Pela primeira vez as mulheres vão parar em 8 de março, em uma greve que já tem a adesão de mais de 40 países. Nessa mobilização a questão econômica aparece como central para compreender a dinâmica que estrutura as violências de gênero. “A violência econômica é feminicida”, afirma Cecília Palmeiro, representante do “Ni Una Menos” da Argentina, movimento que protagonizou a primeira greve nacional de mulheres na história do país e da América Latina. Em entrevista exclusiva ao Catarinas, a jornalista analisa a articulação para a greve internacional contra o desenvolvimento do capitalismo neoliberal, cujas novas formas de exploração atingem prioritariamente as mulheres. Segundo Cecília, esse feminismo que questiona a lógica do sistema e traz em sua veia a revolução está proporcionando a chave para entender os processos de desigualdade e violência no mundo. “O trabalho invisibilizado em casa e desvalorizado no mercado, sustenta a economia capitalista. O trabalho não reconhecido em casa é escravo, porque as mulheres não têm escolha e, quando escolhem não obedecer as regras, são assassinadas”, assinala.

Ni Una Menos é citado em chamado à greve por ícones do feminismo
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CATARINAS: A Argentina fez uma greve nacional de mulheres em outubro no ano passado. Como foi a experiência?
CECÍLIA PALMEIRO: 
O feminícidio terrível de Lúcia Perez, 16 anos, junto a uma repressão brutal da polícia no 31º Encontro Nacional de Mulheres (31ENM), que reuniu 70 mil ativistas, levou a mobilização para uma greve nacional. No último dia do encontro, ativistas foram reprimidas com balas de borrachas, demonizadas e acusadas de sujar paredes com grafite – como se as paredes fossem comparáveis às vidas das pessoas. Justo nesse dia de repressão, Lúcia Perez foi brutalmente assassinada, estuprada e empalada por dois traficantes. Nesse crime entra a trama da narcoviolência, da exploração das mulheres, a feminilização da pobreza e outros fatores. Decidimos ir para a greve como medida de urgência contra esse estado de coisas. Organizamos em cinco dias uma greve nacional, a primeira da história da Argentina e da América Latina, que teve enorme adesão. Alguns países reagiram junto contra as violências não aceitáveis, que não conseguimos tolerar. Foi interessante o crescimento rápido da consigna Nenhuma a Menos em relação à greve. Fizemos uma ligação entre a violência machista e um tipo de economia capitalista, chegando ao mundo do trabalho. Essa greve foi muito forte em nossas vidas. As centrais sindicais também aderiram. Interessante que os homens não conseguiam mobilizar uma greve contra os desmontes do presidente e tiverem que apoiar as mulheres. A partir daí, começou a ideia de greve internacional. As polonesas e as coreanas, que haviam paralisado, contataram a gente para um movimento internacional. Começamos a trabalhar cada uma em seu contexto para mobilizar os países. O movimento mais forte ocorre na América Latina. Na Europa, Polônia e Itália se destacam.

1ª greve de mulheres na Argentina mobilizou atos na Espanha e América Latina/Foto: Ni Una Menos
Primeira greve de mulheres na Argentina, em 19 de outubro, mobilizou atos na Espanha e América Latina/Foto: Ni Una Menos

CATARINAS: Há uma confluência no entendimento de que é preciso olhar para todas as opressões?
CECÍLIA PALMEIRO: 
A ideia é visibilizar o trabalho que a gente faz em casa de reprodução das forças produtivas. Depois, o da reprodução da espécie. Esses são trabalhos não reconhecidos, não valorizados, como se não existissem. O trabalho invisibilizado em casa e desvalorizado no mercado, sustenta a economia capitalista. A acumulação capitalista tem a ver com essa exploração das mulheres. Trabalhamos três horas a mais, 52 dias a mais por ano, ganhando 30% menos, com números de desemprego maiores. Queremos intervir na economia, por que fica evidente que a guerra contra as mulheres é econômica. Para obter esse tipo de exploração, o capitalismo e o neoliberalismo precisam produzir cada vez mais subjetividades “lixo”, pessoas que sejam descartáveis, mão de obra quase escrava, quando não escrava. O trabalho não reconhecido em casa é escravo, porque as mulheres não têm escolha, e quando elas escolhem não obedecer as regras, são assassinadas. Vemos que o feminicídio é a ponta do iceberg das violências. Por ser um tema forte, foi ponto interessante para atingir a opinião pública. O Brasil também tem números horrorosos. Ninguém pode dizer que concorda com isso, mesmo aqueles que praticam violências sem saber, precisam tomar posição. O sucesso da nossa inserção na opinião pública está relacionado à ligação desse tema urgente a questões mais profundas, como violências econômica, social e cultural.

