*Por Nayara de Lima Monteiro

Nasci e fui criada entre rezas, benzeduras, romarias do Padre Cícero, Nossa Senhora das Candeias e do Perpétuo Socorro, lapinhas, reizados, cordel, carrancas, orações de mainha para Nossa Senhora da Conceição, fósseis, artistas populares e de rua, renovações de santo em casa. Entre memórias do Caldeirão do Beato José Lourenço no Ceará contadas por minha avó materna, do milagre da Beata Maria de Araújo, mulher remanescente indígena-negra sertaneja.

Nasci e fui criada no sertão que não chovia, onde meus/minhas parentes e conhecidos/as perdiam suas roças e não sabiam qual perspectiva de vida abraçar para dias mais abundantes de comida na mesa.

Adolescente peregrino para a capital para “ganhar a vida” tentando acessar o conhecimento científico, que para a minha realidade era uma oportunidade para talvez num futuro ter direito a uma vida material mais abundante, algo que as minhas linhagens ancestrais não tiveram garantido.

O conhecimento científico representou muito mais que ascender socialmente, representou, antes de tudo, justiça ancestral para mim e para meu povo – da família e, consequentemente, da região do Cariri cearense, de onde venho.

Justiça cognitiva, pois eu não conseguiria entrar em tal universo científico sem a influência de todo esse impulso ancestral, basilar a minha própria caminhada e iniciador da proposição de pensar-viver epistemes contra-coloniais, retomando aqui um dizer de Nêgo Bispo.

No entanto, ingressar no lugar de produção de conhecimento e de política do conhecimento, apesar de não ser fácil, apresenta uma faceta que é a complexa permanência nesse espaço de pessoas que vem de vivências populares como eu – que praticamente era uma das primeiras da família a ter oportunidade de cursar uma faculdade pública. E é sobre isso também que questiona esse escrito: quem determinou qual saber é mais autorizado a produzir verdades? Quem produz conhecimento científico? Como o é produzido? Visando o quê e direcionado a quem?

Por mais de um ano, fiquei refletindo sobre os motivos que me levariam a querer voltar a pesquisar e estudar no espaço da Universidade, em nível de doutorado. A graduação em Direito (2006-2010) e o mestrado em Relações Internacionais (2012-2014), cursados em tempos quase emendados na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), fizeram-me perceber que tanto conhecimento acumulado e materializado em títulos estavam pedindo para serem canalizados de outra maneira, que não somente dentro da pesquisa. Estava cansada da velha-nova lógica da produtividade acadêmica, onde os mesmos sujeitos escrevem e publicam para os mesmos sujeitos dos mesmos círculos (a não variação de gênero nas palavras é proposital).

Pensar em popularizar o conhecimento científico e mudar essa lógica de serem os mesmos os produtores de conhecimento ainda continua sendo uma batalha diária para quem deseja que a Universidade se pinte de povos e seja construída por e para estes mesmos povos. E ainda mais complexa torna-se a missão quando identificamos quem são esses povos, suas caras, de onde vem, seu gênero, suas experiências de vida, saberes, classe, raça, qual lugar ocupam na estrutura da produção do saber na geopolítica global do conhecimento. Esses povos são mulheres e homens negras e afropindorâmicas localizadas no interior do Nordeste brasileiro, Améfrica Ladina, dos quais faço parte.

Mas a tomada de consciência do tornar-me mulher negra veio depois dos 30 anos de idade, mesmo que toda a minha experiência de vida me apontasse que a racialidade e a negritude estavam comigo, tanto no meu corpo, como nos meus afetos, na minha subjetividade e no trato discriminatório dos outros para comigo. Foi na hostilidade colonial-patriarcal personificada na experiência da injúria racial enquanto docente universitária que caiu a grande ficha dessa racialidade. Quando me dei conta, estava na polícia denunciando o racismo maquiado de piada.

Foto: Arquivo Pessoal.

Demorei um bom tempo sem conseguir nomear bem a experiência subjetivamente e abraçar o tornar-me negra. Hoje em dia compreendo que a demora em termos de tempo cronológico para o tardio dessa nomeação, está diretamente conectada ao processo de miscigenação enquanto política de apagamento dos povos africanos e indígenas no Brasil – e o consequente desejo do embranquecimento da sociedade brasileira e a construção do mito da democracia racial brasileira pela elite filha da metrópole. Uma grande mentira que continua violentando quem leva nos corpos e subjetividades os traços e linhagens desses povos que tentaram apagar.

Lembro de Mano Brown, famoso rapper brasileiro, que cresceu escutando da sua mãe que era “pardo”, “mais clarinho”, “ia sofrer menos”, pensou que era branco, antes de se encarar em frente ao espelho, mas em certas ocasiões sempre voltava o não-lugar do que seria esse sujeito “miscigenado”: “Quando eu estava entre os brancos, eles sabiam que eu não era branco, sabiam muito bem que eu não era branco”, Mano Brown em uma entrevista com Drauzio Varella no começo do ano de 2020.  

O processo de reconhecer a negritude que nos habita, principalmente quando se vem de famílias inter-raciais como eu, requer muito trabalho e comprometimento individual principalmente. Com o tempo, você vai percebendo que retirar quem você é do silenciamento racial, construto do mito da democracia racial e de séculos de colonização, é se libertar um pouco mais das garras da supremacia branca que vem tentando colonizar completamente os povos originários e africanos presentes em Abya Yala. E os motivos de tanta lentidão para nomear tais processos são os efeitos das colonialidades no nosso ser.

Quando você, sujeito dito “miscigenado”, está em espaços brancos e da branquitude, mesmo que inconsciente, sabe que aquele lugar não lhe cabe ou até você pode caber nele, mas é uma prisão que não te permite respirar e viver em plenitude de acordo com quem você é física, subjetiva, espiritual, ancestralmente…

Volto ao acesso ao conhecimento crítico, como o encontro com o pensamento de Paulo Freire, que tive dentro da Universidade desde os tempos da graduação que me ajudou sobremaneira a resistir dentro desse espaço que é infelizmente ainda muito colonial, branco e patriarcal – porém foi nesse meio que conheci leituras, pessoas que me ajudaram também a voltar ao meu ser, a me estudar, me reconhecer, e, portanto, me enegrecer, me descolonizar.

Eu tenho me referido ao processo de descolonização de nossas sociedades em Abya Yala e Améfrica Ladina como um processo duplo e relacional, entrecruzado: se nós não descolonizamos nossas subjetividades, não nos olhamos internamente, nos nomeamos, nos curamos, nos amamos enquanto produzimos o conhecimento na Universidade, muito provavelmente estaremos reproduzindo a ética e o modo de vida do colonizador por meio de nossas pesquisas e atividades.

O processo requer coragem, requer acreditar que nossos passos são comunitários e ancestrais e que a força só por isso já é imensa. Acessá-la e permitir que o caminho seja caminhado na proteção de quem nos guia e guarda nessa grande guerra colonial que ainda perdura. Protegides com as vestes e armas de Ogum e dos guerreiros e guerreiras das florestas, das matas, dos Andes e dos sertões. A vitória contra-colonial já é certa.

*Nayara de Lima Monteiro – filha de Betinha e Antônio – advogada, docente universitária, pesquisadora em nível de doutorado (PPGICH/UFSC/Brasil).

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