“Este será o ministério de todas as mulheres”. Foi com essa promessa que Aparecida Gonçalves tomou posse como ministra das Mulheres em janeiro de 2023. Em seu discurso, a especialista em violência contra a mulher fez questão de ressaltar a “camada racista” desses abusos, cometidos, em sua maioria, contra negras. Suas palavras, contudo, se chocam com as denúncias de racismo e assédio moral feitas contra a cúpula do Ministério das Mulheres.
No último dia 21, o portal de notícias Alma Preta revelou que 17 atuais e ex-funcionárias da pasta confirmaram depoimentos sobre esses tipos de violência no dia a dia do ministério. Após tomar conhecimento do caso pela imprensa, a Controladoria-Geral da União abriu uma investigação.
Procurado pelo portal, o ministério afirmou ser contra qualquer tipo de discriminação e assédio. Os relatos, porém, mostram o adoecimento físico e psiquiátrico – como enxaquecas, ataques de pânico e burnout – causados pelo ambiente de trabalho, forçando as pessoas a procurarem ajuda médica, se medicarem ou mesmo a se afastarem de seus cargos.
Segundo o Alma Preta, ouve-se pelos corredores do Ministério das Mulheres que a situação da pasta é pior do que quando Damares Alves comandou o então Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, entre 2019 e 2022. A reportagem conta que, em um e-mail enviado a toda a equipe, um ex-funcionário chegou a afirmar que viveu durante a gestão petista o que temia viver durante os anos de Jair Bolsonaro no poder.
A denúncia mais detalhada é feita contra a número dois da pasta, a secretária executiva Maria Helena Guarezi. Segundo cinco testemunhas, ela pediu à então secretária Nacional de Articulação Institucional, Ações Temáticas e Participação Política, Carmen Foro, para sentar-se durante uma reunião, pois seu cabelo – crespo – atrapalhava a visão dos demais.
Aparecida Gonçalves foi avisada do ocorrido, mas fez após o ato racista, de acordo com o Alma Preta. A (falta de) postura, indefensável, não é um ato isolado. Funcionárias disseram ao portal que, ao fazerem questionamentos sobre políticas voltadas às mulheres negras, ouviam cotidianamente da cúpula do ministério frases como: “de novo isso de racismo?” e “já vem essa de mulher negra”.
Comentários que, definitivamente, destroem qualquer ilusão de um “ministério de todas as mulheres”. Em vez disso, o recado que a pasta parece enviar às brasileiras é o seguinte: quer falar de racismo? Pegue um elevador para o Ministério da Igualdade Racial e bata à porta de Anielle Franco, que esse assunto não é conosco.
Salvas pouquíssimas exceções, a mídia tampouco deu atenção ao assunto desde as revelações do Alma Preta. Uma postura radicalmente diferente da adotada diante das denúncias de assédio sexual feitas contra o então ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, em setembro.
Competição entre raça e gênero
O Ministério das Mulheres de Aparecida Gonçalves repete um erro que a esquerda insiste em cometer. Separar as chamadas lutas identitárias em compartimentos que não conversam entre si – pelo contrário, agem como se estivessem em eterna competição.
Este mês, cem terreiros e entidades de matriz africana acusaram a ministra Anielle Franco de agir com “descaso total” contra esses grupos. Em uma carta, ela é criticada por uma série de erros que teria cometido. Embora a sociedade civil tenha o direito e o dever de cobrar governantes, uma frase da carta mostra o machismo em ação: “Nossa crítica ao tratamento do MIR aos terreiros do candomblé amplia-se diante do envolvimento da ministra em polêmicas que não ajudam o Governo Lula”.
Leia mais
- Atena e Natasha: corpos trans a desafiar o poder na Câmara de Porto Alegre
- Futebol feminino de cegas e a luta pela inclusão nas Paralimpíadas
- O que é heterossexualidade compulsória?
- Esquerdomacho: o falso aliado na luta por igualdade de gênero
- Eleições em Florianópolis: o que esperar do 1º turno para prefeitura da capital de SC
Anielle Franco, segundo essa visão equivocada, falhou como ministra da Igualdade Racial ao chamar atenção à importunação sexual que sofreu – muito embora o caso tenha ido à público contra a sua vontade. Pior: causou a demissão de Silvio Almeida, um homem negro respeitado e admirado, do cargo de ministro dos Direitos Humanos. Ou seja, deixou sua condição de mulher, uma questão secundária, ganhar primazia sobre a questão racial, foco de seu ministério.
