Aline de Campos construiu a obra durante trabalho de conclusão de curso em jornalismo, no qual buscou entender a solidão do corpo negro.

“Todos os olhos em mim: a presença do racismo nos relacionamentos inter-raciais”, lançado em abril pela Quintal Edições, é resultado de um trabalho de conclusão de curso em jornalismo e reúne diferentes passagens e histórias de pessoas ouvidas para a construção da obra. Aline de Campos, jornalista e autora, indica o livro, especialmente para as pessoas que não compreendem a importância da discussão sobre raça no país. “A não intenção não caracteriza isenção. Então, se você ainda acha que discutir racismo é ‘mimimi’, esse livro é para você”, afirma.

A escrita do livro aconteceu depois de muitas conversas com um colega de faculdade sobre a solidão do corpo negro. “Aliando a busca por informações sobre o assunto e analisando as relações amorosas em minha própria família – em maioria, as mulheres da minha família não são brancas, mas também não são lidas socialmente como negras pela pele clara e muitas delas casaram-se com homens negros – , surgiu a ideia de estudar relacionamentos inter-raciais”, contou. 

No entanto, o processo de pesquisa e escrita não foi fácil para a autora, sobretudo pelos relatos ouvidos. “Me tiravam o sono. Olhava pro meu filho, que é uma criança negra, relembrava situações racistas, e só pensava em como através das palavras passar o sentimento dos entrevistados. Meu objetivo era trazer as sensações que falassem por eles mesmos”, diz. 

Já a inspiração para o título, conforme nos conta Aline, veio de uma canção do rapper mineiro Djonga e também do rapper Tupac. Ao final da música “10/10”, Djonga recita a carta de Tupac à Madonna, sobre as dificuldades raciais na relação deles. “Imediatamente, me veio à cabeça a frase mais divulgada de Tupac “All eyes on me” (todos os olhos em mim), que é título de uma música bastante conhecida dele. Por mais que o contexto seja diferente (o rapper fala de violência policial, dificuldades no gueto, perseguição), a frase por si só diz muito sobre a presença de corpos pretos nos espaços”, explica. 

A obra propõe também um diálogo com diferentes intelectuais racializadas/os, como Lélia Gonzalez, bell hooks, Angela Davis, Carla Akotirene, Abdias Nascimento, Neusa Sousa Santos, entre outros. “Tive um encontro muito bonito com intelectuais negros. Um encontro de pensamentos mesmo. É comum o resgate ancestral e cultural nos textos de autores negros e isso permeou um caminho, felizmente sem volta, para minhas pesquisas. No livro, trago autoras que venho trabalhando nos últimos anos e conceitos fundamentais para se pensar a sociedade atual. Ler essas mulheres mudou minha vida”, avalia Aline.

Foto: reprodução

Confira a entrevista que fizemos com Aline de Campos:

De que forma esse tema chegou para você na sua experiência como mulher negra? Como a questão é abordada no campo do jornalismo?
Passa pelo meu descobrimento, minha própria identificação e da minha família. Até ingressar na universidade, não tinha o entendimento de que ser “parda” me fazia uma mulher negra, mesmo tendo convivido em ambientes majoritariamente pretos. Sempre estive ligada à música e cultura preta. Trocando experiências com um amigo, cheguei ao tema e analisando as relações familiares, cheguei ao tema.

Não acredito que o assunto é uma pauta presente no jornalismo de grandes mídias, por isso a importância de mídias pretas independentes.

Podes me contar sobre o livro? Quanto tempo você teve para escrevê-lo?
Tive um semestre para colher as entrevistas e desenvolver o livro. Desde o início já tinha em mente que queria iniciar os capítulos por uma palavra que representasse cada história. Na edição que foi publicada inclui debates teóricos que se relacionavam com os relatos. Entrevistei jovens negros, héteros, homossexuais e bissexuais. As entrevistas trazem uma perspectiva cisgênero de pessoas em idades de construção de seu futuro.

Para você, qual a importância de escrever sobre racismo nas relações inter-raciais e, com isso, poder oferecer mais uma obra desse gênero para quem está se interessando sobre o assunto?
É fundamental discutir as relações raciais no Brasil. É inacreditável que, ainda hoje, as pessoas pensem que o racismo foi superado. Nas relações amorosas, as questões de autoestima e a influência de estereótipos são muito presentes, e vi nesse campo um caminho para discutir a construção do corpo preto na mídia, já que foi um trabalho em jornalismo.

Você acredita que o tema ainda é pouco discutido?
Sim. Claro que, hoje, temos acesso à mais conteúdos sobre o tema, entretanto, ainda existe um aspecto que muito incomoda e é pouco veiculado. Os conteúdos midiáticos procuram formar casais inter-raciais para mostrar essa tal superação do racismo, mas enquanto for possível contar quantos corpos pretos estão presentes em determinados espaços e a forma caricata que se dá essas representações significa que temos muito caminho pela frente.

Conforme a sua pesquisa, como se caracterizam os relacionamentos inter-raciais,  que violências são mais frequentes e de que forma marcam as pessoas que estão envolvidas? De que maneira a naturalização ou sociabilização da opressão racial aparece nos relatos?
As relações raciais em geral se dão em uma disputa de poder. Quando falamos de relações amorosas, trata-se do poder de quem escolheu e de quem é escolhido.

A identidade preta é violentada de muitas maneiras, a não aceitação do seu próprio Eu, o desconforto em determinados lugares, a objetificação que sofrem, a exclusão e a resistência estão sempre presentes nessa vivência. E, aqui, falo de uma resistência que também é interna.

Há uma perspectiva de que seguir a vida sem olhar para o racismo facilita o convívio social, o que além de naturalização leva pessoas negras à marcas emocionais.

Você poderia citar alguns pontos das narrativas propostas por essas intelectuais negras para lidar com a questão?
O livro, para além de formas de lidar, traz vozes que compartilham experiências de amor e dor. Os intelectuais presentes vêm ao encontro disso e tratam do reconhecimento dessas situações que causam sofrimento. Essa composição leva a debates sobre construção de estereótipos, autoestima, autocuidado e que o processo de autoamor dita a forma pela qual amaremos um outro, por exemplo.

Que outras descobertas você teve e como pretende aplicá-las no seu campo profissional?
Já se sabe que as mulheres negras estão frente a uma encruzilhada de opressões e este trabalho afirma isso. A relação representatividade versus representação foi um achado na pesquisa para compreendermos de que modo estão sendo criados símbolos pretos e quais os impactos para estes corpos. Um outro fator que chamou minha atenção é a trajetória dos entrevistados até o reconhecimento de suas dores e a busca por curá-las.

Hoje, trabalho e estudo o campo político e tenho investigado a trajetória de mulheres negras que as levou até uma trajetória na política institucional, especificamente na Câmara Municipal de São Paulo. Pretendo me aprofundar na atuação de corpos pretos na política, justamente por entender que este é um dos caminhos importantes para a quebra da estrutura cis-hetero-racista.

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