Nesse período de isolamento social, em meio a uma pandemia da COVID-19, muitas/os trabalhadoras/es estão na ativa, e uma categoria mais presente que do nunca em nossas portas é a das/os entregadoras/es de comida por aplicativos. Sem nenhuma consciência ou até mesmo solidariedade, não temos noção do mal que estamos fazendo, aos outros e a nós. Então, seguimos nossa quarentena assistindo a séries na Netflix, comendo nossa comidinha express.

A quantidade de trabalhadoras/es de entrega rápida tem aumentado absurdamente, devido ao desemprego e à precarização do trabalho. Conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de trabalhadores que atuam na área de entrega aumentou em 201 mil pessoas no primeiro trimestre de 2019, em relação ao mesmo período de 2018.

Trabalhadora doméstica e mãe solo, ela tem direito a dois auxílios emergenciais

O número de pessoas que trabalham por conta própria com delivery saltou 104,2%, conforme o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).  Segundo a revista Exame, em pesquisa feita em junho de 2019, no ranking dos 5 aplicativos mais usados pelos brasileiros estão: 1-  iFood com 1,2 milhão de usuários, 2- Uber Eats com 246 mil, 3- Rappi com 183 mil, 4- Loggi com 90,5 mil e 5- EuEntrego com 3,2 mil.

Essas empresas, entre outras de entregas deliverys, utilizam de oportunismo para absorver esse nicho de pessoas desempregadas, que consideram este trabalho como renda. Essas pessoas são descritas como “trabalhadores autônomos” por não manterem nenhum vínculo empregatício, por isso sobre as empresas não recai nenhuma responsabilidade ou obrigação em relação aos “parceiros cadastrados”.

Mesmo que estabeleça diversos requisitos, o trabalho é atraente, vendido como a possibilidade da pessoa entregadora tornar-se uma empreendedora, com flexibilidade de horário e retorno financeiro imediato. É evidente que esse novo modelo de trabalho necessita de regulamentação. Mas não existe nenhuma preocupação por parte do poder público com essas/esses trabalhadoras/es, a inquietação dos governantes é com a classe empresarial. Por enquanto, o que existe é o Projeto de Lei 321/2020 que exige das empresas de entrega por aplicativo algumas obrigações relacionadas aos seguros para seus entregadores. O projeto está sendo examinado no Senado Federal, pela Comissão de Assuntos Sociais, e em seguida irá para a Comissão de Assuntos Econômicos. 

Recentemente, o Ministério Público do Trabalho ajuizou duas ações civis públicas, determinando que as empresas iFood, e Rappi, em todo território nacional, garantam assistência financeira aos trabalhadores contaminados pelo novo Coronavírus, e forneçam materiais de higienização a todos os entregadores de mercadorias e refeições.

A exploração vem de todas as formas, como em qualquer trabalho informal. Mas nesse tipo, além de todo ideário meritocrático que o sustenta, as/os trabalhadoras/es ainda fazem ação de marketing  ao andarem com aquelas caixas de entregas grifadas com as logomarcas das empresas.

Antes mesmo da pandemia chegar, com suas bolsas térmicas nas costas, de bicicleta ou de moto, na pressão psicológica “do número de estrelas a ganhar”, e na busca incessante pela simpatia e satisfação dos clientes, essas trabalhadoras e trabalhadores têm que garantir sua renda para sustentar a si e sua família. Muitos, no caso, têm que pagar a dívida, inclusive do equipamento de trabalho, que é a bicicleta ou moto, internet, combustível entre outros.

Nesse período de quarentena, a violência contra essas/esses trabalhadoras/es se intensifica. Para as mulheres que trabalham como entregadoras nesses aplicativos, a situação é ainda mais precária. Subalternizadas pela cultura patriarcal, sobre elas recaem as injustiças já presentes no trabalho formal, desigualdades essas forjadas pelo papel atribuído a elas nas tarefas domésticas, cuidados com os filhos, idosos, pessoas doentes e pessoas com deficiência. Agora, com o isolamento e a necessidade de trabalhar, colocam suas vidas em condições de vulnerabilidade e risco, andando em ruas isoladas sem nenhuma segurança e proteção. O abandono com que são tratadas pelos aplicativos são mais evidentes. 

