“São as mulheres, em todos os cantos, que mobilizam as principais pautas de transformação”
Em passagem por Santa Catarina, candidata a co-presidenta – como ela se refere à vaga da chapa na vice-presidência da República na candidatura do PSOL com Guilherme Boulos, Sônia Guajajara denuncia o golpe, as desigualdades, o racismo e o genocídio contra os povos originários. É a primeira indígena candidata ao poder executivo central na história do Brasil.
Com um acessório de penas coloridas no cabelo, colar, brinco e pulseiras artesanais de diferentes povos, a líder indígena Sônia Guajajara foi recebida de pé e com palmas pela plateia para a aula magna na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), no campus da Trindade, em Florianópolis. A palestra, quinta-feira, 10 de maio, foi uma das atividades de sua passagem pelo Estado e lotou o auditório da reitoria especialmente de jovens estudantes, que ocuparam também o corredor e o espaço à frente do palco. Coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Sônia adota o termo “co-presidenta da República” – construído pela aliança em torno da campanha, ao se referir à candidatura junto a Guilherme Boulos, ambos filiados ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Com uma fala tranquila, mas crítica, Sônia convocou a plateia à reflexão e ao que ela aponta como necessário reencanto com esperança. Como ela diz, apesar de o Brasil ter mais de 300 povos indígenas, sua candidatura rompe com uma invisibilidade histórica. É a primeira vez que uma mulher indígena compõe uma aliança na disputa pela presidência da República no Brasil.
Ex-militante do PT e membra do PSOL desde 2011, ela estava acompanhada de Eunice Kerexu, ou Kerexu Yxapyry em guarani, ex-cacica da terra indígena Morro dos Cavalos, em Palhoça (SC) e pré-candidata a deputada federal por Santa Catarina, também pelo PSOL. Não apenas defensoras da pauta ligada às questões indígenas, ambas apresentam como proposta um “bem viver”, em contraponto ao atual modelo de exploração econômica. Nesse sentido, concentram as ações principalmente na mudança de relação com o meio ambiente. Sônia ressaltou ainda a importância do engajamento popular para o enfrentamento e a resistência contra o que chamou de “minoria”, que impõe, hoje, as regras ao país. Ao falar sobre o golpe pelo qual passa o Brasil, reforçou como a situação séria exige uma reação imediata. “Se a gente se juntar, a gente pode muito mais”, refletiu.
Uma voz contra as opressões
“Há 518 anos a gente vem tendo nossos direitos negados. O aumento desses ataques, o aumento dos assassinatos, é que faz com que a gente se encha de coragem para poder tentar dar um passo à frente”, destacou Sônia, durante sua explanação. “Queremos ser protagonistas da nossa história. Pela primeira vez, em 518 anos, teremos não só uma representação indígena em uma chapa presidencial, como uma representação indígena mulher”, argumentou, sendo ovacionada pela plateia.
A agenda da liderança e candidata em Santa Catarina incluiu ainda visita à terra indígena Morro dos Cavalos, conversa com a militância na escadaria da Ubro no centro da capital (fotos), palestra na Semana de História da UFSC e na Unisociesc, em Joinville, entre outras atividades.
Sônia Guajajara pertence ao povo Guajajara/Tentehar, da terra indígena Aririboia, no Maranhão. Graduada em Letras e Enfermagem, fez pós-graduação em Educação Especial. Reconhecida como liderança internacional pela militância indígena e ambiental, ela concedeu entrevista exclusiva a jornalista Magali Moser, na sexta feira. O Portal Catarinas reproduz a seguir.
Catarinas – Como explicar a invisibilidade dos povos indígenas e a violência a que estão submetidos num país como o Brasil, resultado de povos originários, que estavam aqui inclusive antes da chegada dos portugueses? Por que do ódio que alimenta crimes como o cometido contra o professor Marcondes no litoral catarinense e como explicar este paradoxo num território marcado historicamente pela diversidade sócio-cultural, como no caso brasileiro?
Sônia Guajajara – O grande responsável pelas opressões e violência pelo qual os povos indígenas, a classe trabalhadora e a população das periferias sofrem se dá pela cultura da colonização, da sanha do capitalismo colonial, do mercado especulativo internacional e das elites nacionais brancas e entreguistas em apoderar-se dos recursos naturais e da possibilidade de emancipação das classes mais vulnerabilizadas desse país. Nós, indígenas, somos o maior símbolo disso, assim como a população negra, quilombolas, caiçaras e demais povos tradicionais, pois ao passo em que somos oprimidos, marginalizados e criminalizados, o colonialismo se impõe como comportamento cultural majoritário e supostamente homogêneo, não permitindo que a verdadeira identidade do povo brasileiro, diversificada por essência, se afirme enquanto comportamento emancipatório.
