O caso da professora processada por ex-aluna por perseguição religiosa em Santa Catarina reacendeu o debate sobre o programa Escola Sem Partido, cuja proposta é denunciar a “doutrinação ideológica” nas aulas e livros didáticos. Batizado de “Escola com Mordaça” por professores, o movimento ancora-se na crítica à “doutrinação política e ideológica dos alunos por parte dos professores” e à “usurpação dos direitos dos pais na educação moral e religiosa de seus filhos”. Apoiadores buscam por meio do  PL 193/2016 do Senador Magno Malta (PR/ES), incluir o programa entre as diretrizes e bases da educação nacional.

Em consulta pública no portal e-cidadania do Senado Federal, o projeto recebeu 190.550 votos favoráveis e 203.404 contrários. Enquanto a lei não é aprovada, as ideias do movimento – idealizado em 2004 pelo procurador do Estado de São Paulo, Miguel Nagib – têm sido adotadas em projetos de lei em âmbito municipal e estadual. Exemplo disso é a Lei Estadual “Escola Livre”, aprovada em abril de 2016, em Alagoas. A lei, que estabelecia punição para professores que praticassem “doutrinação ideológica” em sala de aula, foi suspensa, em decisão liminar, pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso.

Na última semana, a ONU enviou carta ao Estado Brasileiro denunciando o programa como inconstitucional e violador dos tratados internacionais dos quais o país é signatário. O documento também cita a retirada pelo Ministério da Educação (MEC) dos termos “orientação sexual” e “identidade de gênero” da última versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

Marlene de Fáveri, professora do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da UDESC, é ré em ação de indenização por dano moral proposta por Ana Caroline Campagnolo. A professora não é a única. Há pelo menos outros dois professores, no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro, denunciados por perseguição ideológica, como alertou a Associação Nacional de História (Anpuh). “A professora Marlene está sendo perseguida politicamente. O resultado disso é muito perigoso, porque pode ser que essa perseguição política seja acolhida juridicamente”, alerta a jornalista e antropóloga Sonia Weidner Maluf.

Em entrevista por telefone ao Catarinas, a professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS)  e do Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH), da UFSC, analisa o caso específico que gerou a ação na justiça catarinense, assim como o cenário político que o favorece e estimula novas denúncias por entusiastas do movimento Escola Sem Partido.

CATARINAS – De acordo com sua experiência em orientações de mestrado e doutorado, como você agiria se uma aluna quisesse contestar o acúmulo do campo de estudos?
SONIA MALUF –
Em uma relação de orientação, principalmente quando é pós-graduação, há expectativa de um mínimo de abordagem teórica, temática e de abordagem. Se não há algum tipo de afinidade teórica em que seja possível construir um diálogo que alimente a pesquisa a ser feita – na qual a própria orientadora precisa acreditar na relevância e contribuição para o campo – essa relação não tem o menor sentido. Já vivi situações em que um aluno resolveu adotar determinada perspectiva teórica que não era a minha. Nesse momento, me considerei desabilitada de seguir e a troca de orientação foi feita com a maior tranquilidade. Ninguém considerou perseguição. As pessoas reconheceram que havia diferenças no entendimento e que o melhor seria ter um orientador mais adequado à linha teórica.

CATARINAS – Como você percebe o caso específico que gerou processo por dano moral em Santa Catarina?
SONIA MALUF –
A UDESC tem desenvolvido no campo da história os estudos de gênero, história do gênero e história e teoria feminista, onde se destaca a atuação da professora Marlene. Percebo que além de um desconforto por parte da orientadora – porque não havia afinidade teórica que pudesse garantir a continuidade da orientação -, a postura da estudante foi de desautorizar o campo de estudos. Quando isso acontece não há como continuar mesmo e questiona-se inclusive a continuidade do aluno no curso. O campo disciplinar, a ciência está o tempo inteiro retornando sobre si mesma, questionando-se, colocando interrogações, visto que o fundamento do trabalho científico são perguntas, interrogações. Porém, se a postura de um aluno que vai fazer a sua formação começa com o questionamento, não no sentido acadêmico-científico, mas de um ataque à existência do próprio campo de estudos, deixa de ser estudante para ser simplesmente militante. As falas dessa ex-aluna são de uma militante que estava ali para realizar o Escola sem Partido e atacar o ensino de gênero na escola e na universidade.

