Médicos “açougueiros” e a exibição da carne das mulheres em cirurgias plásticas
Quem se beneficia quando o corpo das mulheres é cortado, exposto e vendido como espetáculo?
Um vídeo chegou até mim, pelo Facebook. Descrevo-o para ver que suscita o mesmo torpor que senti: um médico, homem branco, exibe o flanco de uma paciente, retirado minutos antes. A carne saiu inteira, branca, formando um quadrado grande e ele levanta-a acima da cabeça e sorri: “Este é o flanco da paciente. Olha quanta gordura foi retirada!” exclama o profissional exibindo o pedaço da carne.
A cena remeteu-me imediatamente a um açougue dos grandes supermercados, com homens vestidos de brancos, sujos de sangue, carregando quilos de carnes nas costas. Atrás das grandes portas destes espaços, pedaços de pernas, costelas, lombos, dentre outras partes do animal.
E, se a gente se detém num vídeo nesta rede social, outros, do mesmo gênero, começam a chegar. E foi aí que me dei conta da enorme difusão das cirurgias plásticas por médicos cirurgiões, e a exibição dos detalhes. A barriga aberta de uma outra paciente, um ferro introduzido nela revira a “gordura” e os tecidos mais profundos da pele.
A mulher não sente a violência do momento, obviamente, está anestesiada, imobilizada, inerte. Ele, o médico, naquela ocasião, é o senhor supremo, aquele que detém o poder sobre o corpo passivo, cortado, exposto e costurado. Outro vídeo de uma lipoaspiração. Primeiro o médico toca na barriga, mostrando o antes, depois, desenha as linhas sobre a carne e, o processo de sugar a gordura, o aparelho enfiado no corpo, até o momento de costurar.
O que isso revela sobre o Patriarcado? Muito. O corpo ativo é sempre o do homem. São raras as mulheres cirurgiãs que exibem as suas pacientes deste modo. Os fatores podem ser vários, como a baixa taxa de mulheres especialistas nesta área ou, simplesmente, um modus operandi tipicamente masculino de demonstrar poder.
Além disso, os vídeos com pacientes homens também são raros, para dizer a verdade, jamais vi um homem com o bucho aberto, exibido por outro homem, costurado como um animal e colocado no balcão do “açougue” para o deleite das vistas.
O corpo da mulher, no Patriarcado, sempre foi exposto e usado por homens das mais diversas formas: seminus, nas propagandas, completamente despido e submisso, como nos filmes pornôs e, agora, como tendência, nas camas dos centros operatórios. Trata-se de uma relação de poder e do que a feminista francesa, Colette Guillaumin, chama de “ideia de natureza”, no livro Sexo, raça e prática de poder. É uma estratégia masculina para dominar, controlar, fixar a mulher no seu corpo e em tudo o que diz respeito a ele.
Aos homens, o poder, às mulheres a ocupação com a corporeidade, lugar delimitado pelo Patriarcado. A partir deste lugar, criam-se as narrativas ideológico-discursivas para levá-las até ele. Por exemplo, alguns médicos usam termos como: “Esta mulher teve três filhos e está insatisfeita com a barriga. Ela já fez de tudo, dieta, academia, mas não adiantou”. Vejam bem as palavras: “mulher, filhos, barriga…”.
Outras falas evocam até mesmo termos políticos do feminismo: “Ela se sente mais empoderada, aumentou a autoestima e a qualidade de vida”. Cirurgias plásticas não têm nada a ver com empoderamento. O termo nasceu na Índia, cunhado por uma feminista e diz respeito ao degrau de autonomia e autodeterminação de um grupo ou comunidade.
Não existe empoderamento individual. Isso é estratégia neoliberal para vender produtos, inclusive usada por médicos, cujo único interesse é encher o próprio bolso.
Estas imagens e narrativas são banalizadas, mesmo sendo estruturantes da cultura patriarcal, pois mantêm as mulheres demasiadamente ocupadas e insatisfeitas com o corpo, deixando o caminho do poder para os homens. O Patriarcado, segundo Colette Guillaumin, apropria-se do tempo e do corpo das mulheres e, o adestramento para isso tem diversas estratégias. É um adestramento positivo, como diz a estudiosa. O sucesso dessa tática consiste na produção de um discurso que a iluda com a aparência física, o corpo perfeito, ligado à sua felicidade e emancipação.
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A exposição do corpo das mulheres, mutiladas e costuradas por homens, demonstra a relação de poder entre um agente ativo, o homem, com poder de transformar este corpo, e a mulher, deitada, passiva, costurada, sedada, muda, exibida como um troféu. Nas iconográficas patriarcais, o homem, sobretudo branco e rico, que representa a si mesmo e o seu corpo, está sempre em posição de dominação, de liberdade, de comando, de ação. “Os homens pretendem ser identificados por suas práticas e pretendem que as mulheres sejam pelo seu corpo”, pontua Colette Guillaumin.
As consequências destas escolhas são incalculáveis. Além do lado prescritivo, as mulheres são vistas como submissas, guiadas, protegidas, à mercê da mão do cirurgião macho tirando, assim, a ação do ser submetido, a sua criatividade e conduta política. A mulher é devolvida à carne. É exatamente este o objetivo desta ideologia, expressão da nossa redução à concreta impotência, diz a feminista francesa.
Colette ainda pontua que, nas sociedades patriarcais, a mulher deve pesar e medir menos que o homem, além da obrigação de ser mais jovem. Este fato é tão subestimado que ninguém reflete sobre ele. O aspecto físico deve ser adaptado para a dominação, mulheres fortes e mais altas que homens podem resistir à violência física.
Além do mais, o tempo em que meninos passam nos espaços livres e fora de casa, como quadras de esporte e ruas, é maior que o das meninas, reduzidas, na maior parte do tempo, a locais confinados. A escolha por atividades físicas também é reveladora: esporte de combate para os homens, balé e atividades menos agressivas para as mulheres.
São regras não inscritas, mas que exercem grande poder de coerção, preparando o campo para os “açougueiros” da medicina deleitarem-se com a carne passiva das mulheres insatisfeitas com o próprio corpo, efeito de uma “fabricação corpórea”, nas palavras de Guillaumin.
A socialização na estrutura patriarcal fabrica, para as mulheres, corpos resistentes ao sofrimento físico, como a cultura da manicure e pedicure, os alisamentos, as progressivas, luzes, chapinhas, com o secador tão quente que o ambiente exala fumaça, num clima de normalidade assustador.
As cirurgias plásticas estão sendo vendidas como um produto qualquer, sem nenhuma conscientização dos riscos e do processo doloroso e invasivo, enquanto os homens são educados para a praticidade e o conforto, como o simples gesto de ocupar dois assentos no transporte público, por que ele tem duas bolas entre as pernas e elas não podem ser espremidas.
Simone de Beauvoir tem um livro que está entre os meus favoritos. É decorrente de uma conferência que ela realizou no Japão, chamada A mulher e a criatividade. Nele, a filósofa fala da criação e do destaque das mulheres na história, quase invisíveis em relação aos homens. Mas, ao invés de colocar a culpa na “natureza”, ela destrincha os mecanismos que confinam as mulheres em certos espaços, materiais e simbólicos.
Por exemplo, para criar algo, a mulher precisa pertencer a si mesma, diz Beauvoir. E, como pertencer a si mesma numa sociedade patriarcal, feita a imagens dos homens brancos e ricos? As mulheres estão na corrida pelo corpo perfeito, pela eterna juventude, pelo corpo ideal.
E, não sejamos ingênuas de não as ver no mercado de trabalho, lutando por um espaço na carreira e criando os filhos concomitantemente. Mas, isso é visto como reprodução, não criação.
Os homens, liberados do trabalho doméstico, do cuidado com os filhos e a obsessão com o corpo, dominam. Se não fosse trágico, seria até cômico o vídeo de um médico barrigudo, falando da barriga da sua paciente. Vejam só, a dele não é um problema para a sociedade, nem para si mesmo, enquanto a da mulher, é a sua fonte de renda, de sucesso e poder. Com a sua barriga livre de julgamentos ele domina o mundo.
No campo material, as mulheres precisam emancipar-se economicamente, e, naquele simbólico, veem-se livres das amarras deste “corpo”, estabelecendo com ele uma nova conexão, que não passe pela mutilação e a entrega incondicional aos açougueiros de plantão que não têm nenhuma ética ao vender o “produto” (saúde) como qualquer outro.
O corpo das mulheres, nas suas diferentes formas, deve ser mostrado pulando, jogando, sorrindo, dançando, criando, combatendo, lutando, escrevendo, cantando, nadando, subindo, descendo e não como um bicho sangrando numa sala operatória. O Conselho Federal de Medicina deve, urgentemente, proibir as publicidades e o uso de carne feminina para fins de lucro e poder masculino.