O caso do professor Marcondes no litoral catarinense evidencia um processo de aumento do conservadorismo, da intolerância pelas diferenças étnicas, religiosas e culturais e principalmente pelo racismo e preconceito contra negros, indígenas e populações tradicionais. Isso não é um caso isolado e tem acontecido desde muitos anos, de norte a sul do país. Jamais esqueceremos o caso de Galdino dos Santos, por exemplo, do povo Pataxó, que foi cruelmente assassinado em 1997 por cinco jovens de classe média alta que atearam fogo em seu corpo enquanto o mesmo dormia num ponto de ônibus em Brasília. Basta de etnocídio dos nossos parentes!
Catarinas – De que maneira essa invisibilidade a respeito dos povos indígenas afeta a identidade brasileira?
Sônia – Afeta principalmente no comportamento de consumo, nas relações humanas e nas relações de poder. Neste país, as elites nacionais entreguistas não toleram pobre na política, não toleram os povos originários em espaços políticos, pois não aceitam perder seus privilégios. Um aspecto muito importante a ser acentuado no comportamento cultural é a lógica de desenvolvimento que permeia e conduz esse país, uma lógica predatória dos recursos naturais e de intensa exclusão dos mais pobres, pois enquanto eles são a referência majoritária de consumo, de relações humanas e de poder, sua força política permanece, as opressões acentuam-se.
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Catarinas – Na aula magna ontem na UFSC, a senhora citou que só no mês de janeiro desse ano foram quatro casos de assassinatos de lideranças indígenas no Brasil. A impunidade contribui para o aumento da violência?
Sônia – A impunidade é o pilar do racismo institucionalizado como principal braço de manutenção das opressões e da força dos mais ricos, como setor hegemônico no campo político e cultural. Exemplo disso é o caso Marielle Franco, nossa companheira que foi brutalmente executada e que até agora não temos solução. É o racismo institucional operando sobre o comando das elites opressoras machistas, sexistas e misóginas.
Catarinas – Falando especificamente sobre a violência contra a mulher indígena, cujos números e estatísticas nos mostram um crescimento dos casos nas terras indígenas. Quais são os casos mais comuns de violações e como romper o silenciamento sobre a violência contra a mulher indígena?
Sônia – A questão da violência contra a mulher merece uma reflexão mais ampla. O processo colonizador instituiu o patriarcado cooptando homens para assumir papeis patriarcais, implodindo assim as formas internas de organização. O objetivo foi e continua sendo o de colocar povos, grupos e comunidades em situação de submissão. Tanto quanto outros povos, os indígenas sofreram e continuam a sofrer nos corpos e territórios a pesada mão do colonizador e de um patriarcado que se afirma fundamentalmente sobre as mulheres. Mas resistimos. E nossa resistência floresce. São as mulheres, em todos os cantos, que mobilizam as principais pautas de transformação. E se o patriarcado pode ser pensado como o sistema de opressão dos homens sobre as mulheres, de todas as opressões, violências, discriminações que vivem não só todas as pessoas, mas toda a humanidade e também a natureza, é mais frequentemente construído sobre os corpos das mulheres. Essas opressões e violências que atestam a falência do neoliberalismo (que é um colonialismo maquiado) e comprovam que os povos indígenas, as mulheres indígenas, quilombolas e negras são necessárias para ajudar a sociedade a romper esses modelos esgarçados, que excluem, que não nos serve. Só com a presença e participação de mulheres (indígenas, quilombolas, negras) poderemos encontrar ou reencontrar o significado do que é viver bem, na cidade ou no campo, e em todos os aspectos da vida.
Catarinas – Depois do golpe que retirou da presidência Dilma Rousseff, a primeira presidenta mulher na história do Brasil, a ameaça sobre os direitos das mulheres tem se agravado. É a resistência que lhe motiva a entrar na disputa eleitoral como primeira mulher candidata a co-presidência do Brasil?
