Por Claudia Cuellar
Tradução Nicole Ballesteros Albornoz
As ruas de Santa Cruz de laSierra, na Bolívia, que anos atrás eram tomadas por mobilizações reacionárias, neste 8 de março foram palco da força feminista que brotou em forma detonante e se expandiu em energia na marcha. Hoje, mais do que nunca, vamos encontrando e identificamos com claridade quem e como nos oprimem. Dançando, gritando, tocando tambores, com uma desorganização que organiza nossa raiva. Como aconteceu em várias latitudes do mundo, em Santa Cruz a marcha do #8M foi diversa e aglutinou feministas de correntes heterogêneas, estudantes, trabalhadoras, indígenas, transexuais, não binários, artistas e outras coletividades, que emergem com a força acumulada deste momento que – em diversas latitudes – se politiza na chave feminina. Em grande medida, esta é uma reação contra a exacerbação da violência que se exerce contra nós, que tem ficado cada vez mais explícita em tempos de reconfiguração do poder econômico e estatal que se vive na região, como no país.
Ser mulher ou ser um corpo feminizado em Santa Cruz te posiciona em um lugar, que te faz enfrentar um habitus social de disciplinamento e de coisificação, além dos abusos da homofobia e transfobia. Que de modus operante é naturalizado, pois, se move no espaço privado até o público, e vice-versa. A imagem do patriarca provincial, latifundista típico da região – que hoje podemos identificá-lo misturado com algumas formas liberais – tende a intensificar as relações de gênero hierárquicas e violentas, nas quais a figura masculina é habilitada para gestar poder a partir do controle dos corpos femininos coisificados. Construindo assim, um espaço público em que a enunciação é privilégio de homens, nesse sentido, estes tendem a reproduzir a “moral” disciplinadora, que se expressa na religião e outras dimensões sociais da vida. É esta imagem do patriarca e todas suas ramificações que neste momento é contestada e se racha.
Tudo isso se sucede na medida que nós mulheres estamos construindo política e rebeldias, desde espaços mais próximos a vida cotidiana e não desde lugares clássicos de política estatal e patriarcal. Nossas casas, nossas escolas, a universidade, o trabalho, a rua, os territórios, a arte, as praças, os parques, são os lugares em que nós vamos encontrando e construindo diversas formas de rebeldia. Para entender este novo impulso feminista, enérgico e criativo, na urbe cruceña, é necessário reconhecer que este, se encontra inserido em um processo prévio. Uma força que move vem sendo sustentada, desde inícios do ano passado pelas estudantes universitárias, a partir das denúncias de casos de abuso sexual a que estão expostas todos os dias estas mulheres em sua cotidianidade universitária, e em geral, nos espaços públicos. Isto tem culminado na organização de protestos na universidade, através da exposição pública dos casos, e que se tem convertido em um eixo de encontro importante e de acumulação de forças entre as mais jovens.
A força que as mulheres de Santa Cruz vêm demonstrando nas ruas também é resultado da exacerbação da violência que se exerce contra nós, com o aparecimento de casos grotescos nos últimos meses. E que, finalmente, operam como atos brutais nos quais os homens tentam demonstrar que podem fazer ou dizer o que querem sobre o corpo das mulheres. Os casos de estupros coletivos tanto na cidade como no campo têm explicitado uma série de pactos que operam nessa sociedade. Como forma de violentar e castigar ainda mais esse corpo, constantemente o benefício da dúvida surge destas denúncias, e é quando decidimos levantar a voz nas manifestações.
A impunidade da justiça motivou uma forte mobilização “contra a justiça patriarcal” e com a frase “eu acredito em você” reuniu muitas mulheres contra as violências. Assim, geraram momentos associativos significativos que se transformaram em núcleos organizativos para as manifestações e as barricadas que foram construídas no local onde se realizaram as audiências públicas do caso da violação de uma jovem de 18 anos, que foi drogada e estuprada por cinco jovens durante um fim de semana, no ano passado.