CATARINAS: Pode-se dizer que esse é um momento de maturidade do movimento?
CECÍLIA PALMEIRO: O feminismo está proporcionando a chave para entender os processos de desigualdade e violência no mundo. Através da ótica do feminismo e principalmente das violências físicas contra as mulheres, conseguimos abrir a porta para uma nova dimensão do debate. Falamos de feminicídio e também de anticapitalismo. Nos últimos 30 anos, em termos de debate sobre gênero, houve um desenvolvimento teórico-político maior do movimento LGBT, que tem a mesma raiz no feminismo. Chegou um ponto em que nos EUA e Europa o feminismo se institucionalizou. Como o exemplo de Hillary que representa um feminismo branco e de direita. O feminismo que ganhou nos EUA foi esse. O movimento entrou numa grande crise. Hillary não foi eleita porque não representa as mulheres. Ela apoia golpes e guerras que prejudicam mais mulheres do que homens. Ela deveria saber que numa guerra, as mulheres são as que mais morrem. Quando tem pobreza, as mulheres são atingidas mais fortemente pela violência econômica e física. Na Europa também vemos figuras fortes de direita, como Ângela Merkel.

Esse novo feminismo de massas, do 99% como propôs Angela Davis, é totalmente renovado e fortalecido por todos esses anos de trabalho silencioso, de debates, de crises do movimento, por essa cooptação do poder do feminismo branco.

s/Foto: reprodução
Ni Una Menos começou em março 2015 como um jeito de intervir na mídia contra o fenômeno do feminicídio/Foto: reprodução

CATARINAS: Como começou a articulação com o Brasil para a paralisação?
CECÍLIA PALMEIRO: 
Estamos falando da greve internacional desde outubro. Aguardamos para lançar a convocação em 23 de janeiro. Dois dias depois estávamos no encontro do Seminário Diálogos Mulheres em Movimento – Direitos e Novos Rumos, realizado pelo Fundo Elas. O Brasil foi o primeiro lugar onde a gente foi chamada para a greve. Para a Argentina, o Brasil é a aliança mais importante. Culturalmente, a gente consegue abarcar muito mais, como já articulamos há 15 anos. Aproveitamos o encontro para tecer as redes sobre a greve e mapear ações transnacionais. Foi uma coisa de boa sorte. Esse movimento transnacional tem como condição a Internet, mas achamos muito mais importante a comunicação dos corpos, os encontros físicos reais. Tivemos nesse encontro três dias para debater, pensar, trocar ideias, não é como um post.

CATARINAS: No Brasil, o tema é a reforma da previdência. Qual é o foco na Argentina?
CECÍLIA PALMEIRO: Na Argentina, o desmonte já começou. Já tiraram o direito de aposentadoria das donas de casa e também querem reformar a previdência. Um decreto há poucos dias criminaliza totalmente imigrantes e habilita a possibilidade de expulsão. A questão do aborto é um dos principais temas, porque é autonomia do corpo e econômica. Exigimos do Estado o financiamento de programas contra o seu desmonte. Esse processo de acumulação capitalista tem a ver com a transferência de recursos do Estado para as mãos de um grupo de empresários. Por exemplo, o Estado perdoou a dívida de 70 milhões de pesos do pai do presidente Macri, um empresário rico. O Conselho Nacional de Mulheres conta com um programa contra a violência que não tem recursos. Nós mulheres ficamos desprotegidas.

