Jádel da Silva Júnior, coordenador do Centro de Apoio Operacional Criminal do Ministério Público de Santa Catarina, fala sobre a investigação e denúncia das mortes praticadas pela polícia

 

Arte: Hadna Abreu

As mortes em confronto com a polícia tiveram um aumento de 80%, em Santa Catarina, durante o período de isolamento social, conforme apuramos nessa reportagem colaborativa. Nesses casos em que policiais são autores de homicídio é comum o uso do argumento da legítima defesa para que os processos sejam arquivados, isto é, para que não haja investigação pela Polícia Civil e denúncia pelo Ministério Público. 

Em levantamento junto ao Tribunal de Justiça, identificamos que a capital do Estado não foge à regra. De 2010 a junho de 2020, apenas dez processos por homicídio ou tentativa de homicídio envolvendo policiais foram distribuídos ao Tribunal do Júri da Comarca da Capital, dois deles por crime tentado. Dessa lista, dois foram arquivados ainda em fase de inquérito policial; dois não foram considerados puníveis, um por morte do agente e o outro por ausência de autoria; quatro foram absolvidos sumariamente antes de seguir a Júri, e apenas dois estão em andamento. Em dois casos de absolvição sumária, a acusação entrou com pedido de recurso

“A nossa posição é jamais imaginar que neste conflito exista previamente concebido ali legítima defesa, absolutamente. Esses conflitos podem ser que tenham sido provocados indevidamente pela PM […] O que o MP precisa fazer é analisar o caso concreto para decidir se houve violação a direito fundamental ou não, e basear a conclusão nisso, independente se está envolvido de um lado um policial militar e de outro alguém menos favorecido socialmente”, afirma Jádel da Silva Júnior, coordenador do Centro de Apoio Operacional Criminal do Ministério Público de Santa Catarina.

Em entrevista exclusiva, o representante do órgão responsável pelo controle externo da atividade policial reforça a visão institucional sobre casos de homicídios em que policiais figuram como autores.  

Jádel da Silva Júnior,atua há quase 30 anos no Ministério Público de Santa Catarina/Foto: arquivo pessoal

Como ocorre a investigação e denúncia dos crimes praticados por policiais?
Todos os casos que envolvem policial militar, fatos esses que possam caracterizar supostamente a prática de crime, por exemplo, um policial vai a determinada comunidade, faz uma intervenção lá, e acaba resultando em alguém ferido em danos ou situação em que esse fato tenha sido supostamente provocado com a participação de um policial militar, a regra é  que esse crime é militar, porque envolve um policial militar. Quando um evento supostamente criminoso envolve ou tem participação de um policial militar se trata de crime militar, que é regido pelo Código de Processo Penal Militar. Quando isso acontece, é instaurado o Inquérito Policial Militar, onde vão ser apuradas as circunstâncias desse fato. Pode acontecer que se identifique no curso dessa investigação que alguém tenha resultado morto nesta intervenção da polícia militar e quem resultou morto foi um civil. Ao se verificar que essa morte decorreu em função de um ato supostamente doloso por parte do militar — o crime doloso contra a vida de um civil praticado por um militar —  a competência deixa de ser da Justiça Militar, ou seja o inquérito militar vai até o final, e é encaminhado para a comum, onde vai para o promotor de justiça para decidir se vai oferecer denúncia e levá-lo ao Tribunal do Júri. 

A quais sanções está sujeito um policial que é réu em ação penal por crimes contra a vida?
O Código do Processo Penal, em seu artigo 319, prevê a possibilidade por medida cautelar do afastamento do policial das suas atividades. Ou se não for medida cautelar de afastamento, pode ser que o promotor opte, dependendo da gravidade e circunstâncias do caso, que o policial seja mantido preso. O desligamento das funções de policial militar de forma definitiva só vai acontecer quando ele for condenado definitivamente, após o trânsito em julgado. Uma das consequências da sentença é esse desligamento da polícia militar.

Quando o policial passa a ser réu num processo comum, de crime doloso contra a vida, ele tem quer encarado como qualquer outro acusado. Tem que se verificar não a conduta enquanto militar, mas a conduta que ele pratico o crime, e se a liberdade dele representa no curso do processo algum risco para a busca de provas.

Havendo essa possibilidade de o policial eliminar provas, o promotor tem que ser o primeiro a pedir que esse réu fique preso preventivamente. Caso o juiz entenda que não seja a hipótese de mantê-lo preso, é possível, então, como forma alternativa à segregação, fixar algumas medidas cautelares. Entre essas medidas está a possibilidade do afastamento do exercício das funções dele e tantas cautelares previstas durante o curso do processo. No momento em que ele é julgado, condenado e transitado em julgado, se verificam as consequências da pena imposta, entre elas o desligamento dele das funções militares. 

