Maria Odete Semedo: “Medo da cota é o medo das potencialidades das mulheres”
Ela nos recebeu horas antes da conferência de abertura do 13º Congresso Mundo de Mulheres e 11º Fazendo Gênero. Mal teve tempo de descansar do voo. Da recepção, o atendente avisou Maria Odete Costa Soares Semedo sobre nossa chegada. Dentro de alguns minutos, a professora universitária e escritora de Guiné Bissau – na ordem como prefere ser identificada – chegou ao pátio do hotel onde está hospedada, no Bairro Carvoeira, nas imediações da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Vestia uma saia estampada com flores e blusa com mesmo tecido, cujo predomínio era dos tons verde e roxo. Com sorriso fácil e uma simpatia característica, ela falou durante cerca de uma hora com exclusividade ao Portal Catarinas.
Na entrevista, a conferencista lamentou o atual momento político brasileiro e o comparou ao golpe semelhante ocorrido no país africano em abril de 2012, quando um grupo autodenominado “Comando Militar” tomou o poder na Guiné Bissau, destituindo o presidente interino, Raimundo Pereira, e o primeiro-ministro, Carlos Gomes Júnior. Referiu-se ao processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff como “uma grande perda”. Destacou que é preciso trabalhar no sentido das mulheres consolidarem suas conquistas. “Porque hoje cada conquista de uma mulher é a conquista de todas as mulheres. É uma grande perda a Dilma ter saído. O país não melhorou. Estamos assistindo várias perdas na educação e de vários outros programas culturais”, enfatizou.
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Maria Odete insiste na necessidade de ocupação das mulheres em espaços de decisão, em diferentes esferas. Ela também destacou a importância de políticas públicas específicas para mudar as desigualdades de gênero. Aos 57 anos, a Ex-Ministra da Educação Nacional (Junho/1997 a Fevereiro/1999) e Ex-Ministra da Saúde (Março/2004 a Novembro/2005) de Guiné Bissau falou ainda sobre a sensação de palestrar na abertura do evento que trouxe mais de 8 mil mulheres a Florianópolis. Quase com a mesma emoção da primeira vez em que esteve no país.
A primeira visita da professora universitária ao Brasil foi em 2004, quando estava à frente do Ministério da Saúde de Guiné Bissau. Depois disso, “foi paixão à primeira vista”, como definiu às jornalistas do Portal Catarinas. Escolheu o país para fazer o doutoramento em Letras – Literatura de Língua Portuguesa, pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Minas Gerais. Maria Odete foi reitora da Universidade Amílcar Cabral. Atua como investigadora Sénior do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP). Sempre procurou conciliar a academia com a vida política e ressalta a legislação que exige cotas mínimas de participação de mulheres na política como uma “correção necessária”.
Coautora do estudo “A participação das mulheres na política e na jornada de decisão na Guiné-Bissau”, a professora não poupa críticas às exigências feitas por eleitores quando mulheres assumem a carreira política. “Da mulher, é exigido que se faça na vida pública uma extensão da vida privada. Esta exigência não é feita aos homens”, observa. Maria Odete defende a mudança de postura das próprias mulheres com relação a estas cobranças. Ela percebe semelhanças entre o machismo praticado na Guiné Bissau e no Brasil. Destaca que no país africano, é comum esta prática se revelar de forma silenciosa, o que se verifica também no baixo índice de denúncias formais de violência doméstica.
A primeira pergunta que fiz à Maria Odete foi: quando você se descobriu feminista? A resposta veio de forma natural. “Eu não me considero feminista. As pessoas me veem assim”. Ela acredita ter como missão garantir visibilidade à luta pelos direitos das mulheres, como fez no livro “Meus Três Amores”. A obra é baseada nos diários de Carmen Maria de Araújo Pereira, uma das mulheres guineenses que lutaram na frente de libertação dos povos africanos. Depois de 11 anos de luta armada, a independência do país ocorreu em 1974. A professora defende a literatura como um espaço para denúncias sobre as violências contra a mulher.
Catarinas – Como foi o convite para abrir esta conferência?
Maria Odete Costa Soares Semedo – Foi um frio na barriga porque são 8 mil participantes. Mas entendi como algo muito gratificante e de um reconhecimento acadêmico também, porque só quando se confia em alguém se coloca nas mãos uma responsabilidade tão grande. Foi com regozijo que recebi este convite. Vai ser um encontro, para mim, memorável, porque será a primeira vez que estarei participante de um Mundos de Mulheres e Fazendo Gênero. Quando saí de lá, de Bissau, eu trouxe as “mantenhas”, (saudação) das mulheres guineenses. Elas me disseram: “você tem que falar bem, é o nosso nome também”. Então, estando cá, eu não estou só por mim. Estou aqui como mulher guineense, acadêmica, pesquisadora, mãe e cidadã que luta pela cidadania e garantia da pessoa humana.
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Catarinas – Além da experiência acadêmica, você também vem de uma experiência pública. Qual é o desafio, na sua opinião, para as mulheres garantirem os seus direitos hoje no Brasil e no mundo?