CATARINAS: O atual modelo econômico contribui para a morte de mulheres?
CECÍLIA PALMEIRO: 
A violência econômica é feminicida. Uma das nossas hashtags é “O estado é responsável”. Quando tira dinheiro dos fundos para as vítimas, o Estado mata mulheres. Recentemente, uma menina foi estuprada e não recebeu atendimento porque não tinha pessoal, e se suicidou. Há uma relação direta entre mortes de mulheres e transferência de recursos. O mercado privilegia homens. Se o Estado não oferece proteção frente à crueldade, a gente morre. Não temos escolha, a saída é a luta. Dá esperança essa ideia de que temos como superar, numa aliança transversal que ultrapasse fronteiras, classes e raças.

CATARINAS: Você acha que a Marcha das Mulheres no EUA, que agregou outros países, de certa forma também ajudou a pensar na possibilidade de uma greve?
A solidariedade das mulheres do mundo que foram para a rua massivamente, fala de uma vontade de se articular e de mudar. Nós não aguentamos mais, desafiamos os poderes que nos escravizam. Apoiamos também umas as outras, formamos uma comunidade. Trata-se de solidariedade interseccional mesmo. Poderíamos pensar “onde estavam as irmãs norte-americanas quando tivemos ditaduras impostas pelos EUA?”. Mas resolvemos entender que na época elas também estavam sendo presas como ativistas. Isso leva à compreensão de que não há países ruins e bons, há lutas políticas no interior de cada cultura e que podemos ser solidárias mesmo em casos de imperialistas. Até porque na Marcha das Mulheres havia também uma postura anticapitalista, para além da liberal. O feminismo de esquerda mexeu com o branco.

CATARINAS: Você acredita na união entre movimentos da América Latina e EUA no sentido de buscar formas de conter avanços do conservadorismo? A América Latina deve protagonizar de alguma forma a luta anticapitalista?
CECÍLIA PALMEIRO: 
As alianças já estão estabelecidas. Uma das características do feminismo contemporâneo é a transnacionalidade, a internacionalização do movimento, como se fosse uma maré que vai atravessando fronteiras, fazendo alianças sem precedentes. Indígenas do Brasil podem se aliar às negras norte-americanas, ou brancas da Polônia às negras da Nigéria. A gente consegue se encontrar em pontos comuns, como sujeitos não só de uma guerra, mas de uma revolução que já está acontecendo. A marcha de 21 janeiro nos EUA foi uma amostra: mulheres de 130 países se mobilizaram, rejeitando Trump e suas políticas machistas e fascistas. A gente escreve ideias, traduz, nessa relação de diálogo com norte-americanas. Elas leram nossos manifestos e responderam, como aconteceu no Brasil, Itália e Polônia.

Nós estamos desenvolvendo novas teorias e conceitos para esse tipo de movimento que não pode ser descrito com palavras prévias. Não somos só grupos, somos redes de assembleia, temos um movimento horizontal, sem liderança, de participação popular e de democracia direta. É um experimento, onde criamos teoria e nova prática política, imaginando um mundo onde nós queremos viver e nos juntando para ver como chegar lá.

CATARINAS: Para você, o feminismo é um movimento que se constitui pela prática?
CECÍLIA PALMEIRO: 
Ninguém precisa ir para a universidade para entender a opressão, especialmente a própria. Um dos slogans fundamentais do feminismo é “o pessoal é político”. Vemos a politização do cotidiano como um modo de transformação social. A ideia de que a transformação não tem que ser só de cima para baixo no nível macro, mas principalmente na micropolítica, desde a vida cotidiana, desde a prática concreta para chegar a transformar instituições de poder. Mudar somente as figuras, sem alterar a estrutura de poder, não traz mudança real.

O primeiro evento massivo ocorreu em 3 de junho de 2015, com mais de 300 mil pessoas/Foto: Ni Una Menos
Ato em 3 de junho de 2015 reuniu 300 mil pessoas/Foto: Ni Una Menos

CATARINAS: Precisamos de mais mulheres na política?
CECÍLIA PALMEIRO: 
Uma das consignas é a paridade na representação política de 50%. Precisamos de paridade também no poder judiciário, porque a justiça é machista e misógina, pelo menos na Argentina. Imagino que no Brasil também, com o caso recente de mulheres estupradas no cárcere. Aqui, há uma pequena representação política, como no Brasil. As poucas mulheres no poder são da ultradireita, com discursos e práticas patriarcais. Querem, por exemplo, tirar recursos do fundo de programas de educação sexual integral e de direitos reprodutivos, além de criminalizar o aborto. Essas mulheres ajudam a matar a gente, como a Hillary. Por outro lado, há mobilização enorme do feminismo popular, interseccional com movimentos de mulheres índias, negras, imigrantes. Na América Latina, há uma série de indígenas que lideram a defesa da terra e são criminalizadas por mulheres que estão no poder.

