Em entrevista, a antropóloga e cientista social Flavia Medeiros fala sobre a atuação da polícia nas chamadas “mortes em confronto” que tiveram alta durante a pandemia

 

Arte: Hadna Abreu

“A ideia do homicídio decorrente de intervenção policial ou em razão de confronto está justamente pressupondo essa atividade policial já violenta, o que resulta daí é que muitas das mortes acontecem sem que haja o confronto, mas justifica-se em relação a quem era esse sujeito: porque era ‘envolvido com o tráfico de drogas’, como se esses comportamentos justificassem a morte por parte da polícia”, explica a antropóloga e cientista social Flavia Medeiros, professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Mestre e Doutora em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Flavia é nossa entrevistada na reportagem colaborativa sobre o aumento de mortes praticadas pela polícia catarinense durante a pandemia de Covid-19. É autora dos livros “Matar o morto: uma etnografia do Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro” e “Linhas de Investigação: uma etnografia das técnicas e moralidades numa divisão de homicídios da Polícia Civil do Rio de Janeiro”.

Em entrevista exclusiva, ela aponta a omissão do Ministério Público (MP) e do Judiciário no controle externo da atividade policial para evitar abusos. “Essa omissão é forma de corroborar  com a ação policial, justamente pensando nas injustiças sociais, quem são os protegidos e quem são os tratados a tiro e bomba; quem são os que se sentem, se acham protegidos, que tem a polícia como serviço em função deles – não o que vemos na realidade das favelas, periferias, a polícia em serviço contra as pessoas”, afirma.

Flavia, poderia nos explicar como ocorre a classificação “auto de resistência” , que tem sido utilizada para isentar policiais de responderem pelo crime de homicídio?
O auto de resistência teve sua regulação em 1969, em forma de procedimento administrativo, e pressupõe excludente de ilicitude para quem comete ato em nome do estado. Acontece que o que a gente vem observando há décadas, especialmente nos últimos dez anos, é o uso desse tipo de ato administrativo para acobertar execuções sumárias por parte de policiais. O auto era usado como uma normativa e nome mesmo, uma classificação administrativa. Mas desde 2012, por conta do caso do menino Juan, que aconteceu na baixada fluminense do Rio, a Secretaria Nacional dos Direitos Humanos recomendou que seja classificado como homicídio decorrente de intervenção policial. A classificação homicídio decorrente de intervenção policial ou mesmo morte em confronto é feita inicialmente, mas por sua vez não prescinde a investigação desse óbito por parte da Polícia Civil. Essa investigação deve ocorrer justamente para esclarecer os fatos que confirmem a excludente de ilicitude, isto é, que houve resistência e por isso resultou em morte, ou que houve uma situação forjada de enfrentamento e os policiais estão usando o seu precedente, como força do estado, para poder executar pessoas.

Essa ideia do homicídio decorrente de intervenção policial ou em razão de confronto está justamente pressupondo essa atividade policial já violenta. O que redunda daí é que muitas das mortes ocorrem sem que haja o confronto, a resistência à ação policial, mas posteriormente justifica-se em relação a quem era esse sujeito, por que era suspeito de ser criminoso, porque era ‘envolvido com o tráfico de drogas” como se então esses comportamentos e ações justificassem a sua morte por parte da polícia.

De que forma ocorre ou deveria ocorrer esse tipo investigação de morte praticada por policial?
É importante a classificação como homicídio e não como auto de resistência para pressionar a polícia investigativa que apure os fatos que aconteceram, de que forma essa morte se deu, para ver a justificativa dos policiais na produção dessa morte, e como a dinâmica desse fato ocorreu. É padrão que se recolha o armamento usado pelos policiais no momento da ação que resultou na morte ou tentativa de morte de alguém. Se a pessoa se foi baleada é preciso investigar em quais condições ela sofreu essa lesão. O que se observa é que as polícias acabam por não investigar esses fatos, tampouco o MP incentiva ou pressiona as polícias à investigação e a maioria dos casos é arquivada, não passam pelo processo de investigação para  poder responsabilizar aqueles que produziram aquela morte. Também não passam pelo julgamento para produzir justiça para aquela pessoa que foi morta.

Caso em um homicídio decorrente de intervenção policial seja demonstrado que houve intencionalidade dos agentes na produção dessa morte ou não houve prudência, perícia suficiente para que essa morte fosse evitada, esses agentes devem ser responsabilizados – essa responsabilização deveria se dar no âmbito do Tribunal de Júri, exclusivo para lidar com crimes contra a vida. O Brasil tem essa particularidade de ter um tribunal para um tipo criminal específico, não tem a ver com fase do processo, e sim do delito que é provocar a morte intencional de alguém. Confirmando-se a responsabilidade da morte, deve-se encaminhar para esse tipo de instância criminal.

