Na última semana, a economista aposentada Maria Eduarda de Carvalho, ex-companheira do Sr. Pedro Eurico, veio à imprensa denunciar violência física, moral e psicológica, de que foi vítima durante décadas. As denúncias à imprensa são as mesmas que ela já havia feito em dez boletins de ocorrência na Polícia Civil de Pernambuco, desde os anos 2000.

É preciso contextualizar que o acusado foi vereador, deputado estadual e por diversas vezes secretário de Estado. Nos últimos seis anos, comandou a pasta de Justiça e Direitos Humanos. Repito, Justiça e Direitos Humanos. Um dia após as denúncias virem a público, a polícia concluiu o inquérito e o indiciou pelos crimes de violência psicológica contra a mulher; perseguição; descumprimento de medida protetiva; estupro consumado; estupro tentado e lesão corporal. Como se não bastasse, o governador Paulo Câmara indicou como substituto do ex-secretário Pedro Eurico o advogado Eduardo Figueiredo, que inclusive foi advogado dele e sabia das acusações de agressão.

Uma pergunta que não quer calar, mas que já sabemos a resposta é: por que o Governo do Estado foi conivente durante anos com esse senhor, mantendo-o como secretário e, quase que ironicamente, na pasta de Justiça e Direitos Humanos? Resposta sumária:

por que o pacto do patriarcado está arraigado em toda a sociedade, mas principalmente no Estado opressor. Essa conivência de quem tem o poder institucional, de quem tem a caneta, que se escancara a partir desse caso, já é denunciada pelos movimentos feministas antirracistas há anos.

Esse mesmo governo é o que decide que a Secretaria da Mulher terá o penúltimo orçamento dentre todas as pastas do estado, com rubrica de apenas 14 milhões de reais por ano. Não se faz política pública sem orçamento e o resultado se expressa nos números. O Estado de Pernambuco é o segundo estado com mais casos de feminicídio no Brasil, segundo estudo publicado em março de 2021 pela Rede de Observatórios de Segurança. De acordo com dados da Secretaria de Defesa Social, o número de assassinatos em Pernambuco entre janeiro e julho de 2021 foi 15% menor que o registrado no mesmo período de 2020, no entanto, o total de feminicídios registra um grave aumento de 40%.

A conivência desse Estado opressor se traduz quando há apenas onze delegacias especializadas da mulher em funcionamento, em um Estado com 185 municípios. Não há nenhuma delegacia regionalizada e não há plano de atendimento específico nas delegacias comuns para as mulheres. No caso de Maria Eduarda de Carvalho, mesmo após repetidas denúncias, o pacto político era explícito.

Segundo os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2021), 1 em cada 4 mulheres brasileiras (24,4%) acima de 16 anos afirma ter sofrido algum tipo de violência ou agressão nos últimos 12 meses, durante a pandemia de Covid-19. Das mulheres que buscaram apoio frente a situação de violência, 21,6% procuraram ajuda da família; 12,8% procuraram ajuda dos amigos; e 8,2% procuraram a Igreja. Apenas 11,8% registraram denúncia em uma Delegacia da Mulher. 7,5% denunciaram em uma delegacia comum, 7,1% das mulheres procuraram a Polícia Militar (190), e 2,1% ligaram para a Central de Atendimento à Mulher, no Ligue 180.

A vida de uma mulher pernambucana vítima de violência é das mais difíceis do país. No estado inteiro, há somente quatro casas-abrigo. É, de fato, uma situação de menosprezo, de falência da política de defesa da vida das mulheres. É o Estado escolhendo quem deve morrer e quem deve viver, a necropolítica que o filósofo camaronês Mbembe tanto denuncia.

A conivência do Estado é tão cruel e está arraigada em tantos espaços que, em Pernambuco, os dados do desemprego informam que a sua taxa em 2020 é a quinta maior do país e que 99,5% das pessoas que perderam trabalho formal no ano passado foram mulheres. Às mulheres, ficou relegado o trabalho do cuidado na pandemia e fomos descartadas do mercado de trabalho.

Em contrapartida, o Estado lançou o Programa Mulheres Empreendedoras , no qual as mulheres terão uma linha de crédito de até R$ 20 mil. Ocorre que no terceiro estado mais desigual do país, onde mais de 1 milhão de famílias estão na extrema pobreza, empreender é tarefa difícil, é para poucas. Movimentos sociais pressionam o governo por uma proposta de Renda Básica, trazendo as mulheres terão o recebimento prioritário. Mas novamente, o silêncio da conivência ecoa.

Se a mulher pernambucana é trans e negra, aí o risco é de ser queimada viva como ocorreu com Roberta Silva, no centro do Recife. Em apenas um mês, quatro mulheres trans foram assassinadas no estado e tudo que o Governo fez foi uma campanha de enfrentamento que dizia ‘Sim ao respeito e não à violência contra mulheres trans, travestis, lésbicas e bissexuais’.

A campanha contava com distribuição de 18 mil cartazes e mídia digital. Mas o respeito ficou apenas no discurso, já que o movimento trans sequer foi recebido pelo Governador do Estado para a entrega de uma carta proposta de combate à transfobia e ao transfeminicídio. Proposta que o movimento construiu, de forma autônoma, após histórica conferência entre movimentos e militantes trans do estado. Assim, como os BOs de Maria Eduarda Carvalho, todo esse trabalho segue ignorado pelo Governo do Estado de Pernambuco.

Quando abordamos a mortalidade materna, o machismo se alia mais fortemente ao racismo. A Organização Mundial de Saúde (OMS) classifica a razão de morte materna de Pernambuco como alta e quando se desagrega os dados, percebe-se que quase 80% dessas mortes evitáveis são de pessoas negras. O grande programa do estado é o Mãe Coruja¸ programa que oferece apoio às mães pernambucanas e que se diz referência na área, tendo sido premiado pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pela Organização de Estados Americanos (OEA). No entanto, o programa vem sendo sucateado. Em 2015, tinha orçamento de R$8,2 milhões e em 2018 não chegou a R$ 2 milhões. No site do programa, o mapa estratégico data de 2019. De novo, a conivência do Estado que mata mulheres pretas.

O pacto masculino que se traduz na manutenção de um Secretário de Justiça e Direitos Humanos acusado de tantos crimes contra a mulher, só escancara o que as mulheres pernambucanas já sabem no dia a dia. O Estado é conivente na política, é conivente no orçamento, é conivente no fazer, é conivente quando deixa morrer: de feminicídio, de morte materna, de transfobia, de fome.

Mas como nos disse a gigante Conceição Evaristo: eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer”. Para isso, seguiremos em levante, denunciando, marchando e erguendo nossa voz nas ruas e no parlamento para que estejamos juntas e vivas.

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