CATARINAS: Como você sente a sinergia entre mulheres na construção desse processo que trata de questões centrais à vida delas?
CECÍLIA PALMEIRO: 
É um momento mobilizante. Não sentamos e esperamos: essa mobilização acontece no corpo. Trata-se de um experimento de desobjetificação maravilhoso. No coletivo, escrevemos e pensamos junto. É uma experiência incrível, em que a gente sai de si mesmo, do ego, para entrar num cérebro coletivo. As ideias se transformam e crescem de um jeito espetacular, em um processo não só dentro do grupo, de criação e transformação coletiva da subjetividade. Estamos deixando de ser o que éramos e percebendo que somos capazes de fazer. Essa experiência em que cantamos juntas num protesto com 300 mil mulheres é fortíssima. Nós estamos pegando poder e liberando potência, nos desenvolvendo como sujeitas históricas e revolucionárias no mundo.

No momento em que nossos corpos estão entregues nessa vibração coletiva, mudando as relações entre homens, e entre nós – no que diz respeito à competitividade, ciúmes e todos os sentimentos ruins que o patriarcado precisa para não ficarmos juntas e organizadas – entramos num processo de solidariedade.

Encontro entre mulheres da América Latina, em seminário no Rio de Janeiro, mobilizou para a greve/Foto: reprodução

CATARINAS: Nessa greve, a arma é a solidariedade?
CECÍLIA PALMEIRO: 
É totalmente! A solidariedade permite essa interseccionalidade. Temos esperança num processo de construção. Queremos não só destruir esse mundo, como construir outro. O mundo machista não deu certo, queremos construir nossa utopia que nasce da necessidade da gente de ter saúde garantida pelo Estado, de um governo que invista seus recursos na cidadania, nas pessoas e não nas companhias transnacionais e empresas. O salário e a previdência são investimentos sociais e não gastos. A partir disso, começamos a ter ideia de como deveria ser o governo e esse exercício vai formando a utopia.

CATARINAS: Os movimentos sociais estão com dificuldades de levar pessoas para as ruas. Como mobilizar mulheres e fazer com que despertem para a greve?
CECÍLIA PALMEIRO: 
Temos que conseguir falar para a intensidade dos corpos. Para essas mulheres que sabem que são exploradas, pobres e negras por brancas e ricas. Temos que tentar desarticular esse tipo de exploração, as mulheres brancas precisam abrir mão de privilégios. Temos que nos dirigir aos sentimentos, ao entendimento da exploração que as mulheres vivem fisicamente, à identificação entre nós, ao exercício de se perceber no lugar do outro e apelar a essa empatia – que faz parte do que é fundamentalmente humano. Queremos transformar estruturas de poder. Gostei da afirmação da Madonna na marcha: “nossa revolução é de amor e não de ódio”. Temos que nos dirigir ao desejo de felicidade. Você não gostaria de tempo para fazer outras coisas, para ter liberdade para fazer o que quiser, de não ter medo de ser violentada fisicamente? Se queremos viver mais felizes, temos que agir.

É uma luta pela própria felicidade e pelo direito ao prazer que nos é negado. Desde os anos 70, o feminismo luta pelo direito ao prazer, não só sexual, como também o prazer de não trabalhar o dia inteiro. Temos direito ao ócio, direito ao tempo, então queremos nos apropriar dele. Ao parar de fazer o que nos impõem, tiramos esse tempo do trabalho obrigatório para nossa felicidade. A mensagem tem que ser simples, emotiva, que fale para as sensações do corpo das pessoas.

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Palavras-chave:
  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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