“Como posso salvar meus filhos?”A pergunta perseguia Lilian Celiberti Rosas durante o trajeto entre Porto Alegre e Montevidéu em 1978, após ser levada à força ao país de origem. Camilo, de oito anos, e Francesca, de três, ficaram detidos por mais de quinze dias. O episódio político que foi denunciado pela imprensa e ficou conhecido como “o sequestro dos uruguaios” foi prova material das atrocidades da Operação Condor.

A atuação organizada dos governos militares abria as fronteiras dos países do Cone Sul para prisões políticas, perseguições e torturas nos países vizinhos. Lilian e os filhos sobreviveram ao regime que vitimou milhares de seus compatriotas naquele período – muitos deles, dentro do território brasileiro. Viveu na clandestinidade, sofreu prisão e tortura, mas não se calou. Com ela, vive a memória do período brutal da ditadura e a pressão para que os Estados latino-americanos reconheçam as mortes e prisões dos seus militantes.

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Quase quarenta anos depois, a ativista uruguaia integra o Centro de Comunicación Virginia Woolf e a organização Cotidiano Mujer. No Brasil para proferir conferência durante o 13º Congresso Mundos de Mulheres (MM) e Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 (FG), Lilian Celiberti concedeu esta entrevista exclusiva ao Portal Catarinas, em que fala da sua luta como ativista para salvar a vida de tantas outras filhas e filhos latino-americanos.

CATARINAS: Como as ações coordenadas dos governos de ditadura da América Latina influenciam a história destes países? De que maneira eles contribuíram para que chegássemos a este momento político?

LILIAN: As lutas contra as ditaduras do cone sul dos anos setenta a oitenta marcaram um antes e um depois no sentido da repressão, pela forma genocida que se deu com a prática de desaparecimento de pessoas. A democratização era um processo que abria a possibilidade da construção de formas alternativas. De alguma maneira, sentimos que hoje há formas violentas de repressão que estão centradas basicamente na destruição de nossos direitos. Não tem a mesma forma ditatorial em termos de organização política que os anos 70, mas são cruéis e atacam centralmente a sobrevivência humana e a sustentabilidade da vida em muitos aspectos. Creio que estamos voltando a viver momentos de medos coletivos que se expressam não pelo medo da tortura ou desaparição forçada, mas há expressões similares em termos de medo da exclusão, de perder trabalho, de ser criminalizado. É inacreditável para nós, que enfrentamos ditaduras, ver algumas das condições atrozes que estão voltando aos nossos países, como a perda de liberdades e direitos fundamentais. Mas os contextos das histórias são diversos e hoje há um contexto de crise civilizatória. Perdemos o sentido de como viver juntos.

CATARINAS: A condição das mulheres perseguidas e presas durante a ditadura, como foi o seu caso, guardava diferenças em comparação com os homens? Havia contornos machistas?

LILIAN: Sem dúvida. Poderíamos dizer que as formas de repressão eram diferentes. No Uruguai, havia uma política carcerária destinada à destruição emocional das presas, trabalhando basicamente sobre as identidades afetivas, os vínculos com as famílias, com os filhos e com o “lá fora”. Essa diferença precisou de quase 30 anos para ser denunciada porque rompe uma lógica da inviolabilidade do corpo e degrada a própria instituição militar. O aparato de estado utiliza o corpo das mulheres para destruir. Há histórias em toda parte do mundo, em lugares de ocupação. A violência contra o corpo das mulheres é universal. Em todas as guerras, em todas as situações de violência, a arma de destruição e de violação como instrumento de ocupação é o corpo, o território, este lugar que nos pertence de forma identitária, nossa primeira identidade. Então foi preciso muitos anos, não só no Uruguai mas também no Chile, na Argentina, para que a política pública de questionamento da violação dos direitos humanos propiciasse maiores atos de denúncia e empoderasse as mulheres para apresentar as denúncias da violação do seu corpo e utilização dele como arma de destruição.

Porque, na realidade, a violência sexual é sempre uma arma de destruição, um ataque à vida das outras pessoas e, através do corpo das mulheres, à toda a vida política.

Então, creio que sim, houve contextos específicos para as mulheres, em alguns casos, utilizando e desaparecendo com seus filhos. Pensemos que há um grupo de avós na Argentina que há 30, 40 anos, buscam seus netos e esta perseverança permitiu resgatar mais de 130 pessoas.

CATARINAS: A persistência das abuelas argentinas é fundamental para preservação da memória. Isso também acontece no Uruguai? Como o seu país trata esta memória dolorida, porém importante da ditadura?

LILIAN: Nós temos um ato anual que é talvez a maior expressão coletiva disso, onde mães e familiares convocam uma marcha de silêncio por verdade e justiça. Constituímos (esta marcha) por causa da impunidade que se dá no nosso país e ela cresceu como movimento de reivindicação da memória coletiva. É tão significativo e emocionante participar! É um silêncio total, onde a única coisa que se escuta é, quase ao final da marcha, os nomes de cada um dos desaparecidos. Todos as pessoas que participam dizem “presente”. Creio que é o momento mais emocionante que vivemos. É um grupo de mães e familiares que mantém essa radicalidade da luta pela impunidade. Somos solidários com essa causa para não esquecer o que aconteceu. E esta é uma razão que tem a ver com os afetos, com a humanidade, com os vínculos. Não há nenhuma racionalidade que possa dizer que isso é parte do passado. Muitas vezes com as mulheres ocorre que temos este grito de Antígona, não é? Este grito de dizer “quero enterrar o meu irmão e não me importa nenhuma razão de Estado porque é meu direito”. É uma lógica que mantém a memória como um campo de disputa com aqueles que querem nos fazer crer que aquilo já passou, que foi parte de outra história e buscam uma impunidade total frente aos repressores.

