Falhas na rede estadual de proteção às mulheres em situação de violência estão diretamente relacionadas à alta taxa de feminicídios.

Ariane Tenfen Mendes de 21 anos foi assassinada pelo ex-companheiro, Altair Gonçalves, de 35 anos no município de Águas Frias, oeste catarinense. Ela é uma das 49 vítimas de feminicídio em Santa Catarina na pandemia. Um aumento de 2% em relação a março e dezembro de 2019, segundo a Secretaria de Segurança Pública de SC. No total, 57 catarinenses foram mortas em 2020. Índices tão altos colocam a região entre os estados mais feminicidas do Brasil durante a pandemia

A classificação leva em conta o número de mortes a cada 100 mil habitantes mulheres. Enquanto no Brasil a taxa de feminicídio em 2020 ficou em 1,18, em Santa Catarina o índice foi de 1,51. Diante deste cenário, SC caiu da 10ª posição em agosto para a 9ª em apenas 4 meses. O estado é o único da região Sul a fazer parte da lista, os outros são do Centro-Oeste, Norte e Nordeste. 

Nos primeiros cinco meses de pandemia, o estado aparentava trilhar um caminho diferente de 2019, ano recorde de feminicídios com 59 casos. De março a agosto, o índice de mulheres mortas por parceiros ou ex-companheiros apresentou queda de 14% em relação ao mesmo período do ano anterior, segundo a SSP/SC. Entretanto, o último quadrimestre de 2020 causou uma reviravolta ao registrar 24 feminicídios, um aumento de 25% no número de mortes em relação a setembro e dezembro de 2019. O assassinato de Ariane aconteceu em novembro, considerado o mês mais violento desde o início da pandemia, com um total de 8 feminicídios.

“Esse aumento no fim do ano é muito significativo, há diversos fatores que podem culminar nesse crescimento, o isolamento prolongado tensionando uma violência que já está posta, a ausência de espaços de socialização da mulher que inclusive servem para pedir ajuda a terceiros, junto com isso a impossibilidade em denunciar, o medo em denunciar e mais ainda, a condição econômica em função do desemprego, da alta nos preços. Quando pensamos na violência como multidimensional e consideramos todos esses aspectos talvez o final do ano apenas potencialize esses elementos”, reflete a professora e pesquisadora Luciana Zucco, coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Saúde, Sexualidades e Relações de Gênero (NUSSERGE/UFSC). 

No geral, o estado apresentou queda de 3% no número de feminicídios em relação a 2019. Em tradução simples, a diferença entre os dois anos foi de apenas duas mortes. Entre as vítimas, três mulheres pretas, uma a mais que em 2019. As denúncias de violência doméstica (ameaça, lesão corporal leve e grave, injúria, calúnia, danos, difamação, vias de fato) também diminuiram em 7%. 

Entretanto, não dá para falar em redução da violência em Santa Catarina enquanto os números forem exorbitantes. Somente no ano passado a polícia civil recebeu mais de 61 mil denúncias de violência doméstica. Ou seja, em média, cinco mil catarinenses foram violentadas por mês, 171 por dia, sete a cada hora. Inclusive, uma deve estar sofrendo algum tipo de violência agora enquanto você lê esta matéria.

A subnotificação dos dados já mencionada nas reportagens anteriores da série também é um empecilho na hora de analisar os números do estado. As mulheres, principalmente do campo e de comunidades periféricas, seguem tendo muita dificuldade em denunciar. A maioria sequer tem acesso a um celular, muito menos internet.

Segundo Jacira Mello do Instituto Patrícia Galvão, outro fator que explica a diminuição das denúncias é a exigência da presença da vítima para a instauração de inquérito na maior parte dos crimes cometidos contra as mulheres.

Diante deste cenário, os pedidos de medidas protetivas passaram a ser o medidor do impacto da pandemia na vida das catarinenses. De acordo com o Tribunal de Justiça de SC, 12.931 mulheres solicitaram a medida entre março e dezembro, um crescimento de 21% em relação ao mesmo período de 2019. 

O aumento é um sinal de que as mulheres estão sofrendo violência sistematicamente, o que não quer dizer que estão longe de serem mortas. Apenas 75 municípios possuem a Rede Catarina que acompanha as mulheres que estão com medidas protetivas.