Para o Ministério Público, qual o peso da morte de alguém que é genericamente classificado pela polícia como traficante de bairro periférico, pensando que esse policial responsável pela morte é um agente da lei?O foco da atuação do MP em todas as situações deve ser voltado à conduta propriamente dita. No caso de um homicídio doloso, até que ponto se desenvolveu esse crime doloso, se teve qualificadora, motivação severa por parte do agente contra a vítima. Esse é o primeiro foco do MP quando analisa o inquérito policial que chega, evidentemente que depois se verifica para fins de aplicação a pena, não para fins de julgamento de análise da conduta em si, porque temos que separar direito penal do autor, precisamos trabalhar com direito penal do fato: as consequências, as circunstâncias da conduta para chegarmos à conclusão a respeito da culpabilidade desse sujeito. Num segundo momento nós podemos analisar também algo que vai ser inserido na própria narrativa do promotor de justiça, no curso do processo e sobretudo no tribunal do júri, a respeito de alguém que exerce função pública e do qual se exige equilíbrio, equidistância, parcimônia e tudo mais, justamente desse agente público que extrapola, supera esses obstáculos que são impostos a esse sujeito em razão de todo o seu preparo, é claro que isso pode representar um incremento da própria pena, então assim é claro que vai depender das circunstâncias. Se o promotor concluir que se trata de uma conduta que configurou de fato homicídio doloso, é possível, num segundo momento, quando da análise das circunstâncias do crime, da pena e tudo mais, incluir na própria narrativa, que tem tudo a ver com o tribunal do júri, o fato de um agente público não ter tido o equilíbrio em sua atuação, e ter o mesmo tratamento que deve ter alguém que está numa comunidade ou aquele que está numa situação mais privilegiada social e economicamente. Esse olhar a respeito das consequências do crime, sobretudo por ser um agente público, deve ser levada em consideração. 

As mortes praticadas por policiais de Santa Catarina representam quase 13% de todas as mortes violentas intencionais. Estudos apontam que a proporção a partir de 10% indica uso abusivo da força. Outro indicador é a proporção de policiais mortos em relação aos civis mortos em confronto: neste ano um PM morreu em confronto para cada 60 mortes praticadas pela polícia. Como você avalia a proporcionalidade no uso da força pelas policiais catarinenses?
Tenho resistência com relação a esses dados, não a eles em si, mas à interpretação que se faz. É preciso saber as circunstâncias pelas quais se deu essa intervenção. No caso de SC, já que não tenho esses dados de que existe uma predominância das mortes de intervenção policial de pessoas que não sejam policiais. Os dados em si não me permitem concluir que a polícia agiu com excesso ou não. Pode-se concluir que a PM de SC teve que intervir em conflito e no conflito existe a atuação de um ato e de outro, e a polícia militar teve mais sucesso, mais competência para evitar ser atingida e atingir aqueles que conflitaram. Os dados não me permitem concluir sobre os excessos. Analisando as circunstâncias (e não os dados) de cada um desses fatos e sendo possível verifica-se se esse excesso por parte do policial representa crime doloso contra a vida. Será encarado, justamente, como crime doloso contra a vida, em função desse excesso. Outra situação que me parece ser importante da parte do MP, falando em excesso, não exatamente em excesso que resulte em dolo. É necessária a criação dessas promotorias de Segurança Pública, que tenham uma visão não só no sentido de pretender a judicialização desse caso, mas de buscar alternativas, projetos de políticas de conscientização junto à PM, partindo do pressuposto de que houve excesso, no sentido de coibir esses excessos. Caberia ao MP, por parte dessas promotorias com uma política de Estado, institucional, trabalhar no sentido de, junto à PM, encontrar mecanismos de evitar os excessos. Mas deixando claro, a partir da análise das circunstâncias que me permitem dizer que há excessos e não pelos dados, seria uma obrigação do MP atuar dessa forma. 

As mortes praticadas por policiais são classificadas como “mortes em confronto” pela Secretaria de Segurança Pública. A própria classificação, que pode ter variações a depender do estado, já confere justificativa para aquela morte. De forma geral, há um entendimento prévio da polícia, MP e judiciário de que aquela morte resultou de um confronto, isso é, ocorreu em legítima defesa policial?
De forma alguma, aliás, minha posição como coordenador do MP, sou absolutamente contrário àquela ampliação do excludente de ilicitude, que confere legitimidade à atuação da polícia quando há conflito que resulte em morte. A nossa posição é jamais imaginar que neste conflito exista previamente concebido ali legítima defesa, absolutamente. Esses conflitos podem ser que tenham sido provocados indevidamente pela PM. Eu já me defrontei com essas situações, por exemplo, casos em que a polícia invade residência sem mandado, mesmo tendo ali a suspeita e ali se encontre drogas, isso é absolutamente ilegal. Ou seja, um confronto que possa ter sido provocado pela polícia militar, evidentemente analisando esse caso concreto, eu não posso concluir, legitimar essa conduta, a partir dessas excludentes de antijuridicidade. Portanto, o papel do MP é jamais admitir previamente qualquer legitimação da atuação da polícia. O que o MP precisa fazer é analisar o caso concreto para decidir se houve violação à direito fundamental ou não, e basear a conclusão nisso, independentemente se está envolvido de um lado um policial militar e de outro alguém menos favorecido socialmente.

