Colaboração: Jess Carvalho e Paula Guimarães.

Uma das grandes intelectuais do feminismo decolonial na América Latina e no Caribe, a antropóloga afro-dominicana Ochy Curiel, professora da Universidade Nacional da Colômbia, esteve em Florianópolis para participar do Encontro Internacional Pós-colonial e Decolonial, promovido pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).

Na ocasião, a filósofa Jeane Adre Rinque e a jornalista Paula Guimarães, diretora executiva do Portal Catarinas, conversaram com a pesquisadora sobre um feminismo que vai além das mulheres e está empenhado no resgate das humanidades historicamente desumanizadas: o feminismo decolonial. Na perspectiva de Ochy, a lógica separatista do feminismo clássico é um erro político, e pensar nas interseccionalidades de raça, classe e sexualidade é fundamental para construirmos um projeto coletivo de libertação.

A antropóloga também falou da experiência de escrever uma etnografia sobre o processo racista de desnacionalização ocorrido em 2013 na República Dominicana, e defendeu que o lesbianismo é mais do que uma orientação sexual, é uma posição política. Confira.

Catarinas: O que você compreende por feminismo decolonial em Abya Yala?

Ochy Curiel: Eu costumo dizer que existem algumas palavras-chaves. Primeiro tem a recuperação, que tem a ver com as nossas próprias práticas políticas. Eu sou, faz muito tempo, ativista do movimento antirracista, que hoje se chama feminismo negro, que propõe uma luta contra todas as violências de gênero, raça, classe, sexualidade, geopolítica, nacionalidade. Essa é uma coisa muito importante que o feminismo decolonial retoma, uma compreensão da matriz colonial. A outra coisa que para nós é muito importante é a autonomia feminista, nós vislumbramos a autonomia feminista desde 1990 na América Latina e no Caribe, para nós é muito importante analisar as políticas globais que têm a ver com a dependência dos movimentos sociais, das ONGs, da cooperação internacional e toda essa política, esse movimento mundial, e nós em 1990 já falávamos disso. Também tem a ver com toda proposta antimilitarista, anticapitalista, porque na nossa luta antirracista sempre é articulado o capitalismo dentro de tudo isso. É uma recuperação também de outras práticas, como, por exemplo, a dos povos indígenas, que têm uma proposta de autonomia na produção, na soberania alimentar, a importância da comunidade para fazer esse outro mundo possível. Então essa recuperação tem a ver com a ancestralidade também, que tem articulado com a espiritualidade e com outros saberes, das nossas avós, mães, que tem uma história de resistência desde o momento da colonização. Para mim, o feminismo decolonial também é uma revisão dos lugares políticos onde nós atuamos, feminismo negro, feminismo indígena etc.

Eu também venho do feminismo branco, aprendi com o feminismo branco essa universalização da experiência das mulheres. Eu acho que o feminismo clássico nos levou a sermos separatistas, se pensou que todos os homens são nossos inimigos, eu acho que isso foi um erro político, porque nós viemos de comunidades onde se tem homens, mulheres, pessoas trans, meninos, a natureza etc.

O feminismo decolonial tem a ver com a compreensão da decolonialidade, dos efeitos da colonização em nossas vidas, pois ela inferiorizou muito povos através da raça, classe, sexo e sexualidade. Além disso, o feminismo decolonial tem uma compreensão de como se formou o sistema moderno colonial, não só em Abya Yala, mas em outros continentes, nós achamos que o colonialismo tem um impacto mundial.

Dentro do feminismo, nós estamos criticando a visão branca, eurocêntrica, das teorias e as práticas feministas que pensam que o feminismo é só para as mulheres, aquelas mulheres que têm privilégios de raça, de classe e sexualidade.

Yuderkys Minoso chama isso de racismo de gênero. O feminismo decolonial é prática, e para nós a prática tem a ver com autonomia, e autonomia das ONGs, autonomia internacional, autonomia do Estado, dos partidos, das instituições que fazem parte da colonialidade contemporânea. O feminismo decolonial é antinacionalista, eu prefiro pensar que somos povos, que vivemos em fronteira com outros Estados nacionais que fazem com que nós criemos imaginários de que somos o que eles são, mas não, não temos possibilidades de fazer coisas juntos porque estamos em países distintos, isso é uma dívida histórica, então lutamos por uma recuperação dos laços que o colonialismo rompeu, e a colonialidade continua rompendo.

