Por Maria Fernanda Ribeiro, da Amazônia Real*.

Organizações que combatem a violência contra a mulher questionam subnotificações nas estatísticas do Estado

Raiane Miranda de Almeida, 20, estava feliz com seu primeiro emprego de carteira assinada. Sabia que teria de conciliar os dois turnos como caixa de supermercado em Santana, município a 15 quilômetros da capital do Amapá, com as aulas noturnas online do quinto semestre do curso de enfermagem. Mas estar empregada em meio à pandemia do novo coronavírus era uma vitória. O tempo que sobrava era dedicado à filha pequena. Não demorou para que o namorado começasse a sentir ciúmes. Ela decidiu romper a relação e as ameaças logo surgiram. 

A jovem trocou o chip de celular para não ter mais contato. Ele não aceitava o fim do namoro. Poucos dias depois, Raiane foi assassinada a facadas na frente de sua casa. O namorado fugiu, mas foi preso. Segundo o delegado Yuri Agra, na semana do crime, o ex-namorado passou a adotar atitudes mais agressivas e começou a ofendê-la e ameaçá-la diretamente e também por meio de parentes. “Ele nunca tinha demonstrado essa agressividade e os familiares ficaram assustados, mas não a ponto de pensar que ele executaria o que planejava e não levaram ao conhecimento da polícia”, lembra.

A mãe de Raiane, Clene Ferro Miranda, custa a acreditar. “Dois anos de relacionamento com a minha filha e a gente não sabia que estava lidando com um monstro. Ele estava dentro da nossa casa, participava de tudo na família, não parecia ser uma pessoa má”, disse.

O feminicídio de Raiane aconteceu em 31 de julho e integra as estatísticas da Secretaria de Justiça e Segurança Pública do Amapá (Sejusp), que contabiliza três casos nos oito primeiros meses de 2020, sendo dois em julho e um em agosto – período da pandemia do novo coronavírus. Em 2019, haviam sido dois assassinatos: um em maio e outro em agosto do ano passado.

A Sejusp orientou à reportagem da Amazônia Real que solicitasse os dados por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). Mas depois de idas e vindas, com falhas no site e reclamação na Ouvidoria, às informações só chegaram depois do fechamento para o segundo monitoramento da violência contra a mulher.  O Amapá, assim, ficou de fora da análise nacional da série de reportagens “Um vírus e duas guerras”. Mas trouxemos os dados no infográfico abaixo.

Infográfico: Fernando Alvarus

A reportagem também solicitou os dados de homicídios de mulheres à Sejusp. O órgão informou que 155 casos foram registrados de janeiro a agosto de 2020. Em todo  ano de 2019, foram 153 homicídios. Alícia Miranda coordena a Frente Emergencial de Apoio às Mulheres em Situação de Violência no Amapá, criada em março. Ela afirma que essa ausência de dados é uma realidade do Estado, o que dificulta a criação de políticas públicas, além de inviabilizar o socorro às vítimas. “Quando criamos a Frente logo nos deparamos com essa realidade da ausência de dados. Isso dificulta muito o nosso trabalho porque para a gente produzir conteúdos em lives ou posts, nós vamos atrás de números, mas é difícil conseguir. É um banco de dados muito deficiente mesmo”, afirma.

O monitoramento da violência doméstica durante a pandemia nas cinco regiões do País é uma parceria inédita entre as mídias independentes Amazônia Real, sediada no Amazonas; Agência Eco Nordeste, no Ceará; #Colabora, no Rio de Janeiro; Marco Zero Conteúdo, em Pernambuco, Portal Catarinas, em Santa Catarina; AzMina e Ponte Jornalismo, em São Paulo. A série Um vírus e duas guerras tem o objetivo de visibilizar esse fenômeno silencioso, fortalecer a rede de apoio e fomentar o debate sobre a criação ou manutenção de políticas públicas de prevenção à violência de gênero no Brasil. 

Um suposto tiro acidental

Durante a festa de aniversário de sua nora, a empresária Ana Kátia Silva, 46, foi assassinada pelo então namorado, um policial civil de 29 anos. Os dois tinham iniciado uma relação havia poucos meses,. Os relatos apontam para um homem já embriagado, que circulava entre os convidados com uma arma na cintura e que em determinado momento foi até a rua e deu dois tiros para o alto. Vizinhos chamaram a polícia, que compareceu ao local, mas ele voltou para a festa como se nada tivesse acontecido. Poucas horas depois, Katia levaria um tiro fatal. A defesa alega que o disparo foi acidental.

