Com dores fortes, sentindo o fluxo intenso da menstruação descer e com licenças limitadas para ir ao banheiro, Liliana Piski Maes  passou momentos de aflição quando era operadora de prensa da metalúrgica Duque, em Joinville. Trabalhava sob efeitos de analgésicos para aplacar o desconforto durante o período menstrual, o que representava um grande risco, pois um pequeno descuido poderia causar um grave acidente de trabalho.  Liliana é portadora de endometriose, mas apenas ficou sabendo do seu diagnóstico anos mais tarde.

A endometriose é uma doença inflamatória crônica em que o tecido que deveria estar dentro do útero (endométrio), implanta-se na cavidade abdominal sobre o intestino, bexiga, uréter, etc. A doença causa fortes dores, cólicas menstruais intensas, sangramento nas fezes ou urina e até esterilidade. Comum nas mulheres em idade reprodutiva, de acordo com a Associação Brasileira de Endometriose, afeta cerca de seis milhões de brasileiras e é responsável por 40% dos casos de infertilidade.

O diagnóstico costuma ser demorado. Dos sintomas até a comprovação de que sofria da doença, Camila Rodrigues da Silva passou 10 anos suportando fortes dores. Chegou a ficar menstruada três meses ininterruptos, padecendo de crises consecutivas de cólica. Vivia medicada com analgésicos que apenas amenizavam as dores. Hoje, depois de passar por uma cirurgia de reconstrução do ovário que controlou a endometriose, Camila entende que os anos sem o tratamento adequado afetaram drasticamente a sua rotina de vida. “Nos últimos meses antes da cirurgia, senti que estava deprimindo, pelo mal estar estrutural do meu corpo. E eu me dopava muito, estava sempre com analgésico na bolsa”, relembra Camila.

A falta de reconhecimento como doença social e divulgação dos sintomas da endometriose, dificultam a vida das mulheres. Suiane Zancheta dos Santos conta que suas queixas eram classificadas como frescura. “Antes do diagnóstico, quando eu falava que estava com muita cólica e não conseguia sair da cama as pessoas diziam: ‘nossa, é só uma cólica, não vai morrer por isso’. Mas quando começaram a ver relatos da doença, passaram a entender que não era apenas uma cólica qualquer”, relata Suiane, que passou por uma cirurgia e hoje faz exames periódicos para acompanhar se a doença permanece controlada.

De acordo com a ginecologista Halana Faria de Aguiar Andrezzo, as causas da endometriose são estudadas há mais de um século, sendo que o estresse e ansiedade podem ser fatores agravantes da doença. “Parece claro que a vida que se leva afeta a saúde das mulheres. Uma mulher que precise dar conta do trabalho doméstico, filhos e ainda trabalha com vínculo empregatício precário, sem garantias trabalhistas e com constante medo de perder emprego, vai ter menor oportunidade de buscar serviços de saúde para cuidar de si e pode diagnosticar endometriose e outras doenças tardiamente”, frisa a médica feminista, que escreve ao blog Casa de Amaterasu.

“As pacientes com endometriose queixam-se de diagnósticos tardios porque seus sintomas não são considerados e cólica menstrual é uma queixa muito comum em consultórios médicos. No entanto, a abordagem e investigação das cólicas e de outras queixas das mulheres são frequentemente desvalorizadas.  Diante de uma abordagem automatizada e medicalizada, em geral a resposta é a prescrição de pílula anticoncepcional, que pode atrasar o diagnóstico”, comenta Halana.

Para a médica, é importante que o os profissionais de saúde ouçam as pacientes com a devida atenção, realizem um exame físico competente e exame complementar quando indicado, tudo para identificar quais mulheres que realmente precisam de uma laparoscopia (exame abdominal que submete a anestesia geral), diante de queixas que levem a pensar em endometriose.

As pacientes não possuem atendimento específico dentro da rede pública de saúde. De acordo com os médicos que compõem a Associação Brasileira de Endometriose e Ginecologia Minimamente Invasiva – SBE, os investimentos do governo com a doença são equivalentes aos de tratamentos do diabete, porém, apesar de não ter nenhuma relação, a endometriose acaba sendo considerada no Brasil como uma doença contagiosa. Isso faz com que não sejam reservados verbas públicas para campanhas de conscientização, investimento em tratamentos e pesquisas científicas a respeito da doença.