Tenho repúdio, e todos os defensores e promotores que me conhecem sabem bem disso, todo o nosso trabalho e forma que buscamos repassar aos colegas é justamente isso: não admitir qualquer concepção prévia de que num conflito que envolva policial esteja ali pré-concebida a legítima defesa ou uma excludente de antijuridicidade, isso não passa pelo nosso radar.

O correto é analisar cada caso concreto e sempre a partir da constituição, se de fato há ali a violação a um direito fundamental.

Você tem lembrança de algum caso de morte praticada pela polícia em que policiais foram levados a júri e condenados?
Em várias situações. Estou há 29 anos atuando no MP e, nesse período, 26 anos em área criminal. Já presenciei vários policiais militares sendo condenados em tribunal do júri, mas não somente. Não sei o índice de condenação, mas atuei em uma coordenadoria em São José de controle externo que oferecia denúncias contra policiais militares. Já denunciei casos de tortura no sistema prisional contra agentes públicos, que envolveram civis, agentes e militares. Reconheço que quando há a intervenção da PM neste conflito que resulta em morte, quem tem que investigar não é a PM, a investigação deve partir da Polícia Civil, eu já fiz essa defesa inclusive. O Instituto Geral de Perícias (IGP) não está submetido nem à Polícia Militar e nem à Civil. O IGP pode ir ao local dos fatos e fazer levantamento. Agora, evidentemente a título de isenção, não faço julgamento pré-concebido em relação aos inquéritos policiais militares.

Para não permitir interferência da PM em um conflito que resulte em morte, quem tem que investigar aquele fato, recolher os vestígios, as armas, é a Polícia Civil. Algumas vezes nós nos defrontamos com algumas dificuldades em razão de que a investigação se dá em Inquérito Policial Militar e não por Inquérito Policial Civil. 

Os próprios policiais podem ser considerados testemunhas nos processos criminais em que figuram como réus?
Não tem sentido, é o mesmo caso em que agentes públicos de determinada prefeitura praticam alguma infração que eles próprios investiguem, ou membros do MP pratiquem uma infração e eles próprios investiguem. Tem que ser por uma instituição outra que faça essa investigação, até para resguardar a instituição de qualquer interpretação de que um IPM possa ser conduzido de modo a favorecer o PM. É claro que as testemunhas são aquelas envolvidos no contexto. E quem está envolvido no contexto? Os policiais militares e as pessoas da comunidade com as quais houve o confronto. Então, é uma situação complicada, defendo a tese de que a investigação deve ser pela polícia judiciária, civil. 

Em 2016 ocorreu a morte de um policial, no Morro do Horário. Horas depois um jovem foi morto na comunidade, e alguns dias depois outro. A assistente de acusação de um dos casos afirma que as duas mortes ocorreram de forma similares e que havia nelas elementos de execução. Ela revelou que os policiais foram absolvidos sumariamente pelo MP, antes mesmo de serem denunciados. Como em outros casos, nesse os antecedentes da vítima pesaram para que os policiais não fossem denunciados. Como você avalia casos em que o MP não oferece denúncia?
Nesta minha experiência, evidentemente vejo coisas terríveis. Se alguém faz uma análise dos fatos e chega à conclusão, ao final do inquérito ou processo, e se legitimar a atuação homicida por parte do agente público contra a vítima e conclui e legitima a atuação desse policial em função do histórico criminoso da vítima, isso para mim é um absurdo, não tem sentido. Já trabalhei muito também com situações envolvendo vítimas com histórico criminoso significativo e a tendência é sempre buscar desqualificar a vítima para poder justificar a atuação criminosa, no caso homicida. É conduta reprovável e criminosa de quem se vale dessa forma para interpretar o direito e o sistema. Agora, tenho que admitir que de fato isso possa ter existido, eu desconheço alguém que tenha agido dessa forma. De maneira geral, o sistema penal acaba sendo um terreno fértil para reprodução de injustiças por quem é inconscientemente constituído por formação pessoal arbitrária, discriminatória, religiosa, onde se encontram motivações odiosas. Eu poderia dizer que é a forma como é conduzido o sistema por determinadas pessoas e formação. Essa forma odiosa pré-concebida de agir, de buscar legitimar uma ação criminosa, homicida, em função da pouca qualificação do indivíduo, é fato que ocorre também em outras esferas sociais. 

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Essa entrevista integra a reportagem colaborativa “Epidemia de execuções: PM catarinense mata 85% a mais no isolamento social”, trabalho de apuração que envolve três mídias independentes de Florianópolis: Portal Catarinas, CatarinaLAB e Folha da Cidade.

Equipe:
Portal Catarinas: Paula Guimarães e Inara Fonseca
Folha da Cidade: Míriam Santini de Abreu e Priscila dos Anjos
CatarinaLAB: Fábio Bispo
Fotos: Alice Sima e Odara Cris
Ilustrações: Hadna Abreu
Infográficos: Fábio Bispo

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Palavras-chave:
  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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