“A Kátia nasceu para ser uma estrela, trabalhava desde muito cedo, era uma ótima filha, a caçula de cinco irmãos. Estamos tristes, mas não revoltados”, afirma Ana Tereza Silva, irmã da vítima. “Isso vai passar, essa dor vai acalmar e vou conseguir falar com mais clareza que ele matou a pessoa errada. Nós não vamos nos acomodar até a Justiça ser feita”.

A empresária nunca denunciou o namorado. Uma pesquisa realizada em 2019 pelo Datafolha a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), que ouviu 2.084 pessoas em 130 municípios brasileiros, indica que 52% das mulheres que sofreram agressão ficaram caladas. Também no ano passado, um estudo feito pela Câmara Técnica de Segurança Pública do Distrito Federal trouxe a radiografia das vítimas de feminicídio na capital federal e a maioria nunca registrou denúncia sobre a violência que sofria por parte dos seus parceiros.

Em agosto foi a vez de Thaiana Pantoja dos Santos, 26. Ela foi assassinada com um golpe de faca em uma comunidade ribeirinha no arquipélago do Bailique, distante 12 horas de barco de Macapá. O suspeito é o ex-cunhado da vítima, que também fugiu.

Subnotificação da violência

Ensaio fotográfico de Nay Jinknss sobre a violência contra a mulher (Foto ilustrativa Nay Jinknss/Amazônia Real)

Em junho, a Polícia Civil do Amapá divulgou um balanço em que mostrava que os casos de violência doméstica tinham tido uma redução de 52% entre março a maio de 2020 ante o mesmo período de 2019. O órgão ainda arriscou dizer que o baixo consumo de bebida alcoólica, devido às medidas de isolamento social e aos bares fechados, seria uma das razões. 

Os números colocam o Amapá num patamar diferente de todo o País, mas brigam com a realidade. As mulheres estão sendo obrigadas a ficar presas em casa com os agressores e muitos órgãos deixaram de funcionar presencialmente.

De acordo com os dados da terceira edição da pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o isolamento domiciliar tem como possível efeito colateral “consequências perversas para as milhares de mulheres brasileiras em situação de violência doméstica, na medida em que elas não apenas são obrigadas a permanecerem em casa com seus agressores, mas também podem encontrar ainda mais barreiras no acesso às redes de proteção às mulheres e aos canais de denúncia”. 

De acordo com Alícia, é sabido que a diminuição dos casos de violência doméstica é ilusória. “A gente tem conhecimento que são números subnotificados e que seria impossível o Amapá ir na contramão do resto do País. A nossa maior dificuldade para produzir debate são exatamente os números. A política pública sobre questões de gênero no Amapá é mínima e muitas mulheres não sabem quais são as instituições que atuam, não sabem quais números ligar, falta empenho de divulgação sobre os canais”, questiona. 

A deputada estadual Cristina Almeida (PSB), da Frente Parlamentar pela Prevenção da Violência Contra a Mulher, afirma que a violência doméstica continua a ocupar os primeiros lugares no ranking de todas as delegacias do Estado. “Fiz um acompanhamento de cinco dias e, nesse período, aqueles telefones que ali estavam sendo divulgados não funcionavam, davam inexistentes e era o número para as mulheres fazerem a denúncia. O que eu quis provar foi a subnotificação. Alguns órgãos não abriram presencial, então, onde que as mulheres iriam buscar ajuda de advogados, por exemplo?”, relata a deputada.

O delegado Bruno Braz Cordeiro, que atua em Porto Grande, município de 16 mil habitantes no interior do Amapá, tem constatado que o registro de violência doméstica é “quase que diário” e chegam ou por meio de flagrante ou porque as vítimas vão denunciar. “Agora há pouco veio uma mulher fazer boletim de ocorrência porque o ex está ameaçando”.

No ano passado, o Tribunal de Justiça adquiriu 300 tornozeleiras eletrônicas para agressores em cumprimento de medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha, em atendimento a uma solicitação da Frente Parlamentar.

* A série Um Vírus e Duas Guerras vai monitorar até o final de 2020 os casos de feminicídio e de violência doméstica no período da pandemia. O objetivo é visibilizar esse fenômeno silencioso, fortalecer a rede de apoio e fomentar o debate sobre a criação ou manutenção de políticas públicas de prevenção à violência de gênero no Brasil. Parceria colaborativa entre as mídias independentes Amazônia Real, AzMina, #Colabora, Eco Nordeste, Marco Zero Conteúdo, Portal Catarinas e Ponte Jornalismo.


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