Amanda Miranda é uma jornalista de Santa Catarina com mais de 20 anos de atuação na área e doutora pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Recentemente, ela se tornou alvo de processo judicial pela deputada federal Júlia Zanatta (PL/SC) após a divulgação de informações sobre um pagamento de R$5.000 realizado pelo mandato da parlamentar a um jornal local. A postagem, feita em dezembro de 2023, comparava o pagamento com uma reportagem favorável à deputada publicada pelo jornal. A deputada Zanatta é a quinta personalidade no Brasil com mais processos de assédio judicial contra jornalistas desde 2008, conforme o Monitor de Assédio Judicial Contra Jornalistas da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).
“Era uma nota com um valor que eu nem considero muito alto, de R$5000, mas achei curioso por ser um valor destinado a um jornal. Não é muito comum parlamentares contratarem jornais, geralmente são agências de comunicação”, afirma a jornalista sobre o que motivou a postagem.
Miranda, que é também funcionária pública na UFSC, criadora da newsletter Passando a Limpo e contribui com o portal ICL Notícias, recebeu apoio do Programa de Proteção Legal para Jornalistas da Abraji, do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina (SJSC), da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e da Women Press Freedom. A jornalista enfrenta ações civil e criminal movidas pela deputada que demandam a exclusão da postagem, uma indenização de R$10 mil e o pagamento de honorários.
Em paralelo, Miranda também é alvo de uma ação civil aberta pelo marido da parlamentar, Guilherme Colombo, funcionário comissionado do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE). A ação foi aberta após a jornalista questionar em suas redes sociais o motivo de Colombo acompanhar deputados de Santa Catarina em uma viagem aos Estados Unidos, sem que a viagem estivesse relacionada a suas funções de trabalho. Conforme o advogado Lucas Mourão, que representa Miranda, a ação criminal ainda não passou por audiência, enquanto as duas cíveis já estão em fases finais, seja aguardando réplica ou julgamento.
A defesa de Zanatta argumenta que a publicação é difamatória, enquanto Miranda vê o processo como uma tentativa de silenciamento e uma tática de intimidação contra jornalistas críticos. O Monitor de Assédio Judicial Contra Jornalistas da Abraji aponta que o uso do sistema legal para intimidar a imprensa é uma prática preocupante e que a quantidade de processos como os enfrentados por Miranda reflete uma estratégia autoritária.
A jornalista de Santa Catarina usa dados públicos para suas investigações. Ela destaca que sua atuação visa trazer transparência e responsabilização aos políticos, e acredita que as ações judiciais têm o objetivo de coibir sua crítica e o trabalho de outros jornalistas.
A jornalista catarinense conta com suporte jurídico do escritório Flora, Matheus & Mangabeira Sociedade de Advogados, do Rio de Janeiro, e com apoio da Associação Brasileira de Jornalistas Investigativos (Abraji) e da Media Defence, organização não governamental do Reino Unido.
Entramos em contato com a assessoria de Zanatta para pedir um posicionamento sobre a reportagem. Não recebemos retorno até o momento da publicação.
Quem é Amanda Miranda
Jornalista formada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), atua há mais de 20 anos na área. É Mestra e Doutora pela mesma instituição e pesquisa jornalismo especializado em saúde, televisão, jornalismo científico, educomunicação, entre outras temáticas. Concluiu o pós-doutorado na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP).
Quando Jorginho Mello (PL) assumiu o governo de Santa Catarina em 2023, Miranda iniciou a publicação de denúncias sobre as ações do novo governo, utilizando dados públicos obtidos pelo Portal da Transparência e divulgados no X (antigo Twitter). Ela fez isso por entender que a transição do governo anterior para o novo não foi realizada de forma democrática.
“Comecei a ter uma atuação nas redes sociais bastante focada na crítica ao bolsonarismo e ao extremismo predominante em Santa Catarina, muito por perceber a anuência da grande mídia local”, relata.
O crescimento no X ocorreu de forma orgânica. Atualmente, tem mais de 13 mil seguidores. No perfil, se descreve como “ativista pelo direito à informação” e que realiza trabalho de “curadoria e informação política de SC e do Brasil”.
Com o crescimento das redes sociais e por perceber que existiam informações que demandam mais contexto do que os caracteres permitidos pelo X, Miranda criou a newsletter Passando a Limpo. Desde abril de 2024, também colabora com o ICL Notícias.
“Eu trabalho com dados públicos, da transparência. Qualquer cidadão pode acessar as informações que eu tenho. Os dados envolvem, geralmente, pessoas do campo da política com mandato e por conta disso eu recebi esses processos da deputada federal Juliana Zanatta”, aponta.
Em paralelo, Miranda também é funcionária pública na UFSC, atuando como jornalista na Agência de Comunicação da universidade. O fato já foi usado para atacar o trabalho feito nas redes sociais. “A minha atuação como servidora pública não está relacionada com a minha atuação como jornalista e como ativista em defesa da informação. O meu trabalho remunerado como servidora pública é de 5 horas diárias, então tudo que eu faço que não seja trabalhando como servidora pública é fora do meu horário”, destaca.
