João Pedro, George Floyd, Miguel, Ágatha, Evaldo, Cláudia, Amarildo, Marielle, Bianca, Pedro, Ana Carolina, Roberto, Carlos, Cleiton, Wesley, Wilton, Kauê, Luana,  Rodrigo, Marcos, David, Everton. 22 pessoas negras assassinadas, que apareceram nas mídias nos últimos dois anos. Contudo, infelizmente sabemos que não são apenas essas pessoas. São milhares de pessoas negras que são mortas pelo racismo, no Brasil e no Mundo.

Tenho vontade de dizer, ao passo que tenho vontade de calar! É contraditório, mas é como me sinto, hoje. A vontade de calar, é para ver se a dor diminui. Por outro lado, tenho vontade de falar sobre uma mensagem que recebi esses dias, dizendo que eu parecia racista, porque eu só falo sobre mulheres negras, e não sobre todas as mulheres; tenho vontade de gritar, dizer que quando eu peço Uber, se há uma mulher loira ao meu lado, ele tende a parar em frente à mulher loira; que quando estou em uma copa, pessoas brancas pedem que eu sirva o café. Não é fácil falar de racismo. Não mesmo. Ainda mais quando se é preta e mora numa periferia.

Em 2019, no meu bairro, um rapaz negro de vinte e poucos anos voltava sozinho da casa da namorada e foi executado com quatro tiros por um policial. Sem voz de comando, sem batida, sem aferição de documentos, sem saber o nome. Quatro tiros! Direto! A mãe dele ainda não se recuperou do choque. A família diz que ela não é mais a mesma. Nem teria como ser. Deixou uma pensão para a filha, pois era trabalhador e tinha contrato CLT.

Isto posto, não tem como não falar de maternidade negra, nos dias atuais sem se sensibilizar, sem se comover ou juntar força com essas mulheres, que assim como seus filhos são vítimas de um estado genocida. Essas mães que perdem seus companheiros, perdem seus filhos não serão nunca mais a mesma pessoa. Infelizmente essa é a nossa triste realidade. É por isso que  nós, mulheres negras, discutimos o genocídio da população negra na perspectiva da Justiça Reprodutiva. Uma justiça social na perspectiva de gênero. E essa luta é constante, importante, pois a violação da nossa maternidade é diária.

Em plena pandemia, dona Mirtes não foi liberada de um serviço não essencial. Sem ter onde deixar o filho, o pequeno Miguel, o levou para o trabalho. Onde, como sabemos, seu filho negligenciado, deixado à própria sorte, caiu do 9º andar ao tentar encontrar a mãe. Na perspectiva da Justiça Reprodutiva, dona Mirtes não teve condições de ter uma maternidade digna, pois foi impedida de gozar a segurança para ver seu filho crescer.

Nesta perspectiva, a Justiça Reprodutiva engloba todas as fases da vida sexual e reprodutiva da mulher: não ser violada; ter acesso à saúde integral da mulher e orientação de planejamento familiar; escolher ser mãe, ou não; estando grávida, ter um bom pré-natal; não sofrer violência obstétrica; ter uma boa assistência pediátrica; educação para os filhos e vê-los crescer!

Em todas essas esferas, as mulheres negras são as que mais sofrem violência. Na cidade de São Paulo, em 2018, o número de meninas de até 19 anos grávidas era 65% maior entre as meninas negras. Em relação ao pré-natal e parto, as mulheres negras morrem duas vezes mais que as não negras, segundo Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), em 2016. Segundo a Unicef, o impacto do racismo na infância é alarmante:

“Vinte e seis milhões de crianças e adolescentes brasileiros vivem em famílias pobres. Representam 45,6% do total de crianças e adolescentes do País. Desses, 17 milhões são negros. Entre as crianças brancas, a pobreza atinge 32,9%; entre as crianças negras, 56%. A iniquidade racial na pobreza entre crianças continua mantendo-se nos mesmos patamares: uma criança negra tem 70% mais risco de ser pobre do que uma criança branca”, aponta o relatório “O impacto do racismo na infância”, elaborado pela Unicef.

Conforme analisa o portal Géledes, o racismo explica 80% das causas de morte de negros no país. No Brasil, a chance de um negro ser assassinado é 132% maior do que um branco.  E este, é um breve levantamento que fiz sobre cada um dos pontos que citei em relação à Justiça Reprodutiva.

Vocês conseguem enxergar a amplitude e a importância desta discussão? Mães pretas são as que criam filhos das patroas, e deixam seus filhos em casa, às vezes com apenas uma refeição ao dia. Também são elas as que mais morrem e as que mais veem seus filhos morrerem. No caso da dona Mirtes, é sabido por todos que estamos em uma pandemia, onde o isolamento é o mais indicado para a contenção do coronavírus, pois ainda não temos vacina. Contudo, por que passear com os cachorros da patroa era tão mais importante que ficar em sua casa, com seu filho? Isso é herança da escravização de mulheres, na qual as negras são vistas apenas como aquela que serve, não como uma pessoa que merece proteção.