Arte: Hadna Abreu

De alguma maneira as mudanças trazidas pela Lei 13.491/2017 que amplia a competência da Justiça Militar, sancionada pelo governo Temer, interferem nesses casos?
O que muda com a Lei é que os policiais militares vão ter também uma justiça que é militar. Essa Justiça Militar tem em seus quadros funcionários que são tanto do Tribunal de Justiça regular (juiz, MP e defensoria que cedem agentes), quanto do conselho de pessoas da Polícia Militar. E a Justiça Militar, seja ela estadual que vai cuidar das militares ou Federal que cuida do Exército, tem a responsabilidade de apurar os fatos dos crimes militares. Existe um Código Penal Militar para apurar uma série de infrações que um militar pode cometer em função do seu exercício, enquanto militar, como, por exemplo, deixar o posto vazio, não cumprir horário, não ter uniforme em ordenamento.

O que aconteceu no contexto de 2018, no governo Temer, a partir da intervenção federal militarizada no Rio de Janeiro, em fevereiro de 2018, abriu precedente para que delitos cometidos por militares do Exército, Aeronáutica e Marinha pudessem ser investigados e julgados apenas pela Justiça Militar. Isso é não vai julgar os fatos por quem ele vitimou ou por sua natureza no Código Penal específico, mas por aqueles que os cometeram que são os militares.

A lei trata somente dos crimes vinculados ao exército. Porém, abre brecha para que os crimes promovidos por policiais militares também sejam exclusivamente julgados na Justiça Militar. Aí novamente vemos o desvio da função dessa justiça que por si só já tem várias problematizações. Importante pensarmos sobre o que está em jogo no julgamento: se é a punição de uma pessoa, simplesmente o fato de ela cometer um crime, se é o processo de construção de verdade e justiça pelas pessoas que foram vítimas. Isso permite a gente refletir sobre essa justiça militar e a civil.

Como você avalia o uso abusivo da força militar, denunciado em várias situações por nossa reportagem, que é justificado muitas vezes pelo uso progressivo da força?
Seja nesses casos de mortes, tentativa de mortes, e outros vários casos que envolvem a agência das instituições policiais, a forma de atuação está muito mais preocupada em expressão do uso da força, manutenção de uma ordem hierárquica e desigual na sociedade do que necessariamente com a proteção dos cidadãos, manutenção da ordem em benefício da sociedade. É interessante observar que em vários estados é a ostensividade do uso da força da polícia, que já faz parte da sua forma de atuação, que podemos chamar de violenta e o uso excessivo da força justamente porque está fazendo a manutenção da sua imposição de poder. Como estamos falando de violência policial e lembrando dessas ações que redundam em vítimas fatais, é importante pensar que no âmbito dessa organização do Estado nacional moderno, dos estados democráticos, isso está previsto legalmente na Constituição – as polícias são aqueles que têm o uso legítimo da força, são instituições que servem para impor as regras pela coerção. A forma cotidiana da prática policial já é violenta pela imposição da força.

O que estamos vendo é o uso excessivo dessa força para normalização das práticas de tortura, seja para adquirir informações, seja para promover processos realmente de humilhação, de punição momentânea, já que não há razões para conduzir a prisão, não há suportes jurídicos legais, a polícia age nessa ideia de correção, da imposição da força por excesso, prática brutal de imposição da força.

Como se dá o controle institucional sobre a atividade policial?
É papel do MP e Judiciário estabelecer limites e fazer o controle externo da polícia. Porém, esses órgãos são omissos no controle. E essa omissão é forma de corroborar  com a ação policial, justamente pensando nas injustiças sociais, quem são os protegidos e os que são tratados a tiro e bomba; e quem são os que se sentem, se acham protegidos, que tem a polícia como serviço em função deles – não o que vemos na realidade das favelas, periferias, a polícia em serviço contra as pessoas. Essas ações policiais que agora se dão no contexto da pandemia, durante a distribuição dos alimentos ou ações sanitárias, não é só a polícia promovendo a violência, mas impedindo que o acesso a recursos básicos chegue às pessoas que precisam. Como vamos responsabilizar esses autores não só pelas ações, mas por justamente impedir possibilidades das pessoas de acesso?

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Essa entrevista integra a reportagem colaborativa “Epidemia de execuções: PM catarinense mata 85% a mais no isolamento social”, trabalho de apuração que envolve três mídias independentes de Florianópolis: Portal Catarinas, CatarinaLAB e Folha da Cidade.

Equipe:
Portal Catarinas: Paula Guimarães e Inara Fonseca
Folha da Cidade: Fábio Bispo, Míriam Santini de Abreu e Priscila dos Anjos
CatarinaLAB: Fábio Bispo
Fotos: Alice Sima e Odara Cris
Ilustrações: Hadna Abreu
Infográficos: Fábio Bispo

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  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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