Para nós é importante pensar em projetos de libertação, e esse projeto de libertação tem que ter como proposta fundamental eliminar todas essas formas de opressões ao mesmo tempo, e, além disso, esse projeto de libertação tem que ter homens, mulheres, pessoas trans, cis, meninos, meninas, rio, montanha, tudo. Essa é a proposta do feminismo decolonial, é pensamento, é teoria, mas é prática política, e essa prática política tem que ser coletiva. Eu não penso que sou feminista decolonial porque dou aula na universidade e coloco a proposta do feminismo decolonial. Uma coisa é a teoria, as categorias, os conceitos; outra coisa é a prática política, esse é o feminismo decolonial.

Neste momento estou situada aí, amanhã eu não sei.

O feminismo decolonial fala muito sobre as opressões de gênero, raça e sexualidade. Qual é o papel da classe no feminismo decolonial?

Aprendemos que as identidades são essenciais, ser mulher, ser negra, ser sui generis, e que não podemos fazer uma universalização dessas identidades porque somos mais que uma identidade, mas as identidades foram produzidas também pelo colonialismo. Então, um problema sério dos últimos anos nas ciências sociais e na esquerda ainda hoje é colocar a classe como o determinante das relações sociais. Com o feminismo, o movimento afro, isso passou a ser questionado, de pensar a classe como determinante, mas isso trouxe consequências, muita gente se esqueceu da classe, e a classe é fundamental, porque é uma categoria que nos permite entender a materialidade do racismo, do sexismo, da sexualidade etc. Na América Latina, hoje, mais do que nunca, temos um problema sério de desigualdade social, pessoas que não têm o que comer, pessoas que não têm acesso à educação, habitação, esses são problemas de classe, então é impossível pensar, por exemplo, o racismo sem a classe, é impossível pensar outros marcadores de opressão sem a classe. Além disso, temos que ter claro que o capitalismo se forjou a partir do colonialismo, então essas hierarquias que tem no mundo inteiro agora têm a ver com a classe, é fundamental para nós retomar os aprendizados do marxismo, obviamente com uma posição crítica, porque o marxismo não entendeu o desenvolvimento do capitalismo através do racismo, através da inferiorizarão das pessoas, e nós retomamos a classe como um elemento fundamental, igual a raça, sexo, sexualidade…

Para você, enquanto feminista decolonial lésbica, qual o lugar do pensamento lésbico no feminismo contemporâneo decolonial?

Não é a mesma coisa ser lésbica feminista e feminista lésbica, tem duas propostas distintas.

O lesbianismo feminista, que é minha posição, faz uma análise sobre a heterossexualidade como regime político, isso quer dizer que o desejo, a sexualidade é muito importante, mas não é só, por exemplo, que lésbicas desejam outras lésbicas. É revolucionário, é político.

O regime heterossexual também não é só o desejo, o regime heterossexual tem a ver com todos as outras relações econômicas, sociais, a lógica da família nuclear é heterossexual, quando se fala em família dentro de uma perspectiva branca heterossexista, mas também as relações econômicas são heterossexuais: o imaginário que as pessoas têm de que uma família tem provedor homem e uma mulher. Outro exemplo: quando uma parente lésbica vai alugar uma casa, tem problema, porque são lésbicas, isso atenta contra a moral. Uma coisa que trabalho muito no meu primeiro livro, Nação Heterossexual, é como as nações, os estados nacionais se construíram na base da heterossexualidade. Essa formulação do que é uma família, a representação do que é ser uma mulher, que tem que ser dependente economicamente do marido, tem que ser reprodutiva, isso tem a ver com a heterossexualidade. O estupro faz parte da heterossexualidade, a mentalidade que os homens têm sobre o estupro, que os corpos (marcados por uma feminilidade) lhes pertencem, e que podem fazer o que eles querem, isso é parte da heterossexualidade. Uma das coisas que aprendemos com Maria Lugones, que é uma das grandes pensadoras feministas decoloniais, é que tudo isso que estou contando começa com o colonialismo, a lógica do binarismo de gênero começa com o colonialismo, a partir das experiências de homens e mulheres brancas europeias, e aí que se impõe esse entendimento sobre homens e mulheres, exceto as colonizadas que não eram consideradas mulheres, porque mulheres eram as brancas europeias, donas das casas, as colonizadas eram escoltadas por serem escravizadas. O regime heterossexual afeta todo tipo de relação social, e como feminista decolonial entendo que esse regime heterossexual tem uma história colonial que vai se reproduzindo dentro das repúblicas e estados nacionais, dentro do capitalismo liberal mundial, esse é o lugar que ele ocupa. Eu não sou só lésbica feminista, sou lésbica feminista anticapitalista antirracista etc.

Ochy Curiel durante um protesto. Foto: Revista Afrocubanas

E como você vê a questão da monogamia nesse regime que você diz heterocentrado, de heteronormatividade compulsória?