Sônia – A nossa luta não começou agora, são 518 anos de resistência, em defesa da nossa terra, das nossas vidas. Mas a população indígena ainda é muito invisibilizada no Brasil, principalmente nos espaços institucionais, mesmo sendo aproximadamente 305 povos com mais de 274 línguas. Vejamos quantos indígenas ocupam as câmaras e assembleias pelo país? Nós decidimos que é hora de ocupar a política com nossas ideias, com nossas propostas e não mais deixar que falem em nosso nome, mas que sejamos nós próprios sujeitos de nossa própria história. Assim, recebi muito apoio dos meus parentes, de pesquisadores e do próprio partido, que tem abraçado essa pré-campanha. E isso reverbera de modo interessante, só pelo PSOL já temos confirmadas 12 candidaturas indígenas registradas. Sobre o golpe no Brasil, a saída da presidenta Dilma aprofundou muito alguns processos que ameaçam ainda mais os direitos da nossa população, vejamos as reformas da previdência e trabalhista como exemplos desses retrocessos tocados pelo ilegítimo Temer. Mas também temos que reconhecer que algumas questões muito importantes para a nossa luta, como a demarcação das terras indígenas, já se encontravam paradas no governo anterior. A motivação então é fortalecer essa luta de centenas de anos e mais do que isso: apresentar uma visão própria de bem-viver e de “desenvolvimento” para o Brasil. Ou seja, não se trata apenas das questões indígenas, mas de como ressignificar toda a relação homem-natureza, no campo e na cidade!
A ameaça aos direitos das mulheres é um forte pilar de minha motivação, contudo o que mais motiva minha militância política e candidatura é o combate às opressões pelo qual as mulheres nesse país enfrentam. Minha militância nos movimentos sociais, em especial o movimento indígena, está para além da resistência, ela se motiva em combater, em lutar para cessar esse estado permanente de subjugação pelo qual nós, mulheres, somos submetidas, e agora em uma nova trincheira, a trincheira institucional. Combater a tripla jornada, os salários baixos, a criminalização do aborto e o comportamento machista, sexista, misógino, e a sub-representação da mulher na política é algo que me fortalece e me motiva nesta candidatura. A luta feminista se coaduna a dos povos indígenas, sofremos opressão igualmente. Contudo, além de lutar por reparações históricas do machismo político, institucional e cultural, nós também lutamos por um Brasil sem desigualdades, queremos um Brasil de iguais, sem opressão, sem machismo, sem sexismo, sem misoginia, sem homofobia e sem racismo, mas respeitando e garantindo as diferenças étnicas e culturais. Esses são meus princípios e minhas motivações como pré-candidata a co-presidente na chapa junto com o companheiro Guilherme Boulos.
Catarinas – Além da senhora, outra mulher que está nessa fase de disputa de pré-campanha é Manuela D’Ávila, do PCdoB. A senhora vê alguma possibilidade de composição do PSOL com o PCdoB? Se fosse o caso, a senhora abriria mão de sua candidatura para apoiar uma possível composição entre Boulos e Manuela?
Sônia – A nossa pré-candidatura é para valer, nossa aliança com o PSOL e com os movimentos sociais é sólida e não há nenhuma possibilidade de recuo ou desistência. Acreditamos que ela é imprescindível para a esquerda brasileira em tempos de golpe e contra ofensiva das forças dominantes e disseminação da cultura de ódio. Além de apresentar uma voz silenciada há mais de 500 anos! Acredito que a principal aliança se dá nas ruas e nas lutas. Espero encontrar os/as camaradas do PCdoB sempre nas ruas conosco, enfrentando os ataques e retrocessos à classe trabalhadora, aos povos tradicionais e aos bens comuns. A candidatura de mulheres como eu e Manuela é sempre importante e significativo, pois ainda somos poucas nos espaços institucionais, acredito que devemos ocupar a política cada vez mais. Entretanto, em termos eleitorais, alianças desse tipo são impraticáveis. Porque qualquer aliança precisa ser feita em marcos políticos e de construção programática, apesar de aliados contra o golpe e contra o conservadorismo, existem profundas diferenças entre o programa que defenderei e o que vai defender Manuela. Percebo que a esquerda brasileira caminha unida para derrotar o golpe em curso nesse país, mesmo em suas diversidades, portanto, o debate não é quem retira para quem, mas de que maneira iremos derrotar o golpismo, a cultura de opressão das elites nesse país, da conciliação de classes e da lógica do desenvolvimentismo, que inclusive é muitas vezes defendido por setores da esquerda. É com essa compreensão que vejo nossa pré-candidatura junto ao companheiro Guilherme Boulos, cumprir um forte papel em afirmar a verdadeira identidade do povo brasileiro, unidade na diversidade, com um programa que tem sua centralidade na luta por igualdades e pelo fim dos privilégios.