Roubaram crianças, violaram mulheres e homens, desapareceram com pessoas. Como povo, não podemos esquecer.

Foto: Catarinas/Dieine Gomez.

CATARINAS: Como você enxerga este momento de efervescência dos movimentos feministas na América Latina?

LILIAN: Todo momento político é precedido por outras mil lutas, acumulações, assembleias, grupos.  O”Ni Una Menos”, em que as ruas se encheram de gente, aconteceu no Peru, na Argentina (que iniciou o movimento), no Uruguai, no Brasil… É  como um chamado que catalisa uma constatação: algo vai muito mal no mundo para que morram tantas mulheres no marco de suas relações afetivas pessoais, emocionais, de casais ou ex-casais. Acredito que por trás disso tem um grito muito profundo, porque a maioria é um grupo muito significativo de mulheres vítimas de feminicídio. Elas morrem no momento em que terminam a relação afetiva e isso é uma masculinidade baseada numa relação de poder que não aceita o “não” como resposta. Então, se interpela a sociedade e a todos como gênero dizendo “o que se passa que os homens podem viver normalmente pelo mundo”?Se interpela o patriarcado. Não queremos mais impunidade aos ataques que se fazem com mulheres trans ou bulling com uma adolescente por ser lésbica. Que tipo de sociedade limita a liberdade das pessoas? Temos que recuperar a luta pela liberdade, e esta luta é a liberdade de ser, e isso implica em combater o racismo, o etnocentrismo, essa ideia de família que quer impedir toda a mudança e que esconde a violência contra as mulheres.

Famílias são as que constroem vínculos igualitários. Não aceitamos famílias autoritárias em que há violência.

Então, me parce que há uma emergência muito rica das mulheres, colocando o corpo na rua para não aceitar mais violências e para enfrentar os signos moralizadores que impedem a libertade de viver, de se ter um projeto, de se apaixonar. A perguta é: em que mundo vivemos? É este mundo que queremos? Porque se fala de violência dos que roubam, mas não da violência contra as mulheres e meninas, homossexuais, trans, do racismo institucionalizado…

CATARINAS: O Brasil vive um momento político de grande instabilidade política que iniciou com o impeachement da presidenta Dilma Rousseff. Que leitura você faz da situação brasileira?

LILIAN: Eu acredito que é terrível o que está acontecendo no Brasil. Basicamente, há a queixa da retirada de direitos elementares. A reforma trabalhista retira direitos conquistados há muito tempo, antes mesmo dos governos Lula e Dilma.

O que acontece hoje no Brasil é a expressão de formas fundamentalistas de impor a lógica do mercado, contraposta à lógica dos direitos, de regular as relações sociais desprotegendo as maiorias de subalternas e subalternos e, de alguma maneira, é uma chamado de atenção.

Outro dia, ouvia um reacionário uruguaio que dizia que a reforma do trabalho do Brasil é um chamado, dizia ele, de sua perspectiva,  para uma nova conformação de relações sociais. Na verdade, poderíamos lê-lo como uma nova conformação de relações sociais desprotegidas, é a renúncia do estado à proteção das pessoas, da vulnerabilidade social das pessoas e é deixar que o capitalismo avance e sobreviva.

Creio que a esperança é a vitalidade dos movimentos sociais. É um momento complexo, mas chegará um momento em que a força de indignadas e indignados poderá tomar outras vez as ruas, as consciências, as subjetividades e poderá expressar-se contra essa forma. Acredito que estamos vivendo um momento difícil na América Latina e, podemos dizer, no mundo, cercado de muitas incertezas. Temos que ser capazes de transformar essas incertezas e nos transformarmos em outras perspectivas. Somos ecodependentes e interdependentes, nos necessitamos mutuamente e precisamos criar outras relações de consumo e de vida cotidiana em nossas sociedades para fazê-las sustentáveis. Por isso, creio numa consígnia importante do feminismo que é preciso avançar na sustentabilidade, e isso interpela uma geração de homens que não cuidaram da vida. Agora se trata de redistribuir o cuidado, que é uma dimensão essencial da subjetividade. Se trata de compartilhar e equilibrar esse cuidado, com o meio ambiente, com a comunidade, porque a comunidade é o sustento de algumas propostas alternativas que poderão surgir.

CATARINAS: Vocês estão organizando o XIV Encontro Feminista Latinoamericano e Caribenho (Eflac), em Montevidéu, que acontece em novembro. Quais as expectativas para o encontro?

LILIAN: A maioria dos encontros feministas tem reunido entre 1500 a 1800 mulheres, que é o que se espera. Temos muitos coisas a fazer, mas pensamos que vamos chegar lá. O tema do encontro é “Diversas, mas não dispersas” para pensar em como gerar um espaço de relações políticas que não se faça como o que conhecemos como política, que é a lógica da competência, da discussão sobre o outro e todas aquelas práticas ruins a que nós, mulheres, resistimos. Pensamos que somos diversas, que temos diferentes opiniões políticas e apostamos em criar um espaço de encontro que permita resgatar, respeitar e reconhecer nossas diferenças, mas que se possa construir alianças, diálogos, encontros e possibilidades para fortalecer os feminismos como uma alternativa atual para a sustentabilidade da vida.

*Colaboraram Clarissa Peixoto e Dieine Gomez

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  • Ana Claudia Araujo

    Jornalista (UPF/RS), especialista em Políticas Públicas (Udesc/SC), mãe de ninja.

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