Pelo menos dois casos de violência policial causaram indignação, nesta semana, no país. Em São José do Rio Preto (SP) uma mulher grávida de cinco meses foi agredida por um policial, enquanto estava imobilizada no chão. Em Salvador (BA), policiais bateram em um jovem negro e o insultaram com xingamentos racistas e homofóbicos. 

Frequentemente, esse tipo de violação atinge a população mais vulnerável da sociedade. Em Florianópolis, pelo menos quatro casos de violência policial contra pessoas negras motivaram reunião, na sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em 24 de janeiro, entre as vítimas e representantes da Polícia Militar e Secretaria de Estado da Segurança Pública. Um deles, contra o movimento Batalha das Mina, foi apurado nessa matéria

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No caso mais recente, ocorrido em 11 de janeiro, policiais militares são denunciados por tortura, abuso de autoridade e injúria racial em uma ação que transformou a festa de 15 anos de uma jovem negra em uma “noite de terror”, como descreve a mãe da jovem, Camila da Rosa Santos, 32 anos. A violência foi denunciada na Corregedoria da Polícia Militar, Ministério Público de Santa Catarina e 2ª Delegacia de Polícia de São José. A PM alega que a família havia sido denunciada por perturbação da tranquilidade e resistido à ordem de desligar o som. 

Durante audiência na OAB, mãe e filha relembraram a sequência de fatos que as levaram a denunciar os policiais. “Nós somos a autoridade, o poder chegou”. As palavras de ordem dos policiais, segundo informou a mãe da jovem, dão o tom da ocorrência no bairro Bela Vista, em São José, região metropolitana de Florianópolis. 

“Nós vítimas, nos sentimos coagidas e sem proteção, o que era para ser um sonho para essa debutante, que no caso sou eu, virou pesadelo que nos acompanha a cada momento, nossa paz, tranquilidade foram roubadas por que quem era para nos proteger está nos intimidando, agredindo e depreciando”, denunciou a aniversariante durante a reunião na OAB, diante do coronel Araújo Gomes, comandante geral da PM de SC e secretário de Segurança Pública do Estado. 

Durante o encontro na OAB, o coronel Araújo afirmou entender que o racismo é estrutural na sociedade brasileira e que o caso será investigado. 

Conversamos pessoalmente com a mãe da aniversariante após a reunião. O relato pode ser conferido abaixo.

Registro da festa/Foto: acervo pessoal da família

Arrastada no salão
Depois de meses de economia
para arrecadar recursos para a festa e de um dia de preparação, Camila, que é cuidadora de idosos e faxineira, sentou-se para descansar e fazer sua primeira refeição do dia quando foi informada da chegada da polícia. 

Passava da meia noite e trinta, a aniversariante terminava uma coreografia ao lado da prima, quando três policiais chegaram pela entrada dos fundos do salão de festas do Centro Comunitário Bela Vista. “Perguntei ‘o que houve?’, eles disseram ‘a gente quer o responsável da festa’. Eu disse ‘a responsável sou eu’. Disseram ‘então acaba com tudo agora’, ao que respondi ‘calma, vamos conversar’. ‘Não tem conversa, sua vagabunda’, a partir daí começaram as agressões verbais e físicas. Ao tentar conversar, o policial me agrediu com cassetete nas pernas”, relata Camila.

Conforme a mãe da jovem, participantes da festa foram chamadas/os de “macacos”, “gaúchos filhos da puta”, “chinelas”, “casqueiros”, “restos de festa”, entre outros termos dirigidos como xingamentos, denotando o caráter da discriminação racial e social da ação. 

Havia cerca de 60 pessoas no aniversário, mais de 45 adolescentes entre 13 e 15 anos e a outra parte dos convidados formada por familiares da aniversariante. Pelo menos doze pessoas ficaram feridas, no geral atingidas por balas de borracha e gás de pimenta, algumas delas caíram no chão durante o tumulto. 

Entre as vítimas estão uma criança autista de cinco anos derrubada pela polícia, outra criança de onze anos alvejada por três tiros de bala de borracha, uma jovem com deficiência auditiva e uma criança de três anos, ambas atingidas por gás de pimenta. A aniversariante recebeu socos na cabeça e foi empurrada contra a parede a ponto de cair no chão e desmaiar. Ela foi levada à Unidade de Pronto Atendimento (UPA), onde diagnosticaram que havia sofrido uma convulsão.


Pelo mais quatro viaturas chegaram para reforçar a ação, alguns policiais utilizaram balaclava —
uma touca em que somente os olhos podem ser vistos — para não serem identificados. Imagens gravadas pelo irmão de Camila mostram que a perseguição continuou mesmo quando as/os participantes da festa  estavam na rua e o som já havia sido desligado

Policiais entraram na casa de um vizinho, para perseguir o irmão de Camila, onde ele havia buscado abrigo para garantir que as imagens do celular não fossem apagadas. Mesmo dentro do terreno, os policiais dispararam contra ele e o agrediram. O homem foi levado preso.

