Um dia como hoje, há 46 anos o general do exército chileno Augusto Pinochet tomou o Palácio La Moneda e alterou radicalmente os rumos da história do país chileno. Até os dias de hoje, as memórias borradas e as lembranças encarnadas na pele, das/dos campanheirxs, amigxs, familiares desaparecidxs e assassinadxs pela truculência da ditadura militar no nosso país vizinho, estão presentes em cada 11 de setembro.

O golpe de Estado que assassinou o projeto democrático popular liderado pelo presidente Salvador Allende foi arrebatado junto com a sua vida. Nesse período de controle social totalitário, a nação chilena conviveu por um longo tempo com a censura, torturas, perseguições e com a morte. Além das políticas econômicas que agudizaram os problemas sociais, devido aos quais as camadas populares empobreceram ainda mais na ditadura de Pinochet.

No auge da ditadura chilena nos anos 80, a instrumentalidade sofisticada das torturas tiveram seus efeitos: o medo e o silencio calaram as ruas, as cidades, o país. Os dados divulgados pela Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura indicou a crueldade em que os corpos de mulheres eram submetidas. Foram um total de 3.621 mulheres detidas, 3.399 foram estupradas de forma individual ou coletiva pelos militares. Os militares chilenos também colocaram ratos vivos dentro das vaginas das prisioneiras, como também se utilizaram de cachorros (pastores alemães e mastins) para violar as prisioneiras.

Mulheres chilenas que estavam grávidas e desapareceram/Foto: Biblioteca Nacional do Chile

Num cenário de guerra, a história cinza da nação chilena contamina a todas/os, aos que somos os filhos, os netos e outras gerações, já não mais sentidas com corpo, mas com a alma.

Contraditoriamente, a poesia feminina ou a escritura de mulheres floresceram nos anos 80. Foi um período marcado por criações artísticas que emergiram de novas propostas estéticas vinculadas à literatura nacional, ainda nesse período foram editadas várias publicações de mulheres.

Tais publicações mantiveram suas particularidades. Conformada por grupo heterogêneo, a escritura das mulheres chilenas se transformou. Houve, portanto, uma recolocação significativa da mulher no mundo literário.

Entre poemas, poesias e novelas se destacaram: Carmen Berenguer, Diamela Eltit, Eugenia Brito, Teresa Calderón, Heddy Navarro, Soledad Fariña, Elvira Hernández, Verónica Zondek e Alejandra Basualto. Foram elas que inundaram os circuitos artísticos – culturais com temas relacionados à sensualidade, o erotismo, a denúncia, a marginalidade e a política, entre outros temas de relevância singular e compartilhada de ser mulher e que traduzem uma época.

A obra Lumpérica, publicada em 1983, da escritora Diamela Eltit foi um exemplo da projeção literária na ditadura. A novela definida por sua autora como: “rota, fragmentada e com muitos pontos de entradas” combina no nome da obra a palavra lúmpen – referindo-se ao lumpemproletário – com a palavra América.

O conteúdo de ficção, na verdade é a realidade encarnada de censura, de reticências entre vidas, corpos e vozes. “Penso que esse dado – mesmo fantasioso, no meu caso, pelo tipo de projeto narrativo operou em algum nível agravando a crise repressiva que a linguagem e o falar com a linguagem sofre, abaixo à ditadura chilena”.

Já nas palavras transformadas em poemas nas mãos de Elvira Hernández, La Bandera de Chile, obra publicada 1987 que reuniu seus poemas num formato de diário, retrata as reflexões e preocupações da poetiza com seu país. As cópias dessa obra que se construiu entorno do emblema nacional – a bandeira chilena – circulou de maneira clandestina durante os anos de ditadura. Convertendo a autora em uma das vozes da resistência chilena. Na estética linguística de Elvira, ainda se destacam uma ruptura com a sintaxe clássica, qual explora recursos narrativos da cultura popular e tradicional. Sua escritura também esteve marcada pelo desenraizamento e marginalidade, situadas não apenas na condição social, mas como reflexo da situação periférica no ordenamento global.

