O trabalho na moda tem rosto de mulher

150 bilhões. Esse é o tanto de roupa que produzimos anualmente no mundo, aproximadamente. E para tanto produzir precisamos de muita força de trabalho – o que na sociedade capitalista em que vivemos se materializa, na íntegra, somente com pessoas.

As etapas para produzir uma roupa são muitas: em nível de matéria prima, produzimos desde fibras naturais (como algodão e linho), extraímos petróleo para produzir a maioria das fibras químicas, plantamos árvores para produzir viscose e até criamos gado para o couro. Na manufatura, temos a fiação, tecelagem, design, tingimento, modelagem, costura… depois, acontecem campanhas de publicidade, desfiles, distribuição, importação, exportação e comercialização. Tudo isso não seria possível sem os trabalhadores: a moda só existe porque eles existem.

Moda brasileira, trabalho brasileiro

No Brasil produzimos 8,9 bilhões de peças em 2018, com a força de trabalho de 8 milhões de pessoas que integram a cadeia produtiva da moda no país, conforme a Associação Brasileira das Indústrias Têxteis (ABIT). Destas, 1,5 são empregadas diretas e as outras 6,5 indiretas, ou seja: informais, o que revela uma cadeia fragmentada, pouco transparente e apta a sofrer violações trabalhistas nos bastidores.

Nós temos a maior cadeia completa do Ocidente e somos um dos cinco maiores produtores de têxteis e confecções do planeta, bem autossuficientes quanto a produção e consumo: a maior parte do que a gente faz, a gente mesmo compra. Nossas participações são minoritárias nas exportações: estamos na 40ª posição no ranking de exportadores mundiais de têxtil e vestuário e nas importações o cenário não é diferente: ocupamos a 25ª posição entre os que mais importam (IEMI, 2016). O líder de exportações? A China, claro, em uma onda que arrasta os países vizinhos como Índia e Bangladesh.

A principal modalidade de trabalho aqui é a confecção: dentre as 33 mil empresas formais do setor têxtil e vestuário, 75% é do segmento de confecção. Do montante da produção têxtil, 60% a 65% é destinada à confecção de roupas; os outros 35% a 40% são utilizados na fabricação itens de cama, mesa e banho e calçados, e aplicados em indústrias como as automobilísticas, agrárias e moveleiras.

Já quando o assunto é distribuição geográfica, as regiões que lideram os polos produtivos são Sul e Sudeste, seguida do Nordeste. As duas primeiras concentram 49,3% e 29,5% dos empregos formais do setor, respectivamente, e a segunda, 17,3%. Os destaques são para as regiões do Vale do Itajaí em Santa Catarina (Blumenau, Itajaí, Jaraguá do Sul e Brusque), Agreste Pernambucano (Toritama, Santa Cruz do Cariparibe e Caruaru) e São Paulo capital.

Um trabalho que tem cor e gênero

As mulheres representam 75% da força de trabalho da moda no Brasil, e 80% no mundo. Porém, em cargos de liderança elas ocupam só míseros 15%. São elas que ocupam plantações, fábricas, tecelagens, agências e máquinas de costura. São mulheres trabalhadoras que fazem a moda existir.

O papel social do trabalho feminino se desenha na moda há décadas, desde a revolução industrial. No ano de 1838, junto do infantil, esse trabalho correspondia a 77% da mão de obra nas indústrias têxteis na Inglaterra e a 62,62% em São Paulo (SP) no ano de 1894.

Já naquela época muitas eram as dificuldades destas trabalhadoras, que ganhavam menos que os homens embora realizassem o mesmo trabalho (qualquer semelhança com a atualidade não é mera coincidência) e eram desvalorizadas e invalidadas. Vale lembrar que falamos de mulheres, em suma, brancas; as mulheres não-brancas tinham outra instância de luta: em 1894 a abolição da escravatura tinha acabado de chegar ao Brasil, por exemplo.

Leia mais

Tudo isso levou à primeira greve geral do Brasil, que sim: foi realizada por mulheres da indústria têxtil. Era 1917 e durante mais ou menos 30 dias 400 mulheres operárias da Cotonifício Crespi, na Mooca em São Paulo, paralisaram suas atividades e exigiram aumentos de salários e jornadas de trabalho menos longas e exaustivas.

Viu só? A história revela como as mulheres sempre sustentaram a indústria da moda. Atualmente, não é diferente. Devemos ainda somar outras intersecções da realidade: 56% da população brasileira é preta ou parda, e a maioria dos trabalhadores informais são pretos ou pardos: 47,3% – em uma indústria da moda onde predomina essa modalidade de trabalho. Então falar de raça também é crucial se falamos de trabalho na moda.

Por um trabalho que empodere, e não que explore 

A moda é essa potência: grande produtividade, grande empregabilidade, grande criadora de imaginários. Mas também grande poluidora, exploradora e desumana: os itens de vestuário são a segunda categoria que mais corre o risco de ser produzida sob a escravidão moderna, que muito tem a marca da promessa neoliberal: violações trabalhistas, precarização e flexibilização com cara de autonomia.

É daí que vem a urgência em transformarmos a forma que o trabalho existe – na moda e no mundo – em algo que potencialize as relações humanas, a empatia, a criatividade, a justiça e a emancipação, invés da exploração, alienação e produtividade.

Talvez, se essas primeiras opções já fossem realidade, não teríamos agora milhares de trabalhadoras em Bangladesh sofrendo sem empregos e sem indenização durante a pandemia – e além – porque estaríamos valorizando vidas e não apenas números.  Talvez, no Brasil, não tivéssemos relatos de costureiras recebendo 20 centavos por máscaras, ou trabalhando 18h por dia, porque as relações trabalhistas se dariam de forma justa em toda a cadeia.

O trabalho e sua dinâmica existentes hoje foram criados. E, se foram criados assim, podem ser criados de outro jeito. Temos relatos desumanos, mas também relatos de trabalhadoras com histórias inspiradoras, humanas, sensíveis à vida; o trabalho na moda pode ser uma ferramenta de empoderamento, uma possibilidade de milagres em meio ao caos. Tem que ser.

Referências:

Agência Lupa: números expõem desigualdade racial no Brasil

Abit: perfil do setor

Abit: o setor têxtil de confecção e os desafios da sustentabilidade

Global Slavery Index: Walk Free Foundation

HOBSBAWM, Eric. ​Da Revolução Industrial Inglesa ao Imperialismo​​. Forense Universitária: Rio de Janeiro, 1979.

SEBRAE SP: Pesquisa Setor/Segmento Indústria da Confecção

The 2018 Apparel Industry Overproduction Report and Infographic

UNESP et al. ​O trabalho feminino durante a revolução industrial. ​​São Paulo: Unesp, 2015.

*Bárbara Poerner é leitora, escritora, amiga, filha, gente – entre outras coisas mais. Pesquisa, lê, escreve e comunica sobre uma nova modalidade de mundo e de existir no mundo, principalmente em relação à moda. Seu foco é trabalho e moda, sempre com a interseccionalidade de gênero, raça e classe. Acredita no poder revolucionário do jornalismo, na potência encantadora de palavras escritas e nas possibilidades de uma moda (e mundo) justa e humana.

 

 

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

Palavras-chave:

Últimas