Para mim a monogamia é fundamental dentro do regime heterossexual, porque uma coisa o judeu cristão instalou dentro desse processo, foi a ideia de que tinha que ter uma pessoa só para se relacionar, se reproduzir e ter uma relação hetero amorosa. Além disso, a monogamia parte do capitalismo porque, por exemplo, o matrimônio é uma das instituições que sustenta a monogamia, então o capitalismo sustenta o matrimônio, sustenta a monogamia, porque tem a ver com a propriedade, você precisa que o patrimônio econômico seja repassado para uma família, e o único jeito que poderia ser feito é através da monogamia, uma proposta burguesa que nós reproduzimos, dentro da lógica material e emocional. Ser homem é pensar o outro como propriedade. Isso é uma coisa tão horrível. Dentro do lesbianismo feminista, nós falamos muito sobre o poliamor, de relações abertas, e é um tema muito difícil, eu já fui poliamorosa, fui muita coisa, mas hoje sou monogâmica, cansei também (risos). Porque tem certas relações que são desgastantes.

A monogamia é parte da lógica judeu cristã colonial capitalista, e é importante continuar analisando essa situação, sobretudo analisar as emoções que esse tema dispara, que é a parte mais difícil, pois sofremos muito. O questionamento da monogamia não é só teórico, essa questão também tem que ser analisada na prática, que é bem mais difícil. Não estamos descolonizadas (risos)…

Como descolonizar o feminismo e encontrar referências e saídas para as violências de homens racializados e mulheres racializadas?

O feminismo decolonial, como eu falei, é uma proposta para a humanidade, sobretudo aquela humanidade que tem sido desumanizada historicamente, as mulheres indígenas, negras, homens, trans, meninos, meninas. Então uma coisa que é muito importante entender é o processo dos homens racializados, eles imitam o patriarca, a lógica do machismo etc. Mas não posso falar que os homens racializados são patriarcais, porque o patriarcado é um sistema que não só se sustenta no machismo, mas daqueles que se apropriam dos meios de produção, e a maioria dos homens pretos racializados não tem os meios de produção, eles não estão no poder da igreja, da educação, da imprensa, não têm os meios do capitalismo, eles também estão fora, eles também são afetados nessa lógica. Na República Dominicana temos uma escola decolonial, lá temos jovens negros, porque eles também são vítimas de todos esses sistemas, muitos deles se aproveitam da situação, mas têm que desnaturalizar o privilégio que a lógica patriarcal deu, eles são afetados pelo capitalismo, são afetados pelo racismo, então precisamos trabalhar com esses jovens negros para que entendam que temos uma história colonial. Um homem, por exemplo, que fala “eu sou decolonial”… Tá, então vamos ver o que você faz, na prática, com seu privilégio na sociedade por ser homem.

O feminismo branco fez com que entendêssemos que todos os homens eram nossos inimigos, isso inclui os homens racializados, e não é assim. Vamos trabalhar juntos, desnaturalizar essa relação de poder que nós também reproduzimos dentro das comunidades. Para mim, é muito importante lutar com homens racializados, mulheres, não binários etc., porque o feminismo que eu penso, o feminismo decolonial, pensa sempre em atuar conjuntamente com sujeitos diversos, ele tem uma proposta de libertação.

Você pode falar sobre seu último livro, sobre racismo na República Dominicana?

O livro se chama “A sentença 168-13 – continuidades e descontinuidades do racismo na República Dominicana”. Trata do seguinte: no ano de 2013, o Tribunal Constitucional Dominicano emitiu uma sentença, 168-13, que desnacionalizou 3 mil pessoas dominicanas por suas mães e pais serem haitianos. Essa desnacionalização, que é a primeira do mundo, tem a ver com a história do colonialismo. Por quê? Porque essa ilha que hoje a República Dominicana e o Haiti compartilham era uma só ilha, e foi dividida em dois países, pelos franceses e espanhóis. Um tempo depois, o Haiti, a primeira sociedade que forma um estado-nação negro, primeira experiência de descolonização, porque foi através da luta dos escravizados que tivemos independência, depois que o Haiti se faz estado-nação, o Haiti se torna a parte oriental (hoje República Dominicana) e ocupa essa parte por 22 anos, mas a independência da República Dominicana foi em relação ao Haiti, não em relação à Espanha, que colonizou, foi parte oriental durante muitos séculos. Essa história é fundamental para entender a desnacionalização, porque a partir dessa história colonial, o Haiti se converte no outro da República Dominicana como identidade nacional, as pessoas haitianas na República Dominicana sempre são rechaçadas, racializadas, violentadas, os dominicanos não querem saber dos haitianos. Isso é muito importante para entendermos como funcionam as elites políticas, elites instruídas que fazem a história, as elites das igrejas, as elites católicas, sobretudo as elites que fazem os meios de comunicação. Elas vão fomentar nas escolas, meios de comunicação, que o Haiti é um estado falido. O que eu mostro nesse livro é a continuidade do racismo na ilha, a partir da separação que fizeram os franceses e espanhóis. Vou mostrar como a historiografia oficial coloca a ideia de que o Haiti é o pior, vou mostrando através da literatura, da historiografia, que foi se repetindo que os haitianos são inferiores, até chegar a 2013, na sentença 168-13, no processo de desnacionalização. É uma etnografia da colonialidade nessa ilha, vou mostrando as lógicas de poder, como atuam as elites, a sentença que foi dura, teve até casos de suicídio, porque se a pessoa não tem direito de morar, de ir à escola, à universidade, não deixam você registrar seus filhos, você é uma pessoa morta civilmente; em contrapartida disso vou mostrar a resistência que as pessoas tiveram, muita luta individual e coletivamente. Considero que o livro é também uma proposta metodológica, como nós mesmos podemos fazer investigação para nós, dos movimentos sociais, e como podemos entender como funcionam as elites para definir políticas estratégicas para isso.