“A maior parte das portadoras de endometriose só encontra assistência na rede privada de saúde, onde ficam suscetíveis a um tratamento mercantilizado, baseado em medicamentos e soluções paliativas. As opções de fertilização tem sido um nicho rentável para alguns profissionais. A rede privada oferece tratamentos caros que possibilitam a gravidez às mulheres com endometriose que possam pagar”, salienta Liliane.

Aline Zilli é portadora de Endometriose. Organizadora da Endomarcha em SC, o ato busca chamar atenção para a doença e propor políticas públicas de enfrentamento e conscientização. | Foto: arquivo pessoal

Endomarcha luta para que SUS ofereça o tratamento

Pautadas na busca pelo reconhecimento da endometriose como doença social e de saúde pública, um grupo de mulheres organiza mundialmente a Endomarcha. O evento acontece todo ano no dia 24 de março, com adesão de mais de 20 estados brasileiros. Aline Zilli, portadora de endometriose e coordenadora da Endomarcha em Santa Catarina, busca a efetivação de leis que chamem atenção para o assunto e que possibilite o acesso das mulheres ao tratamento via Sistema Único de Saúde – SUS.

Realizado pelo terceiro ano no Parque de Coqueiros em Florianópolis, a Endomarcha reúne mulheres portadoras da doença, apoiadoras e apoiadores. A expectativa de Aline é que este tema seja conhecido pela sociedade e que o estado de Santa Catarina adote políticas que busquem atender as mulheres com endometriose.

.:. Saiba mais sobre o evento em Santa Catarina

A proposta do movimento é propor campanhas de conscientização no estado, como já tem sido feito no Rio de Janeiro (Lei nº 4639/2005) e São Paulo (Lei nº 1344, de 2007) onde há calendários oficiais de Semanas de Prevenção à Endometriose e Infertilidade. Em Santa Catarina, projeto semelhante foi vetado pelo governo do estado em 2015, alegando inconstitucionalidade e vício de origem, visto que a Secretária de Saúde alegou gerar gastos com esta iniciativa.

Projetos semelhantes tramitam na esfera federal, como a instituição do 8 de maio como Dia Nacional da Luta Contra a Endometriose. Porém, o projeto de proposição do deputado federal Roberto de Lucena do PV/SP está parado na Comissão de Constituição e Justiça – CCJ, desde 2015.

Em fevereiro deste ano, uma iniciativa de Ideia Legislativa do Senado Federal, coletou 22.727 apoios para criar um projeto que reconheça a endometriose como uma doença incapacitante pelo INSS. Porém, agora a proposta aguarda avaliação das comissões, junto com mais de 80 sugestões que receberam apoio popular e também aguardam entrar na pauta da casa legislativa.

“Viver constantemente com uma dor, a qual muitas vezes é difícil de descrever, incomoda muito, ainda mais quando associada ao estresse. A doença impossibilita à mulher uma vida normal durante a menstruação, no trabalho e na sua vida particular. Digo isto porque com o desconhecimento da doença, as pessoas acham que é só uma ‘colicazinha’, ‘frescura de mulher’ e não levam a sério as dores que sentimos. Até alguns médicos desconfiam quando dizemos que não temos condições de trabalhar naquele momento de dor”, reforça Aline.

Para a organizadora da Endomarcha, a ocupação das ruas e praças é importante para marcar que a endometriose existe e  afeta muitas mulheres. “Neste dia precisamos nos unir para levar a correta conscientização da endometriose à sociedade e também para reivindicar que a doença seja reconhecida como social e de saúde pública, para que as endomulheres (termo utilizado pela ativista para designar estas pacientes) brasileiras tenham seu tratamento efetivo e seus direitos garantidos por lei”.

As 14 cidades oficiais que realizarão a 5ª edição da Marcha Mundial pela Conscientização da Endometriose são: São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ) e Belo Horizonte (MG), Londrina, Curitiba e Maringá (PR), Florianópolis (SC), Campo Grande (MS) e Brasília (DF), Boa Vista (RR), Belém (PA), Fortaleza (CE), Salvador e Feira de Santana (BA).

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