Nascida e criada na Terra Indígena Ocoy, em São Miguel do Iguaçu, em uma área que hoje pertence a Hidrelétrica de Itaipu, Oeste do Paraná, a jovem perdeu sua vida.

No dia 11 de julho, uma jovem indígena Avá-Guarani, de 13 anos, foi encontrada morta. A família relata que a menina conversou com a mãe e contou que havia sofrido violência sexual dentro da Terra Indígena Ocoy e que, por esse motivo, tinha a intenção de tirar a própria vida.

O exame de corpo de delito não foi realizado pelo Instituto Médico Legal (IML), pois a família da menina não solicitou tais exames. Segundo informações, o motivo seria uma regra cultural, onde a família deveria se reportar primeiro ao cacique local para depois dar encaminhamento formal à denúncia. Os familiares conhecem os agressores, há testemunhas que assistiram um vídeo do crime gravado pelos próprios agressores e que estaria circulando pelas redes sociais.

De acordo com relatos da família, a jovem caiu em uma emboscada armada por jovens usuários de drogas que vivem há pouco tempo na Terra Indígena Ocoy. Eles a teriam convidado para escolher roupas que estariam dentro de uma casa, em um dos cômodos, local onde os ataques teriam sido cometidos e gravados por ao menos dois homens. Um dos irmãos do atual representante do povo, o cacique, estaria envolvido no crime. 

Na sexta-feira (6/8) pela manhã um investigador da Polícia Civil foi até a TI Ocoy e a denúncia formal foi feita ao Ministério Público à tarde. Segundo a advogada, Natália Peres, a polícia está com inquérito aberto e deve encaminhar à Justiça se houver entendimento de que o suicídio tem como causa um estupro. A família ainda não recebeu apoio do atual cacique na denúncia. 

Segundo a advogada, que também é jornalista e trabalhou por muitos anos com notícias na região, mesmo sendo atestado o suicídio, não tira a responsabilidade dos atores que contribuíram para que a jovem perdesse a sua vida, pois “não tira a responsabilidade de quem a levou ao ato”, diz Natália. O estupro e a gravação do vídeo podem ter levado a jovem a cometer o suicídio.

A advogada que está acompanhando o caso representa mais de 540 indígenas da região em uma ação de indenização contra a Hidrelétrica de Itaipu. Segundo ela, a área de fronteira é conhecida por ser rota internacional do tráfico de drogas e acaba atingindo uma parte desses jovens.

A família busca a justiça para que os responsáveis sejam penalizados

A família busca alguma reparação para que os responsáveis sejam penalizados, pois a jovem era especial para a família, acompanhava o pai nas rezas e benzeduras, tinha aprendizados de valor inestimável para a tradição Guarani.

“Ela era uma pessoa boa, dormia com a irmã porque tinham quase a mesma idade, a mãe era uma amiga para ela. Uma joia dentro de casa. Ela tinha o dom da cura, não era qualquer menina, ela acompanhava as rezas. É uma grande perda. Está sendo muito difícil”, lamenta o pai. 

Segundo os relatos do pai, Simão Vilialva, 56 anos, que foi cacique por muitos anos e é integrante da Comissão da Verdade no estado do Paraná, outros casos como esse podem ter acontecidos, crimes que estão sendo praticados nas Terras Indígenas e precisam ser investigados, pois estão em desacordo com a cultura do povo.

“Tem um grupinho de usuários de drogas. Já aconteceram várias coisas aqui e ninguém fala nada. Eu não estou mexendo com ninguém, não incomodo ninguém, nem minha família. Era uma menina muito boa, não saia pro baile, não saia pro campo, andava sempre junto com a mãe, e aconteceu isso. Eu sempre falei para ela se cuidar, mas ela era uma menina simples e pensava que não iria acontecer nada com ela”, lembra Simão dos conselhos à filha.

A família está reunindo forças para dar continuidade formal às denúncias e o prosseguimento da investigação. O pai, Simão, apoiado pela família, está buscando apoio de lideranças indígenas locais para que os crimes dentro das Terras Indígenas sejam punidos perante à lei, que deve ser aplicada a todos, sem distinção, após os encaminhamentos culturais, de acordo com as regras do povo.

A realidade dos Avá-Guarani no Oeste do Paraná

Em razão do processo de colonização europeia no território e das interferências dos projetos do Estado, há muitas camadas de violência que atravessam o cotidiano dos Povos Indígenas na atualidade. Por esses motivos, reivindicam o seu direito originário ao acesso à terra assegurado pela Constituição Federal de 1988. A luta pela terra se tornou um ponto central no cotidiano desses povos. 