Devemos lembrar, também, que a primeira pessoa a morrer no Brasil por corona vírus, foi dona Cleonice Gonçalves, que cuidou da patroa com Covid-19, recém chegada da Europa. Ela morreu mesmo sem ter pisado na Europa, a patroa se recuperou.  Sim, as mulheres negras, além de não verem seus filhos crescerem, também são as que mais morrem por feminicídio e por causa de pobreza.

Em uma entrevista, dona Mirtes disse que: “Ela [patroa/empregadora] confiava os filhos dela a mim e para minha mãe. O momento que confiei meu filho a ela, infelizmente, ela não teve paciência para cuidar.”. Certa vez, em uma palestra que fui convidada, eu dizia que: “as mães pretas (como bem disse Lélia Gonzáles), amamentavam os filhos dos brancos, enquanto os seus passavam fome”. É triste dizer, mas nada mudou, desde então. Já vemos o que aconteceu com o pequeno Miguel.

Nós, mulheres negras, cuidamos dos filhos das patroas, enquanto os nossos são negligenciados, por quem diz que somos quase “da família”.

Nós estamos gritando por justiça, há séculos. Desde quando as mulheres negras abortavam seus filhos, para que eles não fossem escravos. Passando pela luta de mulheres anti esterilização compulsória e, agora, lutando contra o genocídio da nossa população pela violência do Estado. Nos idos dos anos 1990, por meio da luta das mulheres e principalmente das mulheres negras – que eram as mais atingidas- ocorreu a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da laqueadura involuntária. A CPMI constatou a incidência de esterilização em massa de mulheres, no Brasil. Houve uma grande mobilização feminista. Grandes nomes de mulheres negras, como Edna Rolland, foram ouvidas e a conclusão apontou para um uso indevido e eleitoreiro das laqueaduras em partes extremamente pobres. Muitos depoimentos davam conta de que havia uma ideia de que essas medidas eram necessárias para diminuir o número de pobres. Essa postura eugênica, de limpeza racial, parte de teorias criadas no final do século 19 e início do século 20, quando acreditava que o Brasil deveria ser mais branco e menos “degenerado” – lembrando que os degenerados eram sempre pessoas negras, sobretudo.

Mas parece que toda essa luta é ignorada e desrespeitada pelo Estado brasileiro. Em 2017, Janaína Aparecida Querino, 36 anos, foi compulsoriamente laqueada a pedido do Ministério Público, contra a sua vontade. Um absurdo! Uma mulher negra, pobre e que estava em situação de encarceramento, teve sua vida decidida por um promotor e por um juiz. Há de se convir, que o Estado não pode interferir na vida de pessoas, em suas escolhas pessoais. Será que fariam isso com uma pessoa branca e rica, mesmo que também tivesse oito filhos? Só olhar as famílias reais, brancas, cada bebê é motivo de alegria e louvor. Será que vidas pretas realmente importam?

É necessário dizer, ainda, que não há como falar de Justiça Reprodutiva, sem falar das Mães de Maio. Um dos maiores exemplos de luta por Justiça Reprodutiva para mulheres negras. Um grupo de mães que se juntou por conta das chacinas de maio de 2006, na qual 493 pessoas morreram e das quais, 400 eram negras. Os crimes de maio foram resultado de uma exagerada violência de Estado. Essas mães buscam justiça, verdade e preservar a memória de todas essas pessoas assassinadas por um Estado que é racista e violento, por isso, sempre tem por alvo corpos negros.

Essas mães tiveram seus filhos mortos e sua maternidade injustiçada. Buscando força não se sabe de onde, essas mulheres seguem na luta, para que todas nós mulheres negras não tenhamos mais que passar por isso.

Para as mães negras que não estão nessas estatísticas, é triste e dura a realidade, pois não sabem se seus filhos voltarão vivos da escola, do parque, da casa da namorada. Ou ainda, se não serão alvejados no quintal de casa ou no transporte público. Ao mesmo passo que hashtags #justiçapormiguel tomam as redes, outras milhares de #GeorgeFloydChallenge alcançam os trend topics. Nesta onda antirracista que tem tomado as redes sociais, se faz necessário que estas histórias sejam contadas. Não basta não ser racista, tem que ser antirracista. E nesta onda antirracista a luta por Justiça Reprodutiva, urge! Luta que está presente na vida das mulheres negras há séculos! Esta é a base da construção de uma sociedade antirracista: justiça para as mães pretas e seu povo!

*Simony dos Anjos é mãe do Bernardo e da Nina. Doutoranda em Antropologia na USP. É evangélica, cientista social, mestre em educação e curadora da Coluna Féministas, no portal de notícias Justificando.com, espaço no qual mulheres discutem a relação entre fé, gênero, raça e política. É integrante do Coletivo Evangélicas Pela Igualdade de Gênero, da Rede de Mulheres Negras Evangélicas e filiada ao PSOL/Osasco.

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  • Simony dos Anjos

    Antropóloga e doutoranda da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Integrante da Rede de Mulh...

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