A cientista social e antropóloga Rosana Pinheiro-Machado é uma das principais analistas do fenômeno que garantiu a chegada à presidência de Jair Messias Bolsonaro. A pesquisadora feminista e professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) que, desde 2016, acompanha a emergência e disseminação popular do atual presidente do Brasil é uma das vozes que alerta para as contradições em um eleitorado difuso e a incapacidade de articulação para manutenção de uma base de apoio formada por demandas de diferentes segmentos da população. Para Rosana Pinheiro-Machado, a nova configuração política do Brasil não será baseada na tradicional polarização entre direita e esquerda, mas entre “homens brancos do patriarcado e mulheres negras e LGBTs”.
Esta semana, esteve em Florianópolis, onde ministrou a aula inaugural “Da esperança ao ódio – a ascensão da subjetividade conservadora no Brasil”, do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Antes do evento, a pesquisadora concedeu entrevista conjunta ao Catarinas, Núcleo de Audiovisual e de Comunicação (Nuvem) do CFH e a Agência de Comunicação da universidade (Agecom). Na conversa, a pesquisadora avalia que a atual conjuntura desenha a possibilidade dos atores de centro-direita retomarem o poder político no Brasil.
Rosana retornou recentemente dos Estados Unidos, onde lecionou 35 palestras em 26 universidades norte-americanas, apresentando a comunidade acadêmica internacional alguns dos resultados de sua pesquisa sobre a chegada ao poder da extrema-direita e também comenta a importância da figura de Marielle Franco como um símbolo de resistência internacional.
Nuvem – Nos últimos dois ou três anos, seu trabalho surgiu como uma resposta para situações que estamos vivendo e que pegaram muitas pessoas de surpresa. Como foi o despertar para estas questões?
Rosane – Minha trajetória é de estudo e etnografia de grupos populares em Porto Alegre, [no Rio Grande do Sul]. Fiz minha tese, de 1999 a 2007, sobre o consumo de produtos de marca e falsificados de grupos populares [as análises estão publicadas no livro Made In China – (in) formalidade, pirataria e redes sociais na rota China-Paraguai-Brasil, da editora Hucitec]. Posteriormente, comecei uma pesquisa com a professora Lucia Scalco, sobre consumo e classe popular, um desdobramento da minha pesquisa. Começamos a estudar consumo popular na periferia de Porto Alegre, de 2009 até 2014. Pegamos o auge do lulismo, do consumo, quando esse tema foi se tornando um dos mais discutidos nas Ciências Sociais brasileiras, com o debate da nova classe média, a classe C e chegamos aos rolezinhos, que eram a contradição do processo, a inclusão de jovens via shopping center e toda a discussão sobre a natureza política dos rolezinhos.
Dois anos, depois a juventude ocupou as escolas no Brasil. Em Porto Alegre, as ocupações secundaristas foram muito grandes e a nossa pergunta naquele momento foi: aqueles meninos rolezeiros que tínhamos conhecido estavam participando das ocupações? Voltamos para o campo em 2016 e a geração do Lula fez a virada à direita. Chegamos em 2016 e a meninada toda já era fã do Bolsonaro,ele já era “bolsomito”. E começamos a ver que havia um fenômeno a ser estudado e, por isso, começamos a trabalhar com essa perspectiva “da esperança ao ódio”. Então, a gente sempre diz que não era só esperança, era uma esperança precária e hoje, também não é só ódio, é um ódio também cheio de esperança.
Quando se fala de eleitores do Bolsonaro de outras camadas, eu teria uma perspectiva mais crítica, mas nas camadas populares as motivações são diferentes. Então, a gente voltou para o fenômeno em 2016 e em 2018, eu e a Lucia tínhamos muita certeza de que ele iria para o segundo turno, o nome dele reinava sozinho na juventude. E depois que ele se tornou presidente e a pesquisa foi tomando uma repercussão pela oportunidade do momento. Vimos as oportunidades e é isso que a etnografia faz, estar no campo nos proporciona ver os processos nas periferias, no Brasil profundo e trazer isso para o grande público.
Nuvem – Teu trabalho também tem uma característica internacional. Estes fenômenos que ocorrem no Brasil, de retirada de direitos, têm uma característica global, este processo está ocorrendo em outros países. Mas qual a especificidade do caso brasileiro?Rosana – Tem muitas especificidades, o conservadorismo brasileiro é muito particular. Apesar de ter um padrão que é global, de uso das fake news, da reação pós-crise econômica de 2007-2008, e da ideia de que alguns políticos entenderam que havia uma crise transnacional e compreenderam que falando o que não se podia falar, eles ganhavam popularidade de uma população que estava frustrada. Se formos olhar o caso brasileiro, a importância das igrejas no brasil – claro, nos Estados Unidos o voto evangélico também tem importância– mas a penetração das igrejas nas periferias do Brasil, é uma maneira de cultura popular muito particulares.
Nacionalmente, o Brasil sofre uma crise em 2014, que é econômica e política. Poucos países viveram um colapso do sistema político. Desde a eleição da (ex-presidente) Dilma (Rousseff), que não foi aceita pelos oponentes, passando pela a crise econômica extremamente dura para as camadas populares – as camadas médias não sofreram isso, então não se discute a crise econômica no Brasil. E poucos grupos conseguiram oferecer respostas em meio ao que não é uma crise, mas é colapso do sistema político. Esse radicalismo vai atuar e aí a própria Sociologia ou Antropologia dos grupos populares, o trabalho do sociólogo Flávio Pierucci, da antropóloga Teresa Caldeira, que venho dialogando há muito tempo, trabalham sobre esse conservadorismo vinculada a uma pauta punitivista, o que é muito específico do caso brasileiro e de uma questão de classe. Ou seja, ‘como vou me constituir como um grupo, me diferenciando dos marginais, dos vagabundos’, desse outro que não é externo, mas é interno. ‘Esse vagabundo que ameaça a minha família, ameaça aos meus valores e que contra esses grupos eu preciso de uma arma para agir em auto defesa’. Vamos ver o Pierucci falando disso em 1987 e é como se estivesse discutindo um leitor clássico do Bolsonaro hoje.
Catarinas – Circula a possibilidade de nova paralisação dos caminhoneiros e fizeste uma provocação para que a esquerda dispute esta pauta. Sendo estes eleitores, como o eleitorado do Bolsonaro de forma ampla, formado por segmentos diversