A Universidade Federal de Santa Catarina foi a primeira universidade do país a aderir à greve estudantil contra os cortes das verbas destinadas às instituições federais de ensino e em defesa da educação pública e de qualidade. Desde o dia dez de setembro os estudantes de graduação e pós-graduação de mais de 20 cursos decidiram não frequentar mais as aulas. A decisão foi acordada em assembleia estudantil com a presença de mais de quatro mil alunas/os. Atividades estão sendo desenvolvidas e realizadas dentro da UFSC e fora dela. O movimento conta com certo respaldo do Conselho Universitário (CUn) na garantia de que estudantes participantes do movimento não sejam prejudicados.
O primeiro semestre deste ano foi marcado pela política governamental de cortes na educação. Em abril, o ministro da Educação do governo de Jair Bolsonaro, Abraham Weintraub, anunciou cortes de 30% dos recursos destinados às instituições. A ação foi direcionada principalmente às universidades e institutos federais, que já sentem o impacto pela falta de repasses.
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A verba afetada com os cortes faz parte das despesas discricionárias, aquelas que são administradas pela UFSC e são direcionadas para a manutenção da instituição. Esse dinheiro serve, por exemplo, para o pagamento de contas de energia elétrica, água, infraestrutura e de assistência estudantil, serviços de limpeza e segurança. Com isso, finalizar o mês de agosto não foi tarefa fácil para a universidade, desta mesma forma deve ser outubro. No início deste mês, a Associação de Pós-Graduandos da Universidade Federal de Santa Catarina (APG/UFSC), a Associação de Professores (APUFSC), o Sindicato dos Trabalhadores em Educação das Instituições Públicas de Ensino Superior do Estado de Santa Catarina (SINTUFSC), o Diretório Central dos Estudantes (DCE/UFSC) e o Centro Acadêmico de Relações Internacionais (Cari) enviaram uma representação para o Ministério Público Federal (MPF) contra a União, requerendo que o recurso bloqueado seja liberado.
De acordo com o texto enviado ao MPF, houve um bloqueio de R$ 43 milhões de reais dos R$ 145 milhões aprovados pelo Governo Federal. Em 30 de setembro, foram liberados 21,7 milhões do orçamento de custeio, metade do valor bloqueado em abril. De acordo com a UFSC, a liberação garante menos de dois meses do custeio da universidade. “Dessa forma, o desbloqueio parcial ainda não atende, em sua plenitude, os recursos necessários para arcar com o funcionamento básico da UFSC até o final do ano e não permite a retomada de ações que sofreram redução a partir do mês de maio, como por exemplo, a renegociação de contratos terceirizados, redução de viagens, manutenção da frota de veículos, entre outras medidas”, afirmou em nota a Administração Central da UFSC.
Medidas de economia, como a renegociação de contratos, redução no número de terceirizados – levando a demissão de 95 trabalhadores – congelamento de bolsas de estágio, extensão e monitoria e o cancelamento da Semana de Ensino, Pesquisa e Extensão (SEPEX) foram adotadas pela universidade para garantir o funcionamento até setembro. O intuito é preservar ao máximo a permanência estudantil, mas o anúncio de que o restaurante universitário (RU) corre o risco de parar seu funcionamento com o esgotamento dos recursos levou a comunidade acadêmica a se mobilizar ainda mais. Hoje o restaurante atende cerca de 15 mil alunas/os mensalmente e distribui mais de 10 mil refeições por dia apenas no Campus da Trindade e, dessa maneira, fomenta a permanência de grande parte das/dos estudantes na universidade.
O possível fechamento do RU impactará diretamente a vida das alunas/os, que apresenta em sua composição um grande número de estudantes em condições de vulnerabilidade social e financeira.
De acordo com pesquisa da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), 55,8% dos graduandos da UFSC estudou em escola pública e 23,7% declararam que as dificuldades financeiras enfrentadas por eles interferem significativamente no contexto acadêmico. A Universidade também destina 50% de suas vagas para ações afirmativas, metade delas para alunas/os de baixa renda.
Barrar a privatização
A greve emerge como movimento para reverter os cenários de cortes e, consequentemente, a precarização das instituições federais. Os grevistas têm como objetivo central o descongelamento de verbas e, também, barrar o projeto Future-se que foi divulgado em 17 de julho pelo Ministério da Educação (MEC). A iniciativa foi lançada pelo Governo Federal com a justificativa de aumentar a autonomia administrativa das universidades federais. Um dos principais pontos do projeto é estimular que as universidades gerem recursos próprios, o que supostamente ajudaria na manutenção das instituições. Assim, o Future-se desviaria do Governo Federal a responsabilidade de financiar o ensino superior público, conforme determina a Constituição Federal.