Sem rede de proteção, a epidemia da violência contra a mulher dispara

Assim como as mortes causadas pelo coronavírus poderiam ter sido evitadas não fosse o negacionismo do governo atual, o feminicídio também se encaixa em uma “morte evitável”, caso não houvesse a conivência institucional e social perante as violências praticadas contra as mulheres.

Normalmente, o feminicídio representa o ápice de um histórico de violências. Antes da agressão física, homens violentos controlam, isolam e rebaixam a parceira a ponto de minar a resistência da própria que passa a sentir muito medo. Se notada antecipadamente, seja pelo círculo social da vítima ou pela rede de enfrentamento à violência contra as mulheres, uma tragédia pode ser evitada. 

Disposta na lei Maria da Penha, a rede de enfrentamento baseia-se em quatro eixos: combate, prevenção, assistência e garantia de direitos das mulheres. A articulação entre instituições governamentais, não-governamentais e a comunidade é fundamental para o bom funcionamento da rede. 

A Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres recomenda que cada estado ofereça serviços e mecanismos de proteção à vítima. Das 9 orientações, Santa Catarina só não possui a Casa da Mulher Brasileira, mesmo assim a rede estadual de proteção é dotada de falhas.

“O cenário estadual está distante do que a Lei Maria da Penha dispõe. Aqui a gente não pode nem dizer que há uma rede, porque aqui temos serviços isolados, não estão articulados. Há municípios que nem têm esses serviços, são poucas delegacias da mulher, casas abrigo são insuficientes, só há três centros de referência especializados para mulheres (CREMV). Os órgãos também sofrem sem equipe. A Defensoria Pública de SC tem apenas 117 defensores públicos para o estado inteiro”, relata Anne Teive, defensora pública e coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (NUDEM).

Arte: Beatriz Lake

A presença do Estado é insuficiente principalmente nas cidades menores e de interior de Santa Catarina e essa ausência de serviços públicos também contribui para o aumento dos casos de feminicídio. O território catarinense abriga 295 municípios e conta apenas com 35 delegacias da mulher e 10 casas abrigo.

Apenas na capital, no município de Dionísio Cerqueira e São Domingos há um Centro de Referência ao Atendimento à Mulher (CREMV), no restante das cidades o atendimento é feito por Centros de Referência mais generalizados, muitas vezes sucateados e com poucos funcionários na atuação.  

“A grande maioria dos municípios não tem lugar para acolher essas mulheres, é um problema amplo, a assistente social em uma cidade pequena vai atender todas as pessoas, com situação de alta, média e pequena complexidade. Muitas cidades têm só dois funcionários para atender a toda demanda com pouca estrutura para isso”, relata Carolina Rodrigues Costa, assistente social e integrante do Coletivo Valente. 

Na teoria, esses espaços deveriam ser especializados, com funcionários capacitados e treinados para acolher a vítima em um atendimento humanizado. Além de ter uma estrutura de grupo terapêutico, com convênios em outras cidades caso a mulher esteja impossibilitada de voltar para casa. Mas o que se vê na prática, são interrogatórios repetitivos que revitimizam a vítima e a falta de preparo e conhecimento sobre gênero por parte de policiais e assistentes sociais. 

“A formação dos assistentes sociais tem que ser pensada como uma questão estadual e também de movimento social. Levar para esses municípios um curso que discuta a violência de gênero e nós, como agente público, temos que entender como funciona”, afirma Carolina. 

Águas Frias é um exemplo de como a frágil articulação entre os serviços dificulta o acesso das mulheres ao atendimento multidisciplinar e intersetorial e faz com que a vítima peregrine em busca de atendimento direcionado. O município conta com uma delegacia que não funciona aos finais de semana, há apenas uma assistente social e uma mediadora na Casa da Cidadania, espaço de atendimento a pequenas causas, como divórcio, pensão alimentícia e guarda de menores. 

Ariane Isabel Tenfen, vítima de feminicídio em novembro de 2020 tentou acessar serviços de proteção, mas não recebeu ajuda a tempo de viver. (Foto: Arquivo Pessoal)

“Precisamos discutir gênero em todos os âmbitos das políticas públicas do estado, essa transversalidade é essencial. Podemos concluir que o estado está fazendo parcialmente o seu papel porque para que tenhamos uma diminuição das violências contra as mulheres e de feminicídios é preciso a realização de ações integradas e preventivas, sim, mas não somente com agentes de segurança”, afirma Sheila Sabag, conselheira do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (CEDIM/SC).