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Antes do processo de Zanatta, o marido da deputada, o advogado Guilherme Colombo, já chegou a responder postagens de Miranda no X citando o local de trabalho da jornalista. “Ele começou a responder alguns twittes meus citando o meu local de trabalho, perguntando se as pessoas de lá sabiam o que eu estava fazendo. Foi o único momento em que, de fato, me senti ameaçada e muito exposta, como se alguma coisa pudesse me acontecer por ele saber onde eu trabalhava”, lembra.
A postagem que provocou os processos de Júlia Zanatta
Miranda conta que, no recesso de fim de ano de 2023, estava olhando o Portal da Transparência por ser um hábito que desenvolveu quando notou o valor que gerou interesse nas movimentações de Zanatta.
“Decidi olhar o que o jornal havia publicado sobre a deputada e descobri que havia uma série de menções positivas ao nome dela. Uma dessas menções não só era positiva, como era uma notícia falsa que foi publicada três dias depois da emissão da nota fiscal”, recorda.
A publicação que originou os processos ocorreu em 26 de dezembro de 2023. O conteúdo comparou um registro de pagamento de R$5 mil ao jornal A Razão, datado de 8 de novembro e descrito como “criação e distribuição de conteúdos para divulgação da atividade parlamentar no período de 01/10 a 31/10” nas redes sociais da parlamentar, com uma matéria publicada pelo jornal em 11 de novembro intitulada “Deputada Júlia Zanatta traz alívio para empresários do Alto Vale”.
A matéria fala sobre a prorrogação pela Receita Federal do prazo de pagamento do Simples Nacional para empreendedores de quatro cidades de Santa Catarina que decretaram estado de calamidade pública em razão das fortes chuvas de outubro de 2023.
Em 3 de novembro daquele ano, a Portaria nº 376 da Receita Federal prorrogou os prazos para pagamento de tributos federais para atingidos pela chuva, incluindo os municípios de Laurentino, Rio do Oeste, Rio do Sul e Taió, de Santa Catarina. A portaria cita como justificativa uma Instrução Normativa de 2012 que determina que em casos de calamidade pública, os prazos de dívidas são prolongados.
A defesa de Zanatta argumenta se tratar de difamação, e que a publicação teria ofendido a honra da deputada. Pediu a condenação da jornalista pelo crime de difamação, com um agravante de pena, por ter sido realizado em meio de grande circulação na internet.
Já Miranda vê o processo que enfrenta como uma tentativa de intimidação, tanto dela quanto de outros jornalistas. Ela observa que não há cobertura crítica do mandato da deputada no estado e acredita que, ao assumir essa responsabilidade de forma independente, passou a ser alvo de tentativas de silenciamento. Para a profissional, a deputada busca não apenas impedir que ela continue seu trabalho, mas também enviar um aviso a outros jornalistas de que, caso adotem uma postura crítica, poderão ser os próximos a enfrentar processos. “É uma tática e uma estratégia muito associada a perfis autoritários”, afirma.
Assédio judicial contra jornalistas
Amanda Miranda foi acolhida pelo Programa de Proteção Legal para Jornalistas da Abraji. Letícia Kleim, coordenadora jurídica da Abraji e do monitor, observa que os casos incluídos no Monitor envolvem ações infundadas contra publicações de interesse público. Ela ressalta que essas ações são utilizadas por representantes do poder político institucional, que justamente deveriam ser mais tolerantes com a fiscalização de suas atividades, para criar uma disputa judicial desigual.
A coordenadora também destaca a preocupação com o uso do direito penal contra o exercício do jornalismo, algo que, segundo ela, já deveria ter sido descriminalizado no Brasil, em conformidade com recomendações internacionais. “A quantidade dos processos, além da estratégia do uso do direito penal, ajuda a caracterizar a prática do assédio judicial por Zanatta”, avalia Letícia.
A Abraji define o assédio judicial contra jornalistas como “o uso de medidas judiciais de efeitos intimidatórios contra o jornalismo, em reação desproporcional à atuação jornalística lícita sobre temas de interesse público”.
“O efeito dessas ações é individual, pelo desgaste financeiro, emocional e de tempo, mas também coletivo, pelo efeito amedrontador que alcança até aqueles que não são diretamente alvo dessas ações”, destaca Kleim.
Quem apoia Amanda
Além da Abraji, a jornalista também recebeu apoio do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina (SJSC) e da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), que publicaram nota conjunta em solidariedade.
“Conclamamos os membros do Judiciário, entidades de classe e autoridades públicas a se posicionarem contra o uso indevido da Justiça para calar a imprensa e a exigirem a garantia plena dos direitos constitucionais que sustentam nossa democracia. Esperamos que a Justiça de Santa Catarina não dê provimento aos pedidos da deputada”, diz trecho da nota.
A Women Press Freedom, organização que apoia jornalistas mulheres de todo mundo, também se manifestou em defesa de Miranda. “A liberdade de investigar e relatar questões de interesse público é essencial para uma democracia funcional. Instamos o judiciário a reconhecer o mau uso do sistema legal neste caso e a proteger os direitos dos jornalistas de perseguição injusta”, pede a nota.