Foto: Biblioteca Nacional do Chile

O Primeiro Congresso Internacional de Literatura Feminina Latino-americana foi também um acontecido importante para sacudir a escritura das mulheres, que ocorreu em igual período, no ano de 1987. A obra Escribir en los Bordes reuniu os debates realizados durante o evento. Nas palavras da escritora Carmen Berenguer, uma das organizadoras do evento, a metáfora da escritura nas margens escolhida para dar nome à obra “insinua ser o signo de um ingresso oblíquo e frágil, promovendo certa prática horizontal, uma escritura em La Menor” – referindo-se às notas de música.

A compilação do evento realizado em Santiago, capital chilena, inclui discussões de mesas sobre crítica literária, teoria feminista, literatura, reflexões sobre o patriarcado, estratégias para narrativas e poesias femininas e latino-americanas. Além destas atividades, foram realizados recitais poéticos com muitas outras vozes, novas vozes da literatura de outros lugares. De acordo com Carmen Berenguer, o Congresso apostou em romper o silenciamento histórico e cultural da voz feminina e particularmente, no contexto colocado pela ditadura militar. “À mulher escritora, desde a história herdada, não tem sido fácil, e não é fácil articular esses mecanismos de poder” – palavras da escritora.

De acordo com a notícia divulgada no jornal chileno El Mercurio logo após o evento, as autoras chilenas conseguiram realizar algo histórico, inédito nessa sociedade enraizada pelos machismos e militarização da vida. Ainda na nota, se destaca: “entregaram novos aportes para a discussão em torno da identidade feminina, desde âmbito teórico e da expressão criativa da mulher”. Os intensos diálogos, debates e o cruzamento de ideias e reflexões da condição da mulher nessas geografias foram significativas para os rumos da literatura e da cultura na região, constituíram a crítica “neofeminista” no Chile, de acordo com a análise feita por Carmen. O neofeminismo, nas palavras da escritora naquela década, “descansa em um conceito da diferença entre os sexos, distinto da conceito – da década de 60 e 70, que falava da igualdade dos sexos. Aqui a conotação é a diferença sexuada, política e cultural com respeito ao homem. Nela recai uma nova denominação: o reconhecimento de ser a outra, não aquela falada, inventada, relatada por ele, o homem”.

Foto: Biblioteca Nacional do Chile

Apesar do conceito desvelado pela(s) escritor(as) não situar-se dentro de uma perspectiva ou corrente histórica dos feminismos, vemos nessa descrição, frutos importantes que validam os câmbios dos rumos das lutas feministas na América Latina. E como as lutas em determinados contextos nos levam a novos entendimentos e subjetividades, forjam sentidos de luta, identidades e desafios, vemos também que na ditadura o papel da mulher foi indispensável para a abertura política e democrática, bem como na luta pela memória. Uma história de rupturas, sem retorno, que ainda tenciona a sociedade latino-americana, principalmente, nas latitudes situadas no Cone Sul, com exaltação de ditaduras e torturadas/os.

A Bandeira do Chile é estrangeira no seu próprio país
não tem carta cidadã
não é maioria
já não se reconhece
Os jejuns prolongados nos coloca o polegar da morte
as Igrejas nos colocam a extrema unção
as Legações serpentinas e som de trombetas
A Bandeira do Chile quer ser mais que bandeira

Elvira Hernández (Santiago de Chile, 1987).

As informações e as entrevistas utilizados na matéria fazem parte do acervo da Memória Chilena, da Biblioteca Nacional do Chile, disponível on-line.

*Tradução dos arquivos e entrevistas feitas pela autora. Nicole é chilena – brasileira, atualmente vive no México, onde pesquisa temas vinculados à América Latina, gênero, feminismos e cultura política.

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  • Nicole Ballesteros

    Nicole é feminista, latino-americana, mulher cis e migrante. Formada em Serviço Social pela Universidade Federal de Sant...

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