O modelo de gestão voluntário é apresentado como o futuro das Instituições Federais de Ensino Superior (IFEs), mas o programa mostra-se como método de privatização e precarização das instituições, pois a principal fonte de captação de recursos proposta será obtida através de organizações privadas, contrariando o artigo 207 da constituição que garante a autonomia administrativa e de gestão financeira e patrimonial das instituições.
O Conselho Universitário (CUn) da UFSC se manifestou contrário à adesão do programa pela universidade, o que é permitido, já que, as IFEs podem escolher adotar o projeto ou não. “Num contexto de medidas de bloqueio e drásticos cortes orçamentários ao qual estão submetidas as IFEs e da absoluta ausência de diálogo para a propositura desse Programa, a análise do PL trouxe muitas incertezas quanto aos reais benefícios em prol da manutenção financeira de todo o sistema universitário público e muitas dúvidas a respeito dos impactos acadêmicos que o Programa pode trazer às IFEs”, reitera a moção do CUn sobre o Future-se.
“Eu vejo a greve estudantil como o momento de quebrar a normalidade, chamar a atenção para algo muito urgente e impactante, usar o tempo e o espaço da universidade pra fazer uma discussão política que não está na nossa cultura”, defendeu Letícia Oliveira, estudante de Arquitetura e Urbanismo. Ela faz parte do Centro Acadêmico Livre de Arquitetura (CALA) há dois anos e atua na mobilização. A construção da greve no curso se intensificou diante do cenário de cortes e em 4 de setembro uma assembleia com 206 alunas/os decidiu pela mobilização. Nos dias em que não houve aulas as/os estudantes realizaram a Semana Acadêmica. “Tivemos várias atividades com foco em discutir a extensão universitária de maneira bem cuidadosa, justamente para perceber que a universidade que a gente tem hoje não atende direito a sociedade que a sustenta’’, declara Oliveira.
Mobilização da comunidade
O calendário de atividades de diversos cursos segue com aulas públicas, debates e produção de conteúdo para divulgar à população o que é feito dentro da universidade. Todas as atividades são pensadas a partir das questões orçamentárias e, principalmente, para evidenciar a importância da universidade pública, gratuita e de qualidade como direito à população e para o fortalecimento do desenvolvimento do país, já que, a produção científica no Brasil é quase exclusivamente feita por instituições públicas de ensino, como apresenta o estudo Pesquisa no Brasil – Um relatório para a CAPES.
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O projeto “UFSC na Praça” é um exemplo de iniciativa dos estudantes para aproximar a comunidade não acadêmica do que é desenvolvido na instituição. A necessidade dessa aproximação, buscando informar sobre a produção científica e os serviços de extensão, foi o que motivou a criação do projeto em maio deste ano. Até o momento três edições já aconteceram no centro, Serrinha e Saco dos Limões. Idealizado pela Associação de Pós-Graduandos (APG) da UFSC, hoje, outras categorias agregam ao movimento, como, as/os alunas/os de graduação. O período de greve intensificou a participação das/os estudantes ao projeto que contará com uma próxima edição programada para 19 de outubro, como explica a organização.
“Projetos como o UFSC na praça que leva a pesquisa da universidade para as ruas, tudo isso mostra a força do movimento estudantil e o descontentamento com esse governo que não tem como prioridade a educação” destaca Evelin Carvalho, estudante de História. O calendário do curso foi unificado com o do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH) e conta com aulas públicas e cine-debates que abordam questões de gênero, LGBTI+, trabalho, previdência, arte e cultura. A estudante nos falou sobre a força das atividades fora do campus. “Fizemos panfletagens, participamos do UFSC na Catedral que foi muito importante para mostrar o que a gente sabe e ainda desmistificar alguns assuntos”, reitera Carvalho.
Direito à greve
O departamento de arquitetura em assembleia também escolheu não prejudicar nenhuma aluna/o e contribuiu para o movimento. No entanto, algumas professoras e professores de outros departamentos continuam ministrando aulas, o que vai na contramão da decisão acordada entre o Diretório Central dos Estudantes Luís Travassos (DCE), CUn e reitoria em audiência pública, em 24 de setembro. O reitor Ubaldo Baltazar se comprometeu em criar uma portaria para resguardar o direito das/os grevistas.
A Resolução Normativa N/132, publicada na última sexta-feira (11), prevê a “reposição do conteúdo programático, a realização das atividades avaliativas e o controle da frequência efetuados durante o período de paralisação estudantil em novas datas”, garantindo que as/os estudantes possam participar do movimento sem que sejam prejudicadas/os. “Não temos leis que garantam a nossa atuação como em greves de trabalhadoras/es, mas conseguimos reivindicar, coletivamente, para que o CUN se comprometa à não criminalizar as/os estudantes o que, consequentemente, já legítima a nossa mobilização”, complementa Clara Niehues do DCE.
