Por Léo Rosa de Andrade.

Uma História Severina: o documentário retrata o impacto da criminalização do aborto na vida de uma mulher. Se não o assistiu, recomendo muito que o faça. Na morte anunciada está uma lição de vida, ou de sobrevivência em situação desesperadora.

Nesses assuntos delicados, muita gente tem facilidade em emitir opinião à distância da realidade. Tipos sentenciosos chegam com concepções prontas e, prevalecidos, despejam resoluções moralistas sobre quem, em geral, não tem recursos para defesa de posição diversa. 

A violência tanto mais fere a vítima quanto mais proceda de lugar social referenciado, ou, na linguagem corrente, lugar de fala. Quem opina de posto socialmente consagrado agrega a seu julgamento peso institucional. Uma juíza ou uma promotora de Justiça têm esse peso.

Essas autoridades têm esse peso não só porque predicam – supostamente – em nome da Lei, mas o fazem objetivamente situadas em um aparato (um aparelho de Estado), o que confere realidade de poder. O poder institucional, todavia, às vezes, opera à margem da Lei.

A mais elaborada denúncia dessas distorções no exercício de autoridade por quem aplica a Lei está em “O Processo”, de Franz Kafka, denúncia do quanto o sistema judiciário pode ser despótico e enlouquecedor. Vale conhecer as agruras de Josef K., protagonista do romance.

Severina, a personagem real do documentário referido, é a Josefa K. de um caso em que uma mulher carrega dentro de si um feto incompatível com a vida. A Menina de Santa Catarina também é Josefa K., que, na inocência da sua puberdade, vê-se enredada em conjunturas legais.

A rigor, não obstante a delicadeza do assunto, a questão jurídica é simples: se uma criança engravida, não importa em que circunstâncias, pressupõe-se, por imperativo legal, estupro. Não se discute violência ou participação da criança, mas, pela idade, o defeito de sua vontade.

Nesse caso, Código Penal, “art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico. Aborto no caso de gravidez resultante de estupro. II – Se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”.

A questão da Menina de SC, pelo que informa a imprensa, era atinente à Comarca de Florianópolis. Acontece que autoridades judiciais da Comarca de Tijucas resolvem dar atenção (tecnicamente, acolhimento) à menor, tendo em vista as circunstâncias temerárias em que viveria.

Ocorre que a criança estava grávida, e era seu desejo abortar. Mas a Menina foi, a contragosto, “acolhida” por cerca de seis semanas. Em estado gravídico, isso é demasiado tempo. Então, somando todas as semanas, juíza e promotora constatam um adiantado estado de gravidez.

Advém a carga ideológica das autoridades. Havia uma lenda no Judiciário: juízes\as são neutro\as no exercício da profissão. Nilo Bairros de Brum, em Requisitos Retóricos da Sentença Penal, mostra o quanto a Lei pode ser mero pretexto para o desiderato do\a operador\a jurídico\a.

Assim maniganciando, muita\os operadora\es do Direito, mais do que cumprir a expressão categórica da Lei, outorgam-se o papel de fazer Justiça. Justiça, porém, é uma maneira subjetiva de avaliar o que é Direito, daí a Lei é interpretada desde modos alternativos até leguleios.

O Brasil permite, imprudentemente, que magistrado\as estirem a interpretação legal. Só essa licença de manobra toleraria uma autoridade referir a uma criança “bebê” no lugar de feto, e, sem oferecer alternativa, inquerir sobre “ficar mais um pouquinho”, para nascer o “bebezinho”.

Tudo bonitinho, só que injusto. Conforme noticiado, uma desembargadora teria liberado a criança do “acolhimento” e o Ministério Público Federal teria interferido a favor da sua vontade, a saber, de não levar adiante a gravidez, valentemente sustentada na infeliz “audiência”.

Essa história em que toda\os perderam, acabou conforme a vontade da Menina de SC, dentro da prescrição legal. Mantida, contra seu anseio, afastada da possiblidade de interromper a gravidez em momento mais adequado, restou logrando seu intento em condições bem adversas.