Depois do tumulto a cuidadora de idosos tentou colocar os convidados, a maioria adolescente, de volta para dentro do portão, pois havia combinado de tê-los em segurança até chegada dos pais deles, quando o policial disparou o primeiro tiro de bala de borracha contra ela. Conta que, na sequência, foi puxada pelo cabelo e arrastada pelo chão por um policial, enquanto a filha de seis anos pendurada em sua roupa, suplicava para que ele parasse. “Acho que eles só me largaram por causa da cena da minha filha”. 

Ao levantar-se, foi atingida por spray de pimenta no rosto. Enquanto uma convidada a ajudava a limpar os olhos, a polícia lhe deu voz de prisão. “Eles disseram tá aqui a vagabunda, dona da festa, tá presa’”.

Uma das adolescentes atingidas por balas de borracha/Foto: acervo pessoal da família

Nessa altura, o salão já estava vazio e o DJ teve os equipamentos apreendidos enquanto os transportava para guardar no carro. Na versão de Camila, logo após a chegada da polícia o DJ teria desligado o som e aguardado o desfecho da situação. “A gente saiu para fora do salão pela porta dos fundos e questionamos o porquê da agressividade verbal e física. Me senti um nada perto daquele rapaz de dois metros me dando ‘cassetada’ nas pernas. Qual o risco que eu dei a ele? Quando eles chegaram o DJ já tinha desligado tudo”.

Camila e o irmão foram levados algemados à delegacia. Durante o registro policial, eles não foram ouvidos pelo delegado, e nem mesmo desceram da viatura. Ela negou-se a assinar o termo circunstanciado. “Levei muita ‘cassetada’ dentro da viatura. Comecei a ficar sem ar, tenho sopro no coração e asma, ainda estava sob o efeito do gás e só abriram um pouco o vidro depois de um tempo.”

Conforme a entrevistada, toda a comida da festa, assim como as lembrancinhas, foi contaminada pelo gás de pimenta. “Minha filha diz que teve um sonho tão grande e acabou nisso, não come e não dorme, pego ela chorando. Minha filha de seis anos passou a ter medo da polícia”.

Camila cria as duas filhas sem receber nenhum apoio do pai delas. Demitida do emprego de cuidadora de idosos após a repercussão do caso, enfrenta dificuldades para sustentá-las, além de temer pela segurança da família. Segundo ela, o presidente do Centro Comunitário informou que devolveria a taxa cobrada para a realização da festa como forma de se solidarizar com a família, mas após ele ter recebido a visita da PM dias depois, mudou de ideia. “Vemos com mais frequência viaturas no bairro e são os mesmos policiais. Minha prima contou ter sido perseguida por uma moto”, conta.


Processo inquisitório

De acordo com a advogada Anna Maria Teixeira Ramella, a família tinha em mãos um alvará que liberava a realização de festas no local até as 2h, mas isso não foi levado em consideração. Segundo explica, a denúncia de que havia som alto de funk no local, conforme mencionado pelos policiais, não tem fundamento porque os próprios vizinhos que denunciaram a perturbação do sossego relataram que a música vinha de outra festa que acontecia no pátio do centro comunitário.

“Chegaram atirando, crianças de três anos foram atingidas, não tinha álcool, não estava ninguém alterado, adolescentes 14 e 15, 10 pessoas da família. Não precisavam de tanta violência para conter, eles têm outros métodos de conduta, nem quando os estudantes tentaram fecharam a ponte em manifestação houve tanta repressão. Foi uma ação de guerra, de terrorismo”, argumenta a advogada.

Ramella critica a falta de identificação dos policiais já no início do inquérito, como ocorre nos casos da justiça comum. Ela denuncia o caráter autoritário das oitivas na corregedoria da PM e a postura intimidatória direcionada à família. “Tivemos um tratamento horrível, não deixaram fazer perguntas, disseram que era um procedimento inquisitório que só eles poderiam fazer perguntas. A mãe da jovem não poderia se manifestar da forma que queria, só responder sim ou não, e eles só faziam perguntas para beneficiar os policiais”, explica a advogada.

A advogada entrou com uma petição no inquérito policial militar requerendo uma postura imparcial da corregedoria para que pudesse se manifestar durante as oitivas, alegando que a censura caracteriza crime de abuso de autoridade. “Não foi nada democrático, amigável, tivemos que agir de uma forma imponente, para conseguirmos ter direitos”.

Do lado de fora da sala de oitivas, a família teria sido vítima de chacota e intimidação. “Tiveram um tratamento medieval, policiais ficaram rindo das pessoas que estavam do lado de fora, diziam ‘essa aí é a família do funk’, eles ficaram fazendo pressão psicológica na família, cantando música e rindo na cara deles. Nunca vi tanto desrespeito. Essas pessoas são as vítimas desse processo. Eles ficavam mexendo nas armas, engatilhando e desengatilhando. E eu presa numa sala com a mãe da vítima. Quando eu saí, os familiares estavam desesperados não queriam mais voltar”.