Uma das interferências do Estado nas terras indígenas foi a construção da hidrelétrica de Itaipu, que alagou parte deste território, inaugurada em 1984. Esse projeto binacional entre os governos do Brasil e Paraguai, planejou expulsar os indígenas de suas terras, realocando algumas famílias em outras áreas adquiridas por meio da compra. 

Muitas famílias Guarani não foram indenizadas até hoje, quase 40 anos depois, e vivem em uma situação de vulnerabilidade, em áreas de alagamento da usina, um espaço precário e sem as condições necessárias para a continuidade ao modo de vida Guarani.

O território tradicional do Povo Guarani é extenso e compreende uma vasta área entre o Uruguai, Paraguai, Argentina, Bolívia, e, no Brasil, nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Mato Grosso do Sul.

Os impactos da construção de Itaipu

Segundo dados do CIMI, na região há Terras Indígenas como Terra Roxa, com 25 aldeias, chamadas pelos Guarani de “tekoá”, e Guaíra com 15 aldeias. Em uma região vizinha de Diamante do Oeste, estão sendo registrados os maiores índices de suicídio de jovens indígenas. E há áreas de acampamento como em Santa Helena, Itaipulândia e São Miguel do Iguaçu, onde está localizado tekoá Ocoy.

Integrante do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) da Regional Sul, Osmarina de Oliveira, acompanha de perto a trajetória de muitas dessas famílias indígenas na região. Ela relata que o governo do estado do Paraná, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) assentaram indevidamente famílias não indígenas nas terras Guarani.

“No Oeste do Paraná a gente tem uma realidade, com a construção da hidrelétrica de Itaipu, onde esse povo foi desterrado, e até hoje eles não foram indenizados ou reparados por qualquer instituição, seja a Itaipu, que alagou as suas terras tradicionais, alagou inclusive os cemitérios tradicionais, seja pelo governo do estado do Paraná, que fez a colonização em cima das terras dos Avá-Guarani, também pelo INCRA e FUNAI que assentaram famílias de não indígenas em cima das terras indígenas, ilegalmente”, relata a missionária.

A falta de terras para que os Povos Indígenas possam viver o seu modo de vida em comunidade traz inúmeras consequências irreparáveis. Muitas das terras não garantem a sobrevivência por gerações como é de costume do povo. De acordo com a representante do CIMI, é um processo contínuo de violência que pode estar resultando em mais violência.

“Mesmo as terras que a Itaipu comprou, que a FUNAI comprou, elas não são terras que garantem a sobrevivência física e cultural desse povo conforme determina a legislação, a Constituição Federal. Então eles estão espremidos nesses locais. Estão nessa situação, vivendo em barracos de lona, sem moradias adequadas, sem perspectiva de futuro. Os jovens vão construir a sua família em que espaço? Onde vai construir a sua casa, a sua vida se não tem terra suficiente nem para os que estão agora? Então essa falta de perspectiva de futuro devido a essa falta de regularização fundiária é o que está levando a esses casos de suicídio. É uma violência o que eles estão sofrendo”, analisa.

Não queremos mais um crime impune! 

O caso da jovem Avá-Guarani revela que o suposto suicídio pode ter uma relação direta com as violências que sofreu na semana anterior à morte. As provas do estupro estão sendo coletadas por meio dos depoimentos da família. A equipe do Portal Catarinas irá acompanhar o desfecho da denúncia.

Um ponto que consideramos importante e ressaltamos aqui é a coletividade tradicional Guarani. Com a vacinação contra a COVID-19 sendo prioridade para os Povos Indígenas, muitos dos encontros coletivos e rituais culturais voltarão a ser realizados, contribuindo para o diálogo entre gerações e o fortalecimento da trajetória dos jovens dentro de suas comunidades.

De acordo com o artigo intitulado Suicídio e Povos Indígenas Brasileiros (2020), os principais fatores de risco identificados foram pobreza, fatores históricos e culturais, baixos indicadores de bem estar, desintegração das famílias, vulnerabilidade social e falta de sentido de vida e futuro. “Todos os estudos indicaram a necessidade de desenvolvimento de estratégias em conjunto com as comunidades, considerando sua cosmovisão e os aspectos sócio-histórico-culturais de cada etnia, para minimização dos fatores de risco e redução da taxa de suicídio”, conclui o documento.

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  • Vandreza Amante

    Jornalista feminista, antirracista e descolonial atua com foco nos olhares das mulheres indígenas. A cada dia se descobr...

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