Relato esses fatos indignantes, todos já sabidos, para mostrar o quanto o ideológico circulante captura a mentalidade de nossas autoridades, levando-as, em nome de uma ideia subjetiva de Justiça, a atropelar limites legais, ou a fazer “Justiça” pessoal, não obstante a Lei geral.

Eduardo Couture, tem uma frase emblemática: “Teu dever é lutar pelo Direito, mas, no dia em que encontrares em conflito o Direito e Justiça, luta pela Justiça”. Politicamente, para a vida pública, a exaltação é pertinente; não o é, todavia, para o cotidiano da\o agente pública\o.

Sucede que “muitos daqueles que não se prepararam para conviver com a diversidade e com a força da democracia, expressa em leis, sentem-se tentados a abonar a violação da lei a pretexto de realizar o que no subjetivismo dos seus interesses ou ideologias chamam de justiça.

A chamada justiça alternativa, quando põe em confronto a lei e uma percepção subjetiva do justo, para impor determinada ordem que o legislador não previu, subverte o Estado de direito. Transforma o juiz em legislador desvinculado do sistema legal que deveria interpretar.

A suposição de que se possa fazer justiça contra a lei democraticamente estabelecida implica considerar injusta uma lei que a maioria desejou, mas que não agrada ao intérprete. É, portanto, um evento que conduz a discussão ao cerne da ideia de democracia como valor.

Interpretar significa traduzir o comando da lei, escolhendo o mais coerente com o contexto cultural da sociedade. Mas isso é diferente de considerar justa a ordem imaginada pelo intérprete” (Celso Cintra Mori, Equilíbrio entre formalismo e legalidade, Consultor Jurídico).

A “interpretação” que funda o embaraço à vontade da Menina de SC: para um padre, “católico que defendeu o aborto dessa criança, não venha à mesa da comunhão porque você está em estado de pecado mortal. E não me venha com ‘eu acho’. É o que Deus acha: ‘o senhor me conhece desde o primeiro instante em que eu fui gerado no ventre da minha mãe’. É um caso de estupro? Não. É um caso de envolvimento de uma menina com um menor da mesma família. Só há um que se alimenta do sacrifício de uma vida: Satanás”.

O medieval nos informa a compreensão de mundo e reside, entre outros lugares de poder, nos despachos judiciais. Napoleão Bonaparte não teve tempo de levar o Iluminismo a todos os lugares. Por culpa do Corso, até hoje prestigiamos mais os templos do que as bibliotecas.

“E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a” (Gênesis, 1: 28). “Levantam-se seus filhos e chamam-na bem-aventurada” (Provérbios, 31: 28).

A mulher ajudadora, a maternidade, a procriação em si, na Bíblia, são havidas como bênção. 

Daí, suponho, o viés cognitivo feito “desespero de causa” da militância antiaborto, mesmo se legal. Vale mais a Bíblia do que a Constituição: Salmos, 139: 13 -16: “Tu me criaste o íntimo do meu ser e me teceste no ventre de minha mãe. Os teus olhos viram o meu embrião”.

Um embrião, mas, ardil, “O nome do bebê?”. Legislação expressa, médicos recalcitrantes. Urgência, “acolhimento” por semanas. Ânimo de consumar o fato? Não obstante o suplício do “mais um pouquinho”, a resistência decidida: “Não quero”. Por fim, com custos graves, a Lei.

Se constitucionalmente somos um Estado Laico, essa Vontade do Legislador (método exegético inventado por Bonaparte para vencer a reação judicial da sua época) é vergada por religião. Falta deontologia: imperativo dos deveres de profissão. Falta consequência à traição.

*Psicanalista, Doutor (Filosofia do Direito e da Política) e mestre (Direito do Estado), pela Universidade Federal de Santa Catarina. É autor, dentre outros livros, de Liberdade Privada e Ideologia, Acadêmica, 1993.

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