitos são os mesmos para pessoas com ou sem deficiências.

“Vale lembrar que são crianças, ou seja, pessoas, antes de qualquer deficiência”, reforça Alana Lazaretti. 

Esquecidas pela sociedade 

Ana** é mãe solo de primeira viagem. A filha, Catarina*, foi diagnosticada na gestação com mielomeningocele, um tipo de espinha bífida que causa um defeito no fechamento da coluna vertebral. Hoje, com dois anos, a criança necessita de inúmeros cuidados e conta com uma extensa equipe de médicos disponibilizada pelo SUS, no Hospital Infantil, de Florianópolis. O pai, segundo Ana, manda dinheiro esporadicamente e está há mais de 10 meses sem ver a filha. “Infelizmente, cuidar de qualquer criança já é muito difícil sozinha. Cuidar de uma criança com deficiência sozinha é quase que uma guerra diária”, afirma.

Uma das maiores dificuldades enfrentadas pela mãe de Catarina é a sobrecarga. Por não contar com a ajuda de mais ninguém,  toda sua rotina gira em torno dos cuidados da bebê, não tendo tempo para trabalhar ou para cuidados pessoais. Assim, ela se sente completamente solitária e esquecida pela sociedade.

“A família te esquece, os amigos te esquecem, o mercado de trabalho te exclui, o próprio Governo não te apoia em nada para ter uma vida normal. Você acaba refém da sua própria rotina”, argumenta. 

A assistente social Bia Cruz Freitas, que pesquisou o tema durante a graduação e já trabalhou em um centro de reabilitação de crianças com deficiência física, em Florianópolis, conta como o papel de cuidadora sempre foi atribuído às mulheres. Existe na sociedade brasileira, segundo ela, a naturalização do abandono paterno e a culpabilização de mulheres que não assumem uma postura de cuidadora.

Dessa forma, a figura feminina é vista como a base da pirâmide social, responsável por criar as crianças, realizar o trabalho doméstico e, ainda, cuidar de idosos e adoecidos, mostrando os resquícios do sistema patriarcal. Essa questão impacta diretamente na saúde mental dessas mulheres, afetando-as psicologicamente e emocionalmente.

Outro ponto observado por Bia Freitas, em suas pesquisas, é a dificuldade das mães solo de se manterem no mercado de trabalho. Segundo a assistente social, a realidade dessas mulheres e de suas rotinas inviabiliza o acesso a empregos formais com remuneração que supere o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e oferte estabilidade.

O BPC é a garantia de um salário mínimo mensal pago pelo INSS a idosos e pessoas com algum tipo de deficiência de baixa renda e que não trabalhem. Um dos requisitos é uma renda familiar mensal per capita igual ou menor que um quarto do salário mínimo. Dessa forma, o emprego formal, com sua exigência maior de tempo, não compensa diante da perda do benefício. 

Esse é o caso de Ana que, além do pouco e esporádico dinheiro do pai de sua filha, recebe também o BPC, mas esse não é suficiente. De acordo com ela, o subsídio do Estado só paga o aluguel e algumas contas da casa, por isso, precisa encontrar emprego na informalidade. Ela faz faxina, unha e outros serviços quando consegue.

“O problema é que a informalidade as deixa completamente vulneráveis, sem acesso à previdência social na velhice e, sobretudo, em situações de doença”, aponta Bia Freitas. 

Rede de apoio

Mariana Botelho, médica fisiatra que atua na reabilitação infantil de uma clínica em Florianópolis, conta que, apesar de muitas pessoas não saberem, o SUS oferece apoio a essas crianças e mães. Além do acompanhamento médico, os centros de reabilitação disponibilizam cadeiras de rodas, cadeiras de banho, botas ortopédicas e outros materiais.

O maior problema, entretanto, se encontra no treinamento de médicos para atender essas pessoas. Segundo Botelho, já deveriam acompanhar e instruir a mãe logo após o diagnóstico, para ela entender a deficiência do filho e conseguir proporcionar-lhe o estímulo necessário. 

Vera, Renata e Ana**, além de contarem com o serviço médico do Estado, encontraram apoio na Associação Fazer Mais, localizada na capital de Santa Catarina. A associação foi criada por Vera e mais um casal de pais com filho com deficiência. O objetivo do grupo é apoiar e cuidar das famílias com crianças com deficiência para que essas, por sua vez, possam cuidar dos filhos.

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Imagem: Encontro da Associação Fazer Mais | Crédito: arquivo pessoal Vera Farias.

Um dos projetos do Fazer Mais é o Cuidando Delas, um encontro mensal para conversar e proporcionar um momento de lazer para as mães. Além disso, a associação arrecada cesta básicas e cobertores para as famílias com baixas condições financeiras. Toda divulgação e arrecadação de dinheiro é feita pelas redes sociais @associacaofazermais. 

Dessa forma, as mães solo encontram umas nas outras uma rede de apoio e, juntas, lutam para uma sociedade que, de acordo com Ana*, não camufle essas crianças. “Sim, existe uma deficiência, mas a criança não é só isso. Quero que olhem pra gente com mais amor e compaixão, não tanto com preconceito, nojo ou pena”, suplica ela.

*Graduanda em Jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

**nome fictício criado para respeitar a privacidade da entrevistada. 

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