O ano era 1945. A cientista brasileira Bertha Lutz, chefe do departamento de biologia do Museu Nacional, se reúne em São Francisco, nos Estados Unidos, para discutir a construção da Carta das Nações Unidas, documento onde os princípios de direitos humanos seriam inseridos. Enviada por Getúlio Vargas, Lutz representou 20% das mulheres que participaram da Conferência: de 850 delegados, apenas cinco eram do gênero feminino. Mesmo com participação minoritária, elas conseguiram emplacar o termo “mulheres” na Carta. Apesar de ter sido um grande passo em direção à igualdade de gênero, as mulheres ainda lutam por espaços de poder.

Bertha Lutz foi incansável em defender a inclusão das mulheres como detentoras de direitos internacionais/Foto: arquivo ONU

Desde 1761, na Declaração de Independência dos Estados Unidos, a palavra “homem” era usada como sinônimo de humanidade. Só após quase 200 anos a diferenciação de gênero foi inserida. Apesar de Lutz ter sofrido forte oposição pelos norte-americanos e britânicos que se encontravam na Conferência, a igualdade de gênero foi implementada no preâmbulo da Carta: “Nós, os povos das Nações Unidas, resolvidos a reafirmar a igualdade de direitos dos homens e das mulheres”.

Beatriz Sanchez, pesquisadora do Grupo de Estudos de Gênero e Política da Universidade de São Paulo (USP), considera este um marco importante para a luta por igualdade de gênero. “Ao ocultar as mulheres, acaba ocultando também as formas de exclusão que foram historicamente construídas. Ao trazê-las é uma forma de combater essa desigualdade”, diz Sanchez.

Apesar de ter sido um grande passo na luta pelas mulheres, os ambientes seguem sendo muito desiguais. Um levantamento promovido pela ONU Mulheres em parceria com a União Interparlamentar e divulgada em março deste ano, aponta que o Brasil ocupa a 167ª posição no ranking de 174 países quando o assunto é a participação de mulheres no poder Executivo. Já em comparação, a atuação das mulheres no Legislativo, o Brasil subiu um pouco de posição e ficou no 154º lugar. Nas últimas eleições, a representatividade das mulheres aumentou: ocupam 13% das cadeiras do Senado e 15% das vagas da Câmara — antes este percentual era de 10%.

“A representatividade é uma forma de garantir a efetividade no sistema”, afirma o doutor em Direito Internacional pela USP e coordenador de projetos da ONG Conectas, Jefferson Nascimento. Se não há participação de minorias sociais, como foi o caso tanto da Conferência da Carta das Nações Unidas quanto é da realidade da política brasileira, as chances desses grupos — que são a maioria da população — terem influência na formulação de determinadas políticas diminuem.

Para as/os entrevistadas/os, a pressão dos organismos internacionais é fundamental para que os países se sintam obrigados a adotar políticas de promoção de igualdade de gênero. A Lei de Cotas para candidatura feminina e a Lei Maria da Penha são exemplos disso. Levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o caso Maria da Penha além de obrigar o Brasil a julgar o agressor, também criou uma lei de prevenção à violência doméstica, fazendo com que os níveis de feminicídio caíssem, segundo dados do Núcleo de Estudos da Violência da USP. “As pessoas que estão mortas não participam do debate”, alerta Nascimento.

Ainda que no país poucas mulheres participem das discussões políticas, outros lugares têm promessas de mudanças. A futura chefe do Executivo da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, apresentou, no dia 10 de setembro, a lista de integrantes de sua equipe. Treze mulheres e 14 homens, um dado histórico de participação feminina. Sete décadas antes, Lutz precisava nós lembrar que “recusar à mulher a igualdade de direitos em virtude do sexo é denegar justiça à metade da população”. Mesmo que o sonho de representatividade de Bertha Lutz seja um dia cumprido ainda há outras esferas a serem trabalhadas. “Nos referimos às mulheres como sujeitos universais mas é fundamental que a gente considere as diversas opressões, como raça, classe e orientação sexual, e não somente o gênero. Isso foi algo que as feministas negras ensinaram”, relembra Sanchez.

*Rafaela Bonilla é estudante de Jornalismo do terceiro ano da Faculdade Cásper Líbero. Esse artigo é um trabalho elaborado para o “Projeto Repórter do Futuro: Jornalismo e Direitos Humanos”, coordenado pela Oboré, projetos especiais em comunicação e arte.

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