Por Inaê Iabel Barbosa.
Não é nenhuma novidade que já não faz mais sentido falar em “feminismo”, no singular, quando o que podemos observar, na prática, são diversos feminismos que protagonizam de múltiplas formas a luta contra o machismo, o patriarcado e a misoginia. Falar em “feminismos”, no plural, é resultado do reconhecimento de que a categoria “mulher”, no singular, enquanto sujeito político uno, coerente, universal e generalizante, produz apagamentos sobre as especificidades das mulheres, no plural. Isso porque o grande universo da identidade “mulher” é composto por diversas constelações traçadas pelo entrecruzamento de múltiplos marcadores sociais da diferença como raça, classe, etnia, orientação sexual, deficiência, origem geográfica, idade, entre outros.
O reconhecimento desses entrecruzamentos sócio-identitários não só evidenciou a pluralidade dos sujeitos políticos que se ancoram na categoria “mulher”, como também nos lembrou que as lutas feministas contra o machismo, o patriarcado e a misoginia não podem se dar a parte das lutas contra as lesbo, trans, bi e homofobias, contra o racismo, a colonialidade, o capacitismo e tantos outros sistemas sociais de dominação e opressão.
Disto, temos como resultado um alargamento da compreensão de quem é o sujeito político do feminismo. Não se trata da mulher, no singular, mas também não se trata apenas do plural, “mulheres”, afinal todos os corpos marcados pela lógica cisheteronormativa, machista, patriarcal, capacistista, racista e colonial estão (ou pelo menos podem/deveriam estar) implicados nas lutas feministas.
Não é de causar espanto que esse alargamento da categoria “feminista” e o engajamento de uma multiplicidade de sujeitos à margem nas lutas feministas viesse a incomodar setores conservadores e reacionários da sociedade. Também não surpreende que esses setores fossem seguir se articulando politicamente para negar a existência e os direitos desses sujeitos que questionam toda uma estrutura de poder histórica e culturalmente naturalizada.
O que é curioso – e até mesmo trágico – é que mulheres feministas se incomodem e se articulem tanto quanto esses setores conservadores e reacionários da sociedade para, igualmente, negar a existência e os direitos desses sujeitos.
Vivemos tempos em que, sem muito esforço, encontramos pontos em comum entre aqueles que dizem combater a chamada “ideologia de gênero” (parte dos setores conservadores e reacionários) e aquelas que dizem lutar pela “abolição do gênero” (que se autointitulam “feministas radicais” ou “radfem”).
O que há em comum entre esses dois grupos? Primeiramente, podemos observar que ambos se baseiam em uma noção biologicista e essencialista de gênero, segundo a qual as pessoas são classificadas como homem ou mulher a partir da genitália de seus corpos. Como se o sexo “biológico” (que na verdade é culturalmente construído, porque ‘lemos’ o corpo usando lentes moldadas pelo social) determinasse o que é, essencialmente, “ser mulher” e “ser homem”. E é baseado nessa concepção que ambos os grupos protagonizam a (re)produção de discursos e de práticas transfóbicas e sexistas.
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Outro ponto em comum entre esses dois grupos (dos que dizem combater a chamada “ideologia de gênero” e das que dizem lutar pela “abolição do gênero”), é a prática da inversão discursiva dos fatos políticos. Explico essa prática com exemplos: o bolsonarismo (não como governo apenas, mas como cultura política generalizada no Brasil) acusa o movimento LGBTQIA+ de estar instaurando uma “ditadura gay” como forma de ocultar a heterossexualidade compulsória.
O Movimento Escola sem Partido (uma das principais frentes de combate à chamada “ideologia de gênero”) acusou a esquerda política de querer distribuir um “kit gay” nas escolas brasileiras enquanto o binarismo e os estereótipos de gênero são reforçados constantemente no cotidiano escolar. Feministas “radicais” acusam “o queer” de excluir as mulheres (cisgênero) do debate sobre a legalização do aborto, quando a transfobia e o essencialismo da perspectiva desta vertente é que exclui outros sujeitos do debate.
Essa prática, que encontramos tanto entre aqueles que dizem combater a chamada “ideologia de gênero”, quanto entre aquelas que dizem lutar pela “abolição do gênero”, pode ser comparada à estratégia da branquitude de acusar pessoas não-brancas de “racismo reverso”: um grupo com certas doses relativas de privilégio constrói um discurso que inverte os fatos políticos, colocando o grupo relativamente oprimido no lugar de opressor.
O que podemos observar com essa proximidade ideológica entre o combate à chamada “ideologia de gênero” e o chamado feminismo “radical” é que, assim como existe um pacto da branquitude para manutenção da estrutura racista da sociedade, há também um pacto da cisgeneridade para a manutenção da estrutura social transfóbica que faz do Brasil o país que mais mata pessoas trans no mundo.
Que essas inversões discursivas do feminismo “radical” e o pacto da cisgeneridade não nos impossibilitem de reconhecer que o alargamento da categoria “feminista”, admitindo um espectro político mais amplo, não invisibiliza pautas específicas, pelo contrário: atua no sentido de não haver exclusões. De forma ampla, as lutas feministas não deixam de ser das mulheres cisgênero por serem, também, das mulheres trans, dos homens trans e de pessoas não-binárias.
Mas, quando se reivindica que o feminismo é das “fêmeas”, diversos corpos são excluídos dessa luta política. Assim como a luta pela legalização do aborto não deixa de ser uma luta das mulheres cisgênero por ser, também, dos homens transgênero e de pessoas não-binárias que têm útero. Mas, quando se reivindica que quem tem útero e, portanto, que o sujeito da luta pela legalização do aborto são as mulheres, outra vez diversos corpos são excluídos dessa luta política.
Portanto, é urgente que as lutas individualizadas que retroalimentam o neoliberalismo sejam superadas, que aumentemos as apostas em coalizões feministas que encarem as lutas contra o machismo, o patriarcado e a misoginia como indissociáveis das lutas contra as lesbo, trans, bi e homofobias, contra o racismo, a colonialidade, o capacitismo e tantos outros sistemas sociais de dominação e opressão.
*Inaê Iabel Barbosa é cientista social e mestranda em sociologia com ênfase em estudos de gênero e sexualidade. Pessoa não-binária.