As denúncias contra o Ministério das Mulheres mostram que sua cúpula opera na mesma chave de leitura. Hierarquiza gênero e raça, como se resolver os problemas atrelados a uma identidade (nesse caso, de gênero) fosse mais urgente que os problemas ligados à outra.
Ignora de forma inaceitável uma verdade em que feministas – em especial, as negras – insistem há muitos anos: todas as lutas se atravessam e é impossível avançar verdadeiramente quando se coloca uma acima da outra.
Não foi Aparecida Gonçalves quem, ao tomar posse, lembrou que 67% das vítimas de feminicídio e 89% das vítimas de violência sexual em 2021 eram negras? Como pode a cúpula de seu ministério querer resolver a questão da violência contra a mulher e, ao mesmo tempo, dizer às suas funcionárias: “já vem essa de mulher negra”?
Simples: não pode.
Igualmente contraditório é que, para o ministério enfrentar as desigualdades que sofrem as mulheres, algumas delas acabem sendo vítimas de violência por parte do próprio ministério. Evidencia-se que elas estão entre as mulheres a serem defendidas pelo governo, cumprindo o papel de meras funcionárias. E, na relação chefe-trabalhador, ainda reina a ideia de que “manda quem pode, obedece quem tem juízo” – mesmo outra frase ouvida pelas funcionárias da pasta de Gonçalves.
Um Ministério das Mulheres que vira os olhos para a questão de raça só pode maquiar os problemas que se propõe a resolver. Isso porque políticas que levam em conta apenas o gênero só poderão beneficiar um grupo muito seleto de mulheres: as brancas de classe média e alta. Todas as demais, indiscutivelmente a maior parte das brasileiras, será relegada ao papel do outro invisibilizado.
Ministério do Feminismo Branco
Simone de Beauvoir escrevia sobre a condição subalterna das mulheres quando cunhou o conceito de “o outro”. Em seu clássico O Segundo Sexo, ela explica que a mulher é definida na sociedade em relação ao homem. As denúncias contra o ministério levam a crer que as mulheres negras são tratadas pelo Ministério das Mulheres (que também deveria representá-las) como “o outro” das mulheres brancas.
Haverá quem diga que, diante de todos os problemas enfrentados pelas mulheres, é um desserviço atrapalhar o andamento do trabalho do ministério dando ênfase aos seus erros internos – mesmo quando os tais “erros” são, na verdade, violências como o assédio moral ou crimes, como o racismo.
A essas leitoras, lembro outra formulação de Simone de Beauvoir: basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. E, vejam só, estamos sempre em crise, de forma que nunca é o momento de a sociedade enfrentar as agruras das mulheres.
Toda feminista encontrará na esquerda gente que segue diminuindo a urgência da luta das mulheres, culpando as feministas de distraírem o país dos reais problemas, como a inflação ou o avanço da extrema direita. E toda mulher negra encontrará uma feminista branca que segue fazendo exatamente o mesmo com suas demandas.
Pego emprestadas as palavras de Lélia Gonzalez, intelectual e feminista negra brasileira:
Vamos dar um exemplo de definição do feminismo: ela se baseia na “resistência das mulheres em aceitar papéis, situações sociais, econômicas, políticas, ideológicas e características psicológicas que tenham como fundamento a existência de uma hierarquia entre homens e mulheres, a partir da qual a mulher é discriminada”. Bastaria substituir os termos homens e mulheres por brancos e negros (ou indígenas), respectivamente, para ter uma excelente definição de racismo.
Menos de dois meses se passaram desde as numerosas denúncias de assédio sexual contra Silvio Almeida, ministro dos Direitos Humanos à época dos relatos. O filósofo, como já lembramos, é acusado de importunar sexualmente a ministra Anielle Franco. A nova leva de denúncias contra a cúpula de um ministério, revelada pelo Alma Preta apenas algumas semanas após a crise nos Direitos Humanos, é prova de que o governo ainda é incapaz de criar espaços seguros para as mulheres negras, mesmo em suas trincheiras.
Em uma sociedade e em um Ministério das Mulheres que toma a mulher branca como mulher universal, afinal, nunca será tempo de enfrentar as desigualdades e violências sofridas pelas mulheres negras. Pior: se cometerá contra elas as mesmas violências que, em discursos, nós brancas dizemos repudiar.