E o início dessa história partiu da violência sofrida por Juliana?

Juliana Deguis foi uma mulher negra que teve os documentos retirados pela justiça, ela não podia trabalhar, não podia registrar seus filhos, isso depois de passar por diferentes instâncias até chegar à Corte Constitucional da República, a mais alta instância jurídica, que deve zelar pelos direitos do cidadão, a Corte decidiu que ela não era dominicana. Mas o caso de Juliana Deguis vai além, a Corte sentenciou todas as pessoas que estão na condição de Juliana, estamos falando de quase 3 mil pessoas jovens, imagina, isso é uma tragédia, nós falamos que é um genocídio civil, e dentro disso tem o racismo, o sexismo, e as mulheres são as que mais sofrem, porque elas são racializadas.

Pra fechar, você pode falar sobre o fascismo no mundo e no Brasil? O fascismo reúne o “combo” machismo, militarismo, sexismo, racismo exacerbado e aqui no Brasil temos visto que as pessoas não têm mais vergonha de serem racistas.

Eu acho que o fascismo tem uma naturalização, ultimamente nós temos que diferenciar o que é fascismo formal e o que é fascismo cultural, que é o mais difícil. Eu acho que no mundo inteiro, não só no Brasil, temos um fascismo terrível, fundamentalismo religioso, a relação que agora se tem com as igrejas no estado brasileiro é um exemplo. São heterossexistas, racistas, nacionalistas, e eu acho que a região latino-america Abya Yala deu uma volta atrás, com o poder das igrejas, dos meios de comunicação. Mas minha preocupação são os projetos da esquerda latino-americana, aquilo que se chamou socialismo do século 21, com [Rafael] Correa no Equador, Evo Morales na Bolívia, [Hugo] Chávez na Venezuela, que tinha uma proposta de reforma política, mas não eram decoloniais, por exemplo. O Equador é o primeiro país que falou do direito da natureza na Constituição e Correa permitiu a exploração da terra na Amazônia, por exemplo, então isso é um problema sério. Eu acho que o problema da esquerda latino-americana hoje é fazer as reformas sociais (estou de acordo), mas dentro da lógica capitalista, fazer o capitalismo mais humanista, porque cada vez mais vai piorando dentro da lógica das classes internas de cada país e também dentro da geopolítica. Temos uma espécie de guerra fria entre a Rússia e os Estados Unidos, dentro da lógica capitalista – a Rússia diz ser socialista, mas a Rússia é capitalista, está buscando geopoliticamente interesses econômicos –, China também, que silenciosamente é um império mundial, então essa luta geopolítica está mudando as relações globais, mas também modificando as propostas da maioria dos governos de direita e esquerda. Primeiro, temos que pensar na possibilidade de sobreviver na geopolítica mundial; segundo, fazer uma série de reformas; terceiro, a corrupção. Penso que a maioria desses governos é corrupta. Quarto, eu acho que não tem uma proposta de transformação social profunda efetiva. Outra, eu acho que nessa pouca diferença de voto entre Bolsonaro e Lula, houve negociações e muitas alianças com aqueles que não queremos, isso aconteceu com [Gustavo] Petro na Colômbia, que tem alianças com direita e ultradireita. E essa situação é muito difícil!

As especificações do fascismo estão muito abertas, hoje é normal falarem “sou conservador”, “sou de direita”, eles estão legitimados pela sociedade em nível geral.

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  • Jeane Adre Rinque

    Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFRJ - Professora Filosofia - INTEGRAR - Projeto Educação Popular...

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