Outro problema antigo é a falta de estrutura da polícia militar de SC. O contingente policial segue sendo pequeno e não dá conta de atender todos os municípios. É o caso do batalhão da PM em Chapecó que atende 43 cidades, entre eles Águas Frias. “Só em Chapecó, aos finais de semana, temos por vezes 80 chamadas por perturbação de sossego e fechamos o dia com atendimento de 45, ou seja, às vezes 30 ocorrências vão ficar sem atendimento. No caso de Águas Frias, Nova Erechim e Nova Itaberaba, 21 policiais tomam conta desses locais. Se a guarnição está atendendo uma chamada em outro município, a ocorrência recebida tem que esperar”, revela o comandante do batalhão, tenente-coronel Fábio Henrique Machado.

Em um contexto de pandemia, os serviços de enfrentamento da violência precisam ser readequados e as respostas às mulheres agilizadas. Até porque em um episódio de violência doméstica, tempo é algo que a mulher não tem. Um minuto a mais e o feminicídio pode ser consumado. 

No sentido de direcionar a rede de prevenção e assistência das vítimas de violência no Brasil, a ONU Mulheres formulou o guia “Diretrizes para Atendimento em Casos de Violência de Gênero Contra Meninas e Mulheres em Tempos da Pandemia da Covid19”, publicado em julho de 2020. O manual orienta profissionais a “estarem capacitados para entender o contexto excepcional de atendimento. Mulheres podem correr risco de graves agressões ao realizar uma ligação telefônica, enviar uma mensagem em busca da ajuda ou procurar um serviço para atendimento presencial. Cada ligação deverá ser tratada como oportunidade única para oferecer apoio, informação e minimizar o risco de novas violências”.

A demora em resguardar os direitos das mulheres durante a pandemia atinge o âmbito federal. Apenas em julho de 2020, o presidente Jair Bolsonaro sancionou a Lei 14.022, dispondo os serviços especializados de atendimento às mulheres entre os serviços essenciais. 

Se para o governo federal os direitos femininos não são prioridade, tendo em vista que usou apenas metade da verba destinada para proteção da mulher em 2020 e, neste ano cortou mais 25% dos recurso na área, Santa Catarina segue os mesmos passos. A proposta de lei da deputada estadual Ada de Luca (MDB), que institui o Auxílio Emergencial Financeiro destinado às mulheres que estão asseguradas pelas medidas protetivas e que são vítimas de violência doméstica durante a pandemia, ainda não foi aprovada. 

Outra proposta que ainda espera votação é a da deputada estadual Luciane Carminatti (PT), que obriga condomínios a comunicarem casos de violência doméstica à polícia. Apresentada em junho do ano passado também ainda não foi votada. 

“De nada adianta ter a Lei Maria da Penha, uma das mais avançadas no mundo, se o Brasil é o quinto país que mais mata mulher. A distância entre uma boa lei e os casos de feminicídio acaba não dando resultado”, afirmou Fabiana Dal’mas, promotora de Justiça em uma live sobre feminicídio. 

Tímidos progressos

O governo de Santa Catarina parece ainda não perceber o grave problema social da escalada da violência doméstica que traz elevado prejuízo para a sociedade catarinense. Na corrida contra a omissão do estado, representantes feministas da sociedade têm avançado no debate. 

A implementação do Observatório Social de Violência Contra a Mulher, lei aprovada e sancionada em 2015, parece avançar. Em fevereiro deste ano, a bancada feminina da Assembléia Legislativa de SC apresentou o projeto pronto ao presidente da Casa. A expectativa é que a discussão tramite em plenário ainda neste mês de março. 

O grupo de trabalho do Observatório reúne mulheres da polícia civil, Ministério Público, UFSC, Tribunal de Justiça de SC e Secretaria de Desenvolvimento Social. A proposta é que a ALESC disponibilize uma sala onde funcionará uma grande central de dados de violência contra as mulheres. O objetivo é reunir, analisar as ocorrências de todo o estado, para assim implementar políticas públicas direcionadas à população feminina.

Já os trâmites para construção da Casa da Mulher Brasileira na cidade de Tubarão, sul do estado, anunciada em junho do ano passado, parece estar caminhando. A expectativa é que o espaço possa ser entregue ainda neste ano. No início deste mês de março, a coordenadora geral do Programa Mulher Segura e Protegida do MMFDH, Valéria Avanci, prestou esclarecimentos sobre a implementação da Casa no estado em reunião com o CEDIM/SC. A técnica relatou que os recursos para a construção das Casas dependem de emendas parlamentares. “Quem correu atrás (de emenda), levou”, disse Avanci se referindo à Casa de Tubarão.