Além de denúncia criminal, a advogada explica que também pedirá uma reparação por danos morais e materiais de 50 salários mínimos por vítima ao Estado. Segundo ela, a vizinhança está amedrontada, principalmente por saber de outro caso de violência policial, no bairro José Nitro, em São José. “Eu nunca apanhei do meu marido, mas apanhei de policiais militares”, relatou a vítima desse outro caso durante audiência na OAB.  

A assessoria do MP de SC informou que o caso está sob cuidados da 2ª Promotoria de São José, que em 17 de janeiro oficiou a Corregedoria Geral pedindo a instauração de Inquérito Policial Militar e que as providências tomadas sejam informadas no prazo de 20 dias. Entramos em contato com a corregedoria, mas não houve manifestação sobre a investigação do caso. A assessoria da Polícia Civil de SC informou que foi instaurado inquérito policial na 2ª Delegacia de Polícia de São José.

A posição da PM
Conversamos por telefone com o comandante do 4º Batalhão da Polícia Militar, major André Serafin. Ele nos informou que a denúncia de perturbação do sossego havia partido da população vizinha ao centro comunitário, incomodada com o barulho do som. “A gente pediu gentilmente para que o som fosse reduzido, as pessoas que estavam no local se recusaram a baixar, começaram a agredir e tentando com violência afastar os policiais no local, chamamos reforço e fizemos apreensão de duas pessoas e toda aparelhagem de som”, afirmou.

As pessoas levadas presas e liberadas após o registro do termo circunstanciado foram autuadas por desacato, desobediência e agressão aos policiais. “Era um evento grande, uma hora da manhã, em um local que não havia acústica. Não havia outra festa, as imagens mostram o som naquela festa. Temos provas de que eles atacaram a guarnição, agrediram, fizeram uso de palavras de baixo calão. Eram dezenas de pessoas, não havia criança, eram adultos confrontando polícias militares”, defendeu.

O policial afirma que toda a ação está respaldada pelo registro em vídeo do início da ocorrência até a entrega das pessoas na delegacia. “As pessoas que estão fazendo denúncia caluniosa não apresentaram as imagens, mas nós apresentaremos”.

Policiais militares investigados
De acordo com
reportagem do jornal Notícias do Dia, publicada em 22 de janeiro, o Ministério Público de Santa Catarina investiga a conduta de pelo menos 15 policiais suspeitos de roubar traficantes, esconder provas, repassar informações falsas, vender produtos apreendidos em operações e cometer uma série de outras irregularidades durante o exercício da função. Um policial foi expulso da corporação em dezembro pela má conduta. 

Entre os militares e ex-militar investigados no processo, cinco são réus e foram presos no dia 15 de janeiro. Um dos detidos conseguiu revogação da prisão e está solto. Os outros 11 foram alvos de mandados de busca e apreensão de celulares e objetos. 

Em outra apuração, o jornal trouxe a público a morte do jovem negro Vitor Carminatti dos Santos, 15 anos, durante ação do Bope em Palhoça, Grande Florianópolis, que não havia sido registrada por nenhum órgão de segurança.

Defensoria pública e educação em direitos
Felipe Schmitz da Silva, defensor Público do Estado de Santa Catarina, explica que casos de violência policial podem ser levados ao órgão, tanto para acompanhamento das investigações na justiça comum e militar quanto para reparação por danos morais e materiais. Além disso, a defensoria presta também um atendimento de educação em direitos, especialmente dos direitos das minorias sociais, contemplando população negra, de rua, LGBTQI+, e outras vítimas de discriminação.

Segundo informa, a defensoria tem recebido denúncias de crimes cometidos por agentes penitenciários, mas não há demanda significativa de casos de violência policial nas ruas. “Acredito que há um desconhecimento acerca da existência da defensoria do que propriamente a inexistência de agressões, porque a gente sabe que todos os dias acabam ocorrendo exageros, excessos policiais”.

Para o defensor há um contexto que explica a recorrência ou maior visibilidade de casos de violência policial. “Há problemas com violência policial não só em São José. Isso tem sido estimulado por esse novo movimento de um discurso de violência, de ódio, que vem desde a presidência até o nosso dia a dia. Há conteúdos racistas nas redes sociais que estimulam ódio e a população em geral tem dado eco a esse tipo de discurso”, afirma.

O defensor ressalta que mesmo militarizada a polícia precisa se pautar pelas garantias fundamentais expressas na Constituição de 1988. “Apesar de militarizada, tem que ser humanizada, porque se trata de atendimento a pessoas e não a tanques de guerra”.

 

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