O fato de professoras/es continuarem a ministrar aulas contribui para enfraquecer a mobilização no Centro Tecnológico (CTC). O centro divulgou uma nota de análise crítica da greve estudantil na UFSC na qual explica o contexto que levou a greve geral e, também, porque o movimento se encontra enfraquecido, já que, alguns cursos voltaram com as aulas e outros para o estado de greve – alerta de possível paralisação. “Entendemos que ‘forçar’ a greve a acontecer, se as/os alunas/os não estavam mais vindo para a mobilização, é deixar ela encerrar da pior forma possível e ainda queimar o movimento estudantil”, finaliza Oliveira.
Para estudantes indígenas participar do movimento pela garantia do direito à universidade é questão de sobrevivência no campus.
“Essa luta que a universidade está fazendo, que os estudantes brancos estão fazendo é uma luta que nós estamos fazendo desde que a gente colocou o pé nesse mundo. A gente já está acostumado com isso, porque isso faz parte do nosso dia a dia enquanto indígena”, afirma Laura Parintintin, estudante de ciências sociais.
Desde de 2008 a UFSC segue a resolução normativa Nº 008 que dispõe que metade das vagas de cada curso sejam destinadas às cotas. Mesmo seguindo a determinação, para Parintintin a universidade é ainda muito elitista. “Isso que a universidade está passando não é novidade, embora a gente tenha entrado aqui por ações afirmativas, mas ainda assim a nossa entrada na universidade é precarizada totalmente.” Desde que Jair Bolsonaro assumiu o Governo Federal, os ataques aos povos indígenas se intensificaram.
Em Janeiro, o governo divulgou a Medida Provisória 870 que alterou a competência da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), antes do Ministério da Justiça, para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos e transferiu as terras indígenas para o Ministério da Agricultura. No âmbito da educação, a inclusão e permanência dos estudantes indígenas é, ainda, negligenciada. O Ministério da Educação (MEC) cortou bolsas do Programa Bolsa Permanência, política pública de auxílio financeiro voltado para estudantes quilombolas e indígenas no valor de R$ 900 e de R$ 400 para outras/os estudantes em vulnerabilidade socioeconômica. “A gente tá aqui tentando estudar, tentando sobreviver, tentando ter comida e um teto para ficar em baixo. E para além disso a gente tem o compromisso com o nosso povo, é responsabilidade nossa ajudar o nosso povo”, diz Parintintin.
Das/os 46 estudantes indígenas que vivem na moradia provisória dez acabaram desistindo dos estudos pela falta do recebimento das bolsas. Atualmente apenas oito alunas/os continuam recebendo o auxílio, como explica Walderes Coctá Priprá, estudante de pós-graduação em História. “Esse movimento da greve também ajudou para que a gente fosse mais visibilizado aqui dentro da universidade, porque desde de 2011 têm os estudantes aqui dentro da universidade, mesmo com alguns trabalhos que a gente faz ainda somos invisibilizados aqui dentro”, ressalta Priprá.
Os cortes do Governo Federal também impactaram diretamente o andamento das pesquisas acadêmicas, o que consequentemente terá reflexo expressivo na produção da Ciência no País. A UFSC está entre as dez instituições que mais produz ciência no Brasil nos últimos anos e se configura em primeiro lugar entre as universidades brasileiras com produções acadêmicas mais citadas no mundo, segundo levantamento realizado pelo Times Higher Education (THE). “A UFSC teve, ao todo, 248 bolsas de pós-graduação bloqueadas, incluindo as de mestrado, doutorado e de pós-doutorado, vinculadas à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes/MEC), tornando-se, assim, a instituição com maior perda de cotas de bolsas no país. Desse número, até o momento, 155 foram devolvidas, restando 93 bolsas cortadas durante o ano de 2019”, salientou a pró-reitora Cristiane Derani, gestora da área na Universidade, em matéria da Agência de Comunicação da UFSC (Agecom).
E se não bastasse todo o contexto de desmonte das instituições federais de ensino sentidos em 2019, a previsão para o próximo ano é ainda mais alarmante. A Universidade Federal de Santa Catarina, por exemplo, deve contar com a menor verba dos últimos dez anos para 2020, conforme mostra a matéria “Universidade Federal de Sta. Catarina terá a menor verba dos últimos 10 anos”, do jornal Folha de S. Paulo. O Ranking Universitário Folha apontou que a instituição está entre as sete melhores universidades no quesito geral – internacionalização, pesquisa e ensino – no país. Neste contexto, a qualidade no ensino, pesquisa e extensão sofre graves ameaças e a precarização das instituições federais se mostra evidente.
*Essa reportagem foi produzida por Emily Leão, estagiária em Jornalismo da UFSC, sob supervisão das jornalistas Jéssica Gustafson e Paula Guimarães.