Maria Odete – Tem que haver uma fala contundente das mulheres; elas têm que estar coesas, unidas. Novos espelhos, como costumo dizer. Refletir a nossa força e não as frustrações e incompletudes. Para que estas mudanças sejam levadas a cabo, é preciso que as mulheres estejam nas esferas da tomada de decisão, nos órgãos de soberania dos países. Que possam, nas assembleias, estar presentes na elaboração de leis e que possam dar opinião, apresentar planos e projetos que conduzam a esta participação equitativa de homens e mulheres na sociedade. Porque este é um mundo de homens. Nós estamos vivendo num mundo machista. Quando a mulher está numa esfera de decisão, ela é alvo de críticas até mesmo de outras mulheres. Talvez porque, ela estando lá, também não estaria a trabalhar no sentido de olhar para uma causa comum, do espaço que as mulheres precisam conquistar. Não é por favor, tem que ser uma exigência no mundo inteiro, mesmo nos países menores já não se pode falar que não têm mulheres com preparo, doutoramento, que trabalham desde o camelô até o mais alto nível. Temos mulheres de todos os lados. Continuamos a ser mais do que os homens. No meu país, por exemplo, as mulheres são 52% da população. Somos a maioria, mas vamos olhar os números de uma outra forma. Quais são as responsabilidades dadas nas funções públicas? Diretoras de serviço… elas desaparecem. Quando você fala de analfabetismo, tende a subir. [Precisamos] de boas políticas públicas que favoreçam a mulher, porque estas políticas ou não são implementadas ou não há um seguimento para saber se de fato há um aspecto gênero visto quando da aprovação do orçamento geral do Estado.
Catarinas – As cotas (que exigem a participação mínima de mulheres na política) são necessárias?
Maria Odete – Acho que são necessárias, sim. Elas não vêm fazer um favor às mulheres, mas uma correção, porque nós fomos injustiçadas na história. A cultura, a religião, sempre colocou a mulher no espaço do privado, de não-decisão, não-fala, não-presença. Você está lá, mas não participa. Mesmo quando se refere à sua própria vida, ao seu próprio corpo. Você não gere o seu corpo. Se a sua família decidir que você será mutilada [mutilação genital], você será. Portanto, quando você não consegue participar, estar presente, a sua fala nunca vai estar lá. Essas políticas públicas que nós solicitamos não podem acontecer com a ausência das mulheres nestes lugares. E, para estarem lá e contornarem as leis, por exemplo, dos partidos políticos, do regimento da assembleia nacional e várias outras, simplesmente ela não aparece e nada diz que ela deva estar. Então, a cota vem fazer esta correção. Até “X” anos vai haver esta lei que diz que “X por cento” de mulheres tem que estar na assembleia, como cabeça de lista dos partidos políticos, como desembargadoras, procuradoras. Se a cota nos der isso, nós não vamos buscar uma mulher que está lá na lavoura para levar para procuradoria. Vamos buscar entre mulheres que tenham a formação e perfil para ocupar aquele lugar.
Então, onde está o medo da cota? Eu acho que é porque os homens conhecem as potencialidades das mulheres. O medo do enfrentamento dessa parceira que eles não querem admitir como parceira.
Catarinas – Você vê semelhanças das práticas de machismo em Guiné Bissau e no Brasil?
Maria Odete – Lá, esse machismo é muito escamoteado. Porque é reservado ao marido o direito de bater quando ela não cuida bem das crianças, deixa a roupa suja ou lhe responde. Há um conjunto de situações que são nefastas à participação da mulher e são nefastas à integridade física da mulher. Ela própria acaba se apropriando desta postura, aceitando e não denunciando. Cerca de 3% dos casos são denunciados, porque indo “pra autoridade”, como se diz lá, as duas famílias ficam “desavindas”. Há uma pressão familiar. E tem a ver com o nível de educação e escolaridade das pessoas. Quanto mais estudada e instruída, menos as pessoas aceitam essa violência. Mesmo entre as mulheres que têm baixo nível de escolarização, não se está aceitando esse casamento onde a violência impera. Na área em que eu trabalho, que é de cantigas, tem uma que diz “casamento sim, mas o que for de afronta, eu recuso”. Então, significa que, mesmo aquela mulher que nós subestimamos, sabe o que ela quer, o que é bom e mau pra ela. Hoje, nós temos a plataforma política das mulheres, ongs, a rede contra a violência com base no gênero. Temos o comitê nacional contra práticas nefastas que tem à frente uma mulher.
O que nos falta, muitas vezes, é o lugar de encontro das mulheres. As mulheres não precisam ser todas parecidas para estarem na mesma frente de luta. Brancas, amarelas, pretas. Se a causa é da mulher, estamos juntas.
Catarinas – E quando se é mulher negra, os problemas enfrentados são maiores?
Maria Odete – Os problemas aumentam. Em Bissau, nós somos todas negras, o problema é que não estamos nas esferas de decisão, onde as leis são avaliadas e votadas. Estar nos lugares dos desembargadores e procuradores, de presidentes de institutos e diretores de universidades. Em Guiné Bissau, temos homens que recebem formação para ajudar nas famílias que sofrem violência. Então, isso já é muito bom. Já estamos evoluindo e mostrando que os grupos e associações não são só de mulheres. Os homens podem se sentar e falar dos filhos, da família, da escolarização das suas meninas e lutar contra a mutilação genital feminina, que é um flagelo, cria uma série de problemas porque são feitas de maneira muito precária. Então, nós puxamos os homens, no canto deles, nos seus clubes, mas nós é que damos formação.