CATARINAS – Uma aluna poderia apontar contradições teóricas, contestar o próprio conhecimento no campo de estudos do gênero?
SONIA MALUF –
O campo de estudos de gênero e da própria teoria feminista é reconhecido na academia, as pessoas recebem bolsas para estudar, dão aula e ministram disciplinas, não só na UDESC como na UFSC em várias áreas. Uma coisa é questionar modelos e conceitos – e sugerir outros – dentro do campo de estudos. Outra coisa é entrar com o objetivo de destruir o conhecimento. Imagine em uma aula de evolução, no curso de Biologia, um aluno dizer que aquilo é absurdo, que o que vale é a teoria criacionista e querer colocá-la na mesma simetria que as de evolução. A teoria criacionista é considerada credo religioso, ou seja, não reconhecida cientificamente. Quando a aluna parte do questionamento de pressupostos e verdade acadêmica construída ao longo de anos para trazer uma verdade que não sei qual é, ela estava confrontando não do campo acadêmico. Ela não estava ali para produzir teoria, acumular conhecimento e aprender a pesquisar. Estava justamente para enfrentar, combater o conhecimento e a ciência. Quando fica evidente que o papel da aluna é de ataque à própria docência, não é mais possível manter a orientação.

CATARINAS – O caso suscita um debate ético no que diz respeito à necessidade de coerência na pesquisa científica?
SONIA MALUF –
Não vejo apenas como uma questão ética, mas sim extremamente política e perigosa. Essa repressiva na sala de aula e controle de conteúdo não são novidades, já vimos em vários momentos na história do Brasil. Isso apareceu muito forte na época da ditadura, inclusive com a reforma do ensino que retirou disciplinas clássicas das áreas de humanas e reduziu a carga horária de história.

CATARINAS – A retirada da obrigatoriedade de disciplinas das áreas de humanas ocorreu recentemente no governo Temer…
SONIA MALUF –
Sim, a reforma do Ensino Médio retirou a obrigatoriedade de algumas matérias como Sociologia, Artes, Educação, Educação Física e Filosofia.

CATARINAS – Você viveu a época da ditadura, como ocorreu a investigação de professores em sala de aula?
SONIA MALUF –
Estudei no período militar e acompanhei situações na universidade. Na época havia alunos infiltrados na sala da aula pela Polícia Federal e órgãos do aparelho repressivo – eram chamados de ratos. Eles tinham o papel de ficar anotando tudo que a professora falasse em sala de aula que pudesse ser considerada pregação marxista ou esquerdista e depois relatavam isso para a polícia. Muitas vezes esses professores eram perseguidos e perdiam o cargo. O papel que o Escola Sem Partido quer cumprir é exatamente esse, só que o modo de proceder é diferente. Não são policiais na sala de aula, são militantes desse movimento. A Ana Carolina é militante antiga desse movimento, tem vídeos dela participando de mesas e fóruns do movimento sem partido, em 2014, junto com militantes de direita como Olavo de Carvalho e o próprio Miguel Nagib, o mentor do programa, mas que não tem relação nenhuma com a educação.

CATARINAS – O que a atuação do movimento Escola sem Partido em sala de aula traz de novo em relação ao período da ditadura?
SONIA MALUF –
A novidade é esse modo de agir muito próximo do método fascista que busca transformar a política numa questão pessoal, acusando pessoas por determinadas atitudes. O que está acontecendo com a Marlene, não é um caso de assédio contra uma aluna, mas sim um processo de perseguição política contra a professora. Essa aluna tem por trás o apoio de deputados notórios apoiadores do Escola sem Partido, os quais promoveram a ida dela à Câmara dos Deputados. A professora Marlene está sendo perseguida politicamente.

CATARINAS – Há uma tentativa de intimidação dos professores?
SONIA MALUF –
O modo de agir é justamente provocar os professores, questionar a ponto de obstruir o processo de aprendizado da sala de aula. Muitas vezes gravam sem pedir autorização – como a Ana Caroline fez ilegalmente e depois reproduziu na Câmara dos Deputados. Eles gravam, editam e depois mostram ‘olha a pregação desse professor’, usando não mais a polícia, mas a mídia e o aparelho jurídico. São maneiras de atacar a profissão da docência e de intimidar as professoras, porque a maioria das pessoas atacadas dessa maneira são mulheres, o que revela também a misoginia desse movimento.

CATARINAS – Como você avalia o resultado da atuação do movimento em sala de aula?
SONIA MALUF –
Todo o discurso tenta personalizar na pessoa da professora Marlene e na relação com a estudante, porém não se trata disso. Está por trás a tentativa de criar um caso exemplar do Escola Sem partido. É uma pessoa que tem uma longa história no campo de gênero, que é reconhecida, uma figura importante que hoje é atacada dessa maneira. Pode ser que essa perseguição política seja acolhida juridicamente e o resultado disso é muito perigoso. O parágrafo único do segundo artigo do PL 193/2016 do Senador Magno – que tem vínculos com a igreja evangélica – é um horror. Diz que: “o Poder Público não se imiscuirá na opção sexual dos alunos nem permitirá qualquer prática capaz de comprometer, precipitar ou direcionar o natural amadurecimento e desenvolvimento de sua personalidade, em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero”. Significa que – se aprovado – vai transformar o ambiente escolar e a sala de aula num espaço de defesa da homofobia, do sexismo, da transfobia, da misoginia. Quando uma estudante chega em sala de aula e diz que a diferença é natural, o sexo biológico é que define, a teoria feminista não é nada, está aplicando o parágrafo único dessa PL que sequer foi aprovada. Está colocando em prática a lei que quer destruir todo o campo de conhecimento dos estudos de gênero. É possível fazer um paralelo com a disputa de discursos entre as teorias evolucionista e criacionista que ocorreu nos EUA e dividiu Estados.

CATARINAS – É possível acolher a pluralidade de visões dentro de um campo de estudos?
SONIA MALUF –
É possível ter uma pessoa de qualquer matiz político-ideológico, a gente justamente trabalha com essa diversidade o tempo inteiro. Acho que a Marlene conduziu muito bem o processo. A questão é essa atitude dessa aluna pegar injustamente uma situação normal de sala de aula, ou ruptura de orientação que também faz parte do cotidiano do nosso trabalho – já recebi orientandos de colegas meus, já passei orientandos para outros colegas – já houve desligamento de orientação, e aí a coordenação teve que resolver. Qual o objeto dessa aluna ao transformar isso que faz parte do cotidiano em caso nacional? O que ela quer, aonde quer chegar com essa midiatização toda? De alguma maneira está querendo construir um nome, uma fama em cima da professora. Todos os colegas que atuam nas universidades estão indignados com essa situação. Não é a toa que houve repercussão na mídia e nas redes no sentido de apoio à professora Marlene. O Escola sem Partido está tentando cavar espaço. Trata-se de um grupelho que consegue a projeção por conta desse tipo de ação: perseguir pessoas com importância na academia ou outros espaços e se construir em cima delas, atacando sua honra.

CATARINAS – A professora Marlene afirma que depois da repercussão desse caso está sendo intimidada por alunos do MBL em sala de aula…
SONIA MALUF –
Acho que caberia uma atitude por parte da direção do Centro de Ciências Humanas e da Educação (FAED/UDESC) de fazer o inverso: participar da aula dela e propor a esses estudantes uma discussão acadêmica e escolar de aprendizado. Por que quando atuam dessa forma na sala de aula não vão para aprender, mas para destruir o processo de aprendizado, destruir a escola pública. O que viria a partir do que eles estão propondo é a barbárie, não tem outro nome.

CATARINAS – A ex-mestranda afirma que foi perseguida por ser antifeminista, conservadora e cristã. Há espaços para o pensamento religioso e conservador em universidades e campos de estudo?
SONIA MALUF –
Há estudos não só de religião e gênero, como também com perspectiva religiosa de gênero, assim como movimentos feministas dentro das religiões, como Católicas pelo Direito de Decidir e revistas feministas de cunho religioso dentro de universidades. Ela fala como se estivesse sido atacada como cristã, mas a questão é política e não religiosa. Primeiro porque existem cristãos de todos os matizes, cristãos marxistas e feministas, inclusive. O problema é ela querer que a teologia dela, ou suas crenças, sejam tomadas como modelos teóricos de análise e recebidos pela orientadora e banca como teoria reconhecida dentro do campo da academia. Para isso acontecer, será necessário provar que não é uma criação religiosa e sim uma teoria. Ou seja, terá que dialogar com o campo, afinal ninguém constrói pesquisa acadêmica sem dialogar com as teorias e conceitos desse campo.

CAROLINE – Ana Caroline se diz favorável à neutralidade, no entanto faz publicações em defesa do deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) e contrária a diversidade de gênero e orientação sexual…
SONIA MALUF –
Apesar do nome Escola sem Partido, toda a performance dela é altamente ideológica e partidária, ela está atacando o espírito científico, a dinâmica da vida acadêmica, sendo sim, bastante partidária no sentido nefasto. A gente que trabalha com humanas sabe que não existe um conhecimento absolutamente destituído de questões políticas. A ciência justamente se constituiu enquanto campo legitimado com muito embate político, que começa lá atrás com Galileu. Ninguém está postulando que a ciência seja absolutamente neutra. Outra coisa é o que ela propõe: o combate à própria existência de um campo de conhecimento e as pessoas que nele trabalham. O que ela propõe em troca disso chega a atingir a própria Constituição Brasileira que é questionar a ideia de que todos são iguais.

CATARINAS – Ao mesmo tempo em que o Programa Escola sem Partido defende a neutralidade, ele diverge da diversidade ao retirar o ensino de gênero…
SONIA MALUF –
O PL prevê que a escola deve garantir que alunos façam sua opção sexual dentro da harmonia com a sua respectiva identidade biológica de sexo. Quer dizer que quem não segue essa norma não tem espaço na escola. Para entender o mundo social é preciso reconhecer as desigualdades de gênero e estudá-las. A outra questão é que o gênero é uma das variáveis centrais que organizam a experiência das pessoas. Como chegar à escola e não considerar essa variável? Mesmo que o professor não leve gênero, os alunos estão o tempo todo trazendo nas suas atitudes, no bullying com os colegas e em uma série de maneiras. O campo de estudos de gênero não só estuda as relações de gênero, mas o próprio conceito de gênero é central na antropologia, história, ciência política, serviço social, enfim, nas várias áreas que buscam entender o que é a sociedade sob prismas diferentes.

CATARINAS – Mesmo disposta a estudar o feminismo, a ex-aluna não sou soube responder “o que leva uma mulher a ser feminista” na entrevista ao programa Conexão Conservadora – um motivos que levou Marlene a abrir mão da orientação. Como você agiria se descobrisse a visão paralela de uma orientanda dessa forma?
SONIA MALUF –
Se eu soubesse antes, nem orientaria. Uma pessoa que não tem os conceitos mínimos das categorias básicas do trabalho com o mundo social, da compreensão da sociedade, do que são as diferenças, não está preparada para fazer mestrado. É complicado orientar uma pessoa que você sabe que tem esse tipo de pensamento. Primeiro porque é desonestidade intelectual se posicionar de forma diferente em dois lugares distintos. Principalmente quando é em espaço público. A afirmação de que as feministas são invejosas dos homens, por exemplo, denota desconhecimento absurdo das teorias sociais. Realmente me sentiria incapaz de orientar pessoa assim. Ela poderia procurar orientador que tivesse afinidade, o que seria muito difícil no campo das humanidades. Além de que, esse tipo de fala é preconceituosa e desrespeitosa com as próprias professoras que trabalham com esse tema e se consideram feministas. Não há elaboração de pensamento, racionalidade ou questionamento de pressupostos no sentido teórico. Há afirmação sem nenhum fundamento, altamente provocativa. Nenhum professor tem obrigação de levar adiante uma orientação que não vai ter desfecho positivo no sentido pedagógico e da pesquisa.  A orientação é voluntária, tanto que que nós professoras precisamos concordar se vamos orientar. Às vezes descobre-se depois, mas é bom descobrir a tempo qual seria o desfecho, do que ir para a banca e reprovar.

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