Por Amanda Regina Rosa, Catarina Duarte e Lívia Schumacher Corrêa. 

Passados mais de 12 anos da criação da Lei Maria da Penha, mecanismos legais continuam sendo propostos para que a proteção de mulheres vítimas de violência seja realmente efetivada no Brasil. O mais recente é o Projeto de Lei 3030/2015, aprovado em novembro pela Câmara dos Deputados, mas que ainda aguarda ser sanção presidencial. O texto versa sobre o aumento da pena de feminicídio caso o crime seja praticado em descumprimento de medida protetiva de urgência prevista pela Lei Maria da Penha.

Embora importantes marcos na luta contra a violência, a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio, de 2015, ainda se mostram insuficientes para modificar a realidade do País que possui a 5ª maior taxa de homicídios de mulheres do mundo (Mapa da Violência/2015)A desconsideração de especificidades importantes como a articulação entre gênero e raça é uma das lacunas das políticas atuais no contexto brasileiro.

Segundo dados do IPEA, entre 2003 e 2013 foi detectada uma redução de 9,8% nos casos de homicídio entre mulheres brancas. Em contrapartida, o número de homicídios entre mulheres negras apresentou um aumento de 54,2% no mesmo período. 

A violência de gênero é, segundo o Conselho Nacional de Justiça, a “violência sofrida pelo fato de se ser mulher, sem distinção de raça, classe social, religião, idade ou qualquer outra condição, produto de um sistema social que subordina o sexo feminino”.

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Teresa Kleba Lisboa, professora titular aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), pesquisadora do Instituto de Estudos de Gênero (IEG/UFSC) e do Núcleo de Estudos em Serviço Social e Relações de Gênero (DSS/UFSC) e integrante do Fórum Catarinense de Mulheres, aponta a complexidade desse conceito, que engloba não apenas a violência física.

“Para além da força física existem outros tipos de violência que se exercem por imposição social ou por pressão psicológica: a violência emocional, invisível, simbólica, econômica entre outras cujos efeitos produzem tanto ou mais danos que a ação física”, explica a pesquisadora, que é formada em Serviço Social e doutora em Sociologia. Assédio, tortura, violência sexual e assassinato – feminicídio – também estão entre as violências cometidas contra as mulheres.

Infográfico: Lívia Schumacher Corrêa

De acordo com o Mapa da Violência, de 2015, o Brasil tem uma taxa de 4,8 homicídios por 100 mil mulheres, a 5ª pior em um grupo de 83 países. A cada 7.2 segundos uma mulher é vítima de violência física, segundo dados do Instituto Maria da Penha.

“Há a naturalização da violência como uma forma de resolver conflitos, como uma forma de sociabilidade”, explica Raíssa Nothaft, doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC, enfatizando a violência como algo estrutural no país.

Dentro da perspectiva de gênero, um cenário padrão é identificado: em 80% dos casos, a violência é cometida por homens com vínculo afetivo às vítimas, conforme aponta a Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres. Além disso, situações como términos, ciúmes, traições, ou até mesmo a vestimenta da vítima são utilizados comumente pelos suspeitos para justificar os crimes. Cerca de 58% da população concorda parcial ou totalmente com a afirmação “se as mulheres soubessem se comportar, haveria menos estupros” (IPEA/2014).

O cenário demonstra como a violência contra as mulheres está relacionada com a visão social das mulheres como seres submissos, que são propriedades do masculino. “O poder e a dominação masculina estão profundamente arraigados no inconsciente coletivo das pessoas. Nas relações de poder existentes no interior das famílias e particularmente nas relações de intimidade, a violência se converte em uma ferramenta de poder e controle social para manter e perpetuar os interesses dos homens frente aos das mulheres”, comenta Teresa.

Embora não seja possível atribuir uma origem única às estatísticas alarmantes do Brasil, é possível compreender que esse problema se traduz, sobretudo, como uma manifestação intensa das desigualdades sociais, políticas, culturais e econômicas que foram sendo construídas ao longo da história do mundo e do país. O lugar dos homens e das mulheres foi estabelecido de forma desigual na sociedade, com papéis comportamentais e sexuais distinguidos entre os gêneros. “Aos homens são exigidos padrões comportamentais que requerem demonstração de força e de poder.. As mulheres, por sua vez, escutam desde pequenas que devem ser ‘submissas’, ‘recatadas’, ‘obedientes’, entre outros adjetivos impostos pela sociedade”, explica Teresa.

Além da violência e da desigualdade de gênero, outro problema estrutural da sociedade brasileira é o racismo. “O racismo objetifica e diminui o valor humano de mais da metade da população brasileira”, comenta Raíssa Jeanine Nothaft, que é pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre a Mulher e Gênero (NIEM/UFRGS) e do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Serviço Social e Relações de Gênero (NUSSERGE/UFSC).

A origem dessa desigualdade é histórica, associada sobretudo ao passado de colônia e escravidão, que instituiu a branquitude como superior. “O processo de colonização tem profunda relação com os tipos de violência que as mulheres negras sofrem no Brasil. A nossa identidade nacional tem origem nas violências sexuais perpetradas pelos homens brancos donos de escravos contra mulheres negras e indígenas, resultando em uma população miscigenada”, explica Teresa.

Até hoje, essa diferenciação é evidente com os dados da violência de gênero no país (veja acima).

“Os dados indicam como se criou uma política e como essa política não tinha o recorte e o olhar necessário para o racismo, e tu percebe que realmente é necessário um olhar específico e ver porque que essa política não está chegando na vida das mulheres negras”, enfatiza Raíssa.

12 anos da Lei Maria da Penha

Maria da Penha Maia Fernandes ficou paraplégica em 1983. Ela, que estava dormindo, levou um tiro na coluna, disparado pelo seu então marido. Depois do caso, Maria da Penha ainda foi mantida em cárcere privado e sofreu uma nova tentativa de assassinato. A condenação do responsável aconteceu apenas nove anos depois – e a pena, de oito anos, foi reduzida para dois com recursos jurídicos.

Em 1994, Maria da Penha publicou um livro para falar sobre a violência contra as mulheres e a sua trajetória e conseguiu chamar a atenção da Organização dos Estados Americanos (OEA), que pressionou o Brasil para criação de uma legislação sobre o assunto. Sua luta e história tornaram-se símbolo do combate e, em sua homenagem, a Lei Federal nº 11.340, aprovada em 2006, foi chamada de Lei Maria da Penha.

“Uma das grandes conquistas da Lei Maria da Penha é que a violência doméstica foi tipificada como ‘crime’, pois antes era considerada ‘menor potencial ofensivo’ com aplicação de penas pecuniárias: cestas básicas e multa”, explica a pesquisadora Teresa.

A Lei caracterizou cinco tipos de violência: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, cometidas no âmbito doméstico ou familiar, e estabeleceu a adoção de três medidas pelo Estado: prevenção, assistência e proteção às vítimas, e punição dos responsáveis. “A Lei Maria da Penha implementou no Brasil muitas políticas públicas que antes não estavam na nossa legislação, a própria possibilidade de trabalhar gênero veio muito a partir dela”, comenta Raíssa.

De acordo com pesquisa do Instituto Patrícia Galvão realizada em 2013, a Lei Maria da Penha é conhecida por 98% dos brasileiros e propiciou um aumento no debate público – sendo, inclusive, considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) uma das três mais avançadas leis de enfrentamento à violência contra as mulheres do mundo. Entretanto, os dados continuam evidenciando o problema.

Para Teresa, a Lei não supre as demandas por “falta de vontade política para priorizar a questão da violência contra as mulheres”, que repercute em problemas como falta de profissionais, estrutura física, recursos financeiros, e na ausência de articulação entre os serviços existentes.

Raíssa defende que a lei poderia ter avançado mais, trabalhando com a ideia de violência de gênero de uma forma mais ampla, não só vinculada ao âmbito doméstico e familiar. “É importante respeitar a história da lei, mas ao mesmo tempo tentar avançar naquilo que a gente já percebeu que ela não deu conta”.

O marco da lei que tipifica feminicídio

Um avanço que ocorreu nesse sentido foi a criação da Lei do Feminicídio. O conceito surgiu na década de 1970 com o fim de criar uma distinção entre a morte de mulheres baseada no gênero e os demais homicídios, buscando dar visibilidade ao crime em específico e ao seu significado, como resultado de uma discriminação, opressão e desigualdade sistemática – por definição, feminicídio é assassinar uma mulher por ela ser mulher.  

“Não são casos isolados ou episódicos, mas inseridos num continuum de violência que limita o desenvolvimento livre e saudável de meninas e mulheres”, explica Teresa, que considera feminicídio um fenômeno social e cultural.

No Brasil, o termo ganhou visibilidade a partir de 2015, com a criação da Lei Nº 13.104/2015, que alterou o Código Penal para prever o feminicídio como circunstância qualificadora de crime de homicídio e incluí-lo como crime hediondo, assim como estupro, genocídio e latrocínio, por exemplo. A lei considera feminicídio quando o crime envolver  violência doméstica e familiar ou menosprezo e discriminação à condição de mulher, e a pena prevista é de 12 a 30 anos de reclusão.

Em novembro de 2018, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 3030/2015, que prevê o aumento dessa pena, de um terço à metade, nos casos em que o feminicídio foi cometido em descumprimento às medidas protetivas de urgência previstas pela Lei Maria da Penha. A decisão aguarda, agora, sanção presidencial.

Com a criação da Lei Maria da Penha, muitos assassinatos que tiveram início com violência doméstica já eram julgados como crimes hediondos. Mesmo assim decidiu-se criar uma lei própria para o feminicídio pela importância de se tratar esses casos de forma específica, promovendo maior discussão na sociedade.

No entanto, a subnotificação deste crime ainda é recorrente, tanto pela pouca efetividade das investigações, que resultam na falta de esclarecimento de muitos casos e sua consequente não tipificação, quanto pelo desconhecimento ou mesmo resistência de muitas autoridades a respeito.

Em 2017, dois anos após a criação da Lei, três estados brasileiros ainda não apresentavam casos contabilizados, por exemplo.

Atendimento à mulher

Além das leis, existem outras entidades que fazem parte das políticas públicas de violência contra a mulher. São, entre outras, as Delegacias da Mulher, os Centros de Referência de Assistência Social e de Atendimento à Mulher, as Casas de Passagem/Abrigo, e as Defensorias Públicas da Mulher. Além disso, há a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, oferecido pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR) desde 2005. A Central é um serviço gratuito e anônimo, que funciona 24 horas todos os dias e que atua como disque-denúncia, além de orientar as mulheres sobre seus direitos e encaminhá-las para outros serviços, se necessário.

De acordo com balanço divulgado pela Secretaria, o Ligue 180 realizou, em 2016, 1.133.345 atendimentos. Desde março de 2018, o Disque 100 (Disque Direitos Humanos) foi integrado ao Ligue 180, promovendo o redirecionamento automático nos casos de violência contra mulher, com o intuito de agilizar esses atendimentos.

“Toda a mulher em situação de violência que procura atendimento especializado espera ser atendida por uma equipe de técnicos preparados, ou seja, capacitados e com sensibilidade para atuar na área da violência”, explica Teresa. As mulheres costumam ter vergonha e dificuldade para falar, e, por isso, é necessário profissionais dispostos a acolhê-las com respeito. No entanto, nem sempre é o que ocorre. Tentativas de culpabilizar, desacreditar a mulher e revitimizá-la – isto é, fazê-la sofrer uma nova violência, institucional, ao ser obrigada a repetir diversas vezes o relato da agressão que sofreu e ao não ser acolhida respeitosamente – são as práticas problemáticas mais recorrentes.

Roberta de Souza* relata que não foi tratada como gostaria na Delegacia da Mulher de Florianópolis. Durante o feriado de finados, em novembro, ela acompanhou a vizinha à Delegacia, após o ex-marido da conhecida tê-la agredido em casa. Ao chegarem, conta que a funcionária que estava no plantão do dia foi pouco cordial: “Ela atendeu a gente imediatamente após a chegada. Já estávamos há uns cinco minutos conversando, aí eu perguntei: ‘a gente não pode sentar?’ E a funcionária disse: ‘não'”.

Roberta, que já tinha outra experiência com o serviço por conta de uma ocorrência envolvendo sua filha mais nova, relata que, da vez anterior, o atendimento foi melhor. Na situação mais recente, ela diz que “a moça sequer cumprimentou. Não perguntou pra minha vizinha: ‘a senhora está bem?’. No final, quem estendeu a mão fui eu”. Ela acredita que o Boletim de Ocorrência só foi registrado durante o feriado, e não depois, porque sua vizinha era “esclarecida”, sabia dos seus direitos e indagou a funcionária até conseguir o B.O. Se não, ela acha que o procedimento teria sido deixado pra depois.

Em Florianópolis, a Delegacia de Proteção à Mulher funciona em conjunto ao atendimento a idosos e adolescentes. A 6º DP, localizada no bairro Agronômica, faz o acolhimento a vítimas de crimes contra a pessoa, previstos no Código Penal. O registro de Boletim de Ocorrência é feito após a vítima prestar depoimento e, caso seja necessário, realizar o exame de corpo de delito no Instituto Geral de Perícias. Segundo o delegado titular Paulo de Deus, os profissionais que trabalham na 6ª DP não recebem treinamento especial para exercerem suas funções, apenas cursos temáticos e esporádicos ofertados pela Academia de Polícia Civil.

“A gente não tem como treinar todos ao mesmo tempo. Selecionamos alguns e esses são obrigados a ir [nos cursos]”, explica.

As Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, como a de Florianópolis, são unidades específicas da Polícia Civil. Elas são responsáveis por ações de acolhimento e proteção às vítimas, pelo recebimento de denúncias e pela investigação dos crimes. Contudo, apesar dessas Delegacias existirem desde 1985, sendo uma das medidas mais antigas na área de proteção à mulher, elas estão presentes em menos de 10% das cidades brasileiras, de acordo com pesquisa realizada pelo portal AzMina em 2016.

O estado de Roraima, por exemplo, possui somente 1 unidade para atender toda a população, mesmo sendo o estado com a maior taxa de homicídios de mulheres por agressão do país, de acordo com o Atlas da Violência 2017 do Ipea.

Das Delegacias que, de fato, funcionam, poucas fazem atendimento 24 horas por dia.  Em Florianópolis, os registros de B.O. operam sem parar, mas o acolhimento das vítimas com psicólogos funcionam das 12 às 19h. Já os pedidos de medida protetiva podem ser feitos das 8h às 19h em dias de semana, segundo o delegado Paulo. Fora deste horário, a vítima deve procurar a Central de Plantão, que fica no prédio da 5ª Delegacia de Polícia, no centro da cidade.

Para Raíssa, o país tem muitas políticas públicas boas e efetivas, mas elas não são suficientes. Nesse sentido, uma das questões mais discutidas é o papel da educação dentro desse combate. “Tem muita disputa política que envolve isso, muitas coisas que estão tentando fazer mas que a gente percebe uma grande resistência, e acho que nesse campo uma das áreas mais importantes, que seria a da educação, é onde se tem uma maior disputa, onde a gente não conseguiu avançar”, comenta.

A atual discussão sobre a proibição da utilização do termo gênero nas escolas é vista por muitos especialistas como um dos problemas nessa área, pois dificultaria o debate já escasso sobre desigualdade e violência de gênero. “As políticas de prevenção, começando pelas Escolas, são essenciais, pois tem como objetivo a mudança dos valores que regem a cultura machista que ainda prevalece na nossa sociedade. Um grande número de pessoas ainda considera a violência contra as mulheres algo natural ou normal”, explica Teresa.

Em sua pesquisa de doutorado, Raíssa vem estudando uma iniciativa educativa que envolve diretamente os autores da violência. São encontros periódicos que buscam a conscientização ao trabalhar temáticas como emoções, comunicação e leis, com apoio de profissionais da Psicologia, Pedagogia e Serviço Social.

“Esses serviços funcionam com base na ideia de que se isso não for trabalhado com os autores da violência, eles não vão deixar de cometê-las”, explica Raíssa.

No Brasil, existem cerca de 30 serviços semelhantes, que são, em geral, vinculados à Justiça, mas também recebem por demanda espontânea. “Dentre as políticas que existem hoje no país, eu acho que é uma das com mais possibilidades de transformação, além das direcionadas às mulheres”, comenta.

* Roberta de Souza é um nome fictício, utilizado para preservar a identidade da entrevistada.

** O texto foi originalmente produzido como trabalho final para a disciplina de Jornalismo e Gênero, do curso de Jornalismo da UFSC

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