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Enquanto a gente ia se encontrando e iniciando a luta, outro fato, que aconteceu em fevereiro deste ano, nos fez recordar o lugar que os poderes dessa sociedade nos querem limitar. Um ex-candidato a governador e ex-reitor da Universidad Autónoma Gabriel René Moreno Santa Cruz (UAGRM), Jerjes Justiniano,em um ato de reconhecimento de sua trajetória, promovido pelo atual prefeito Percy Fernández (que está no poder a 12 anos nessa cidade), conhecido por suas manifestações públicas de assédio sexual a diferentes mulheres, em trechos de seu discurso, ouvimos: “todos queremos fazer isso que o Percy faz, mas não temos coragem para fazê-lo”, depois continua, “os jovens de agora vem a Percy, e não o estão censurando pelo fato que beije a pelada (referência a mulheres jovens desta região) porque tem vontade ou a agarre ou qualquer coisa que ela faça com ela. Eles (jovens) não se incomodam, porque essa é a identidade de Percy, é a voz de um amigo que nos representa a todos”. Estas palavras só reafirmam a existência da série de pactos dos poderes de esquerda e da direita de ordem patriarcal.
Cabe ressaltar que a massificação destas violações ao corpo feminino não são exclusividade da cidade de Santa Cruz. A proliferação destas formas políticas misóginas e que operam diante do desejo da impunidade também estão presentes em outras regiões. Em um caso similar em Chapare boliviano, um dirigente cocalero (pessoas que cultivam a folha de coca nos países Bolívia e Peru) Leonardo Loza ofereceu ao Ministro Cesar Navarro rainhas de beleza para festejar até tarde, dizia ele: “Festejaremos com calma, com tranquilidade. (Ele) o ministro me prometeu ficar até altas horas da noite (…) a secretaria executiva garantiu a miss Federação, garantiu miss a Cholita Federação, garantiu para nossas autoridades, já vimos tudo que era preciso ver, assim, que nosso ministro ficará até tarde”. Isso demonstra publicamente, que a possibilidade de nós disciplinar, trocar ou violentar tem funcionado dentro dos marcos de reconhecimentos entre pares masculinos com poder.
Estas violações sistemáticas que são gestadas desde o poder é o que tem acentuado a nossa indignação e, ao mesmo tempo, a potência de mobilização para o #8M. Não é casual que a marcha terminou com o patriarca (o prefeito antes descrito) em chamas, sendo queimado pelas mulheres em marcha, queimando tudo que este representa. A nossa força emana não somente como resposta as múltiplas agressões, mas também de um processo organizativo que se dá a partir de um reconhecimento coletivo, fazendo visível nossos vínculos e revalorizando a construção política desde um nós mulheres e desde nossas ancestrais, do que foi apreendido por elas para sustentar a vida.
Me pergunto, como vamos trançando entre nós mulheres neste novo momento de politização feminista e que também enfrentamos a restauração do poder do Estado e do capital diante da contraofensiva conservadora no país e em muitos lados? A política de alianças masculinas que operam em múltiplas e diversas escalas e que se faz claramente explicita entre as autoridades em nossa região é parte da construção da política ofensiva dominante que está se instalando em conjunto com a ofensiva do capital.
O relançamento do colonialismo e a forma de poder estatal resguarda esses processos. Por tanto, mesmo que neste #8M as palavras de ordem foram diversas e por vezes desarticuladas, o que se tem trançado é uma força que se acumula, que tem como base as diversas experiências, as quais se reconhece a nossa voz e uma trama comum que estamos fazendo visível. É o lugar onde se impugna toda a ordem dominante, todas as suas aristas. “Queremos mudar tudo” – dizem as mulheres de Santa Cruz de laSierra.
Na elaboração do manifesto coletivo, para colocar um exemplo dessa simbiose espontânea feminista, foi ao final da marcha que se expressou e explicitou as múltiplas violências que têm repercutido em diversos âmbitos da vida social, quais foram: na saúde, na educação, nas práticas do aborto clandestino, a subida dos preços da cesta básica. Muitas destas expressões nos fala sobre a reprodução da vida em crise, com a estreita relação e como consequência da extração de tudo que se pode levar nos territórios comunitários.
Há dias que nossa força emergiu de forma inesperada em Santa Cruz e vem se (re)instalando uma contraofensiva que nós não podemos deixar de vigiar. As igrejas, os grupos conservadores e os pró-vida já convocaram um encontro nacional. E por outra via, o Estado através de suas instituições e de políticas clientelistas, busca capturar nossa força e autonomia. No entanto, com a força dos tambores, se escutam as vozes: “tirem seus rosários de nossos ovários” – esta força feminista que tem sido capaz de parar o tempo na cidade e pintá-la com novos sentidos de rebeldia nos dota de experiência nova. É nesse momento, em que a história do patriarcado começa a desmoronar, o momento de começar a nossa história.