Tal situação é retratada em casos como o da Jane Barreto, moradora de Palhoça. Ela trabalhava fazendo coquetéis em festas, mas devido aos contratos cancelados, e sem previsão de retomada, passou a atuar como entregadora em delivery para salvar sua renda. Aos 32 anos e há 12 trabalhando com sua moto, está na rua fazendo suas entregas.

Com o esvaziamento das escolas, universidades e locais de trabalho, em consequência da necessidade de quarentena para conter o coronavírus, “as ruas estão praticamente um deserto”, diz ela.

Jane sente-se bem mais vulnerável ao transitar pela cidade, ao parar para ver endereços, portar dinheiro, e fazer contato com homens sozinhos em isolamento. Solteira e sem filhos, já passou inúmeras dificuldades e experiências negativas.

“Ouvi xingamentos em semáforos, de que não deveria estar andando de moto e sim em casa lavando e passando. Sem falar nos carros que passam te jogando para o acostamento, sem se importar que essa atitude possa te levar ao hospital, ou até mesmo à morte. Todos os dias, quando saio de casa, eu faço uma oração pedindo proteção e, quando eu volto, agradeço por aquele dia. Neste momento, só peço proteção e que tudo passe logo”.

Verônica é Argentina, mora em Florianópolis há 11 anos. Com 44 anos e dois filhos, teve dificuldades de se inserir no mercado de trabalho e não conseguiu vaga na creche para as crianças. Decidiu fazer entregas de marmitas. Trabalha das 8 horas às 15 horas, quando reveza o turno com seu companheiro, pois tem que cuidar da casa, cozinhar e cuidar das crianças. Moradora da Barra da Lagoa, atende todo o Leste da Ilha.

Faz seis meses que está trabalhando com entrega. Por enquanto, divulga seus serviços nas redes, uma vez que ainda não recebeu a confirmação de sua inscrição no aplicativo. “Eles são muito exigentes, muitas informações, muitas dificuldades para eles aprovarem o cadastro. Já fazem mais de 30 dias que fiz o cadastro, mandei e-mail e nada. E o percentual que eles cobram é muito alto. Para mim, a maior dificuldade é o trânsito e o clima, quando está chovendo. Meu sonho é ter meu próprio restaurante, e também ajudar outras pessoas”.

Nesses tempos, a desigualdade tende a pesar ainda mais sobre os ombros das mulheres: primeiro por que elas são as principais cuidadoras de nossa sociedade, e em casa a sobrecarga de trabalho aumenta consideravelmente. As mulheres, inclusive, são as que estão na linha de frente no trabalho ao combate do Coronavírus. Na área da saúde, elas são a maioria, exercendo funções de médicas, enfermeiras e socorristas. A violência doméstica também é o problema principal para elas em período de isolamento. Reclusas em suas casas, sem conseguir sair da situação e sem poder contar com equipamentos de proteção do Estado, estão ainda mais vulneráveis diante do companheiro agressor.

O cárcere feminino do Coronavírus

Neste cenário em que as tensões se tornam ainda mais complexas diante das frustrações sociais, as mulheres, que já são a maioria no mercado informal, são ainda mais exigidas tanto nos trabalhos domésticos não remunerados, quanto nos trabalhos precarizados aos quais recorrem para manter a sobrevivência das suas famílias. Os excessos de obrigações e ausência de direitos por parte de empresas de aplicativo, ao passo que se transformam em único meio de renda, são faces das contradições da uberização do trabalho. Quem sabe, tempos de calamidade e incertezas sejam oportunos para revermos nossa arrogância e pensarmos na próxima.

*Jeane Rinque é graduada em Filosofia (UFSC) e professora no Projeto de Educação Comunitária Integrar. Graduada também em administração, atua como administradora no Sintrajusc. Militante feminista e membra/associada do Portal Catarinas.

 

 

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    Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFRJ - Professora Filosofia - INTEGRAR - Projeto Educação Popular...

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