Lívia Reis, especialista em Ciências Criminais, analisa a violação de direitos da menina de onze anos que teve o direito ao aborto legal negado, em Santa Catarina.
Imagine que você foi estuprada e, desse estupro, ocorreu uma gestação que, além de obviamente indesejada, coloca a sua vida em risco. Você vai ao hospital, na tentativa de exercer seu direito legal de interromper essa gravidez. Mas, em vez de ser acolhida e apoiada, você é sequestrada. Levada contra a vontade para longe da sua casa, da sua família e da sua rede de apoio por mais de um mês, enquanto tentam te induzir a continuar vivendo esse pesadelo até o fim da gestação. Como se sentiria ao viver isso? E se você fosse uma menininha de 10 anos de idade? Ou fosse sua filha nessa situação?
Pode parecer apelativo pedir que nos coloquemos no lugar da criança e da mãe para tentar entender minimamente a dimensão do sofrimento imposto à essa família, mas diante do tratamento desumanizante ao qual elas vêm sendo submetidas, é preciso, antes de mais nada, resgatar nossa empatia para falar desse assunto. É preciso perguntar “e se fosse você?” para lembrar que essa menina e essa mãe são pessoas, pessoas que estão sendo torturadas pelo Estado diante dos nossos olhos e obrigadas a suportar “só mais um pouquinho”.
Esse caso choca, mas não surpreende, pois não é o primeiro e infelizmente não será o último. O comportamento da magistrada, da promotora e de todos que respaldaram a sequência de absurdos dessa situação – apesar da ausência de fundamentação legal e da evidente distorção na interpretação das normas e dos conceitos – escancara o retrocesso que estamos vivendo e a insistência na manutenção de uma visão objetificada da mulher, cuja função social é limitada ao cuidado e à reprodução.
É inquestionável que a menina foi vítima de estupro de vulnerável, pois quando a vulnerabilidade se dá em razão da idade esse critério é absoluto e não pode ser relativizado (apesar de, para a surpresa de ninguém, haver decisões judiciais que digam o contrário). Nesses casos, o direito ao aborto legal também deveria ser absoluto, pois o Código Penal é bastante claro ao autorizar a realização do procedimento, a qualquer tempo, em caso de gravidez resultante de estupro ou risco de morte da gestante, requisitos alternativos, mas que nessa situação específica se acumulam, o que torna a violação ainda mais grave.
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O terror psicológico na perversidade dos argumentos, no uso da palavra “bebê” para se referir ao feto e na tentativa de culpabilização da vítima sob alegações falsas a respeito da realização do procedimento, chegando ao disparate de chamar o aborto legal de “homicídio”, demonstram a total falta de limites da ofensiva ideológica capitalista, conservadora e cristã sobre os nossos corpos. Enquanto movimentos progressistas debatem se é o momento ou não de falar sobre o assunto, quem está no poder atua sem o menor pudor para impor uma visão de mundo essencialista, cruel e desonesta, que intenta nos privar da nossa humanidade e dos nossos direitos.
“Deixa eu cuidar dela”, disse a mãe na audiência. A única pessoa que estava realmente preocupada com o bem-estar da criança teve seu direito de amparar a filha nesse momento tão difícil negado, foi punida com o afastamento quando mais precisava estar com ela e obrigada a presenciar a criminalização, humilhação e desumanização da sua menininha.
É revoltante e doloroso testemunhar toda a revitimização a que estão submetendo uma criança real, sob o pretexto de “salvar” um “bebê” fictício, imaginário, que só existe na cabeça de quem, hipocritamente, se dispõe a praticar tortura em nome de um “direito à vida” abstrato e fantasioso. Chama a atenção também o fato de que até mesmo a opinião do estuprador, chamado de “pai da criança”, parecer ter mais peso na decisão que a vontade da vítima.
Porém, é importante entender que esse não é um caso isolado. As recusas de realização do procedimento, a morosidade nas respostas, a institucionalização da vítima e a postura de outras instâncias de poder a respeito do tema constituem estratégias para prolongar forçadamente o tempo de gestação dessas meninas e mulheres, até que não tenham outra alternativa que não seja levar a gravidez a termo. Não por acaso, até mesmo o Ministério da Saúde tem se dedicado a emitir documentos com informações falsas e juridicamente incorretas sobre o assunto. Não é equívoco, é projeto.
Um projeto que não poupa nem mesmo meninas que são crianças no sentido legal e biológico, mas que, por já terem alcançado a idade reprodutiva, são forçadas a suportar em seus pequenos corpos todas as dores de ser uma mulher “feita”, por um judiciário que trata essa criança como uma máquina de reprodução, que “fará casais felizes”, um útero sem corpo e sem alma.
Diante de tal situação, precisamos nos perguntar, onde estava esse Estado tão diligente quando a violência contra a menina foi cometida? Que medidas são tomadas pelas instituições para evitar que crianças como ela sofram violência sexual e engravidem, sem o menor entendimento do que aconteceu? Por que realizar um aborto é considerado mais grave que praticar um estupro? Quem se importa com essas vidas, que representam mais de 70% das vítimas desse tipo de crime?
Precisamos questionar não só quando começa a vida humana, mas também quando essa vida deixa de ter valor e passa a ser aceitável que a sociedade e as instituições a violentem, independentemente da idade. Por que o Estado não está cuidando dessa criança e de tantas outras na mesma situação, mas quer jurisdicionar sobre o útero delas? Que outro propósito haveria nessas ações que não seja limitar essas meninas, desde muito cedo, ao papel social reservado às mulheres nesse sistema? O papel de um corpo que não tem de querer, que existe para servir, gestar, parir e cuidar, nada mais.