A tratativa do espaço de atendimento às mulheres em Tubarão foi liderada pelo deputado estadual Sérgio Motta (Republicanos) a pedido da empresária tubaronense, Luciane Torkarski, que na época era candidata à vereadora pelo mesmo partido. Luciane acabou sendo eleita com a bandeira da Casa da Mulher Brasileira. “Eles chegaram com tudo pronto, não tinha como dizer não, então apareceu o recurso para Tubarão e foi”, completa a técnica.  

Em janeiro deste ano, o governador Moisés e a primeira-dama do Estado, Késia Martins da Silva, anunciaram a construção de mais uma Casa da Mulher Brasileira, desta vez em Florianópolis.  

“Tecnicamente não se tem nada muito concreto para Florianópolis. O que tem é o terreno cedido e conversas interessadas. Pode ser que a bancada de SC queira agir para investir na casa, mas isso tem que vir dos deputados. Mas se aparecer em outra cidade mais rápido que em Florianópolis, vai acontecer antes que aí também”, afirma Valéria

Para evitar que a Casa da Mulher Brasileira se torne apenas ativo de interesse eleitoreiro, o CEDIM/SC, órgão responsável pelo monitoramento das políticas públicas para as mulheres no estado, deve realizar outras reuniões para maiores esclarecimentos e acompanhamento dos processos.

Outro avanço é o Formulário Nacional de Avaliação de Risco, desenvolvido pelo Conselho Nacional de Justiça e Ministério Público Federal e que já vem sendo aplicado pelo Tribunal de Justiça de SC. A ideia é que profissionais que trabalham no âmbito da violência contra a mulher possam usar o questionário no momento do atendimento à vítima, podendo assim, tomar decisões ou medidas de prevenção da violência com o objetivo de evitar que novas agressões ocorram.

A Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (CEVID/TJSC) em parceria com a Academia Judicial, desenvolveu o curso O Gênero bate à porta do Judiciário: aplicando o Formulário Nacional de Avaliação de Risco, para capacitar os servidores sobre os direitos com perspectiva de gênero e apresentar ferramentas para a interpretação do formulário.

O custo do feminicídio

Sem a intenção de dar preço à vida perdida pelo feminícidio e entendendo que a vida de ninguém pode ser medida em reais, apresento neste subtítulo dados divulgados em 2019 pelo Tribunal de Contas de SC, apenas como uma forma de compartilhar informações.

Uma auditoria do órgão analisou os números de feminicídios entre os anos de 2011 e 2018 a fim de expor o custo econômico e de auxiliar as autoridades na prevenção deste tipo de crime.

De acordo com o documento, neste período foram contabilizados 353 feminicídios. Utilizando de uma metodologia empregada em estudos de economia do crime, o relatório concluiu que a estimativa do custo econômico do feminicídio para o Estado desde 2011, foi de R$424,3 milhões. Segundo os auditores, esse número pode ser maior. “…pela ausência de dados para o cálculo de vários dos custos envolvidos, o valor mensurado é considerado um piso, ou seja, a perda socioeconômica decorrente deste crime é consideravelmente maior”, diz um trecho do relatório.

Infelizmente, o caso de Ariane comprova a existência das falhas na rede estadual de proteção à mulher vítima de violência. Os órgãos de segurança e de assistência social do município cometeram uma sequência de erros que culminaram na morte da jovem. 

Para a antropóloga latino-americana Marcela Lagardes, o feminicídio não é só quando há ódio e discriminação, mas também quando há impunidade e leniência por parte do estado.

Altair Gonçalves vai responder por feminicídio com três qualificadoras: motivo fútil, incapacidade de defesa da vítima e testemunho de crianças. Ele pode pegar até 35 anos de prisão.

Saiba onde denunciar

180 – Canal de denúncias do governo federal
181 – Disque-Denúncia da Polícia Civil
(48) 98844-0011 – Whatasapp da Polícia Civil
190 – Polícia Militar para casos de emergência
Aplicativo PMSC Cidadão
Registro de Boletim de Ocorrência Online

*Nome fictício para preservar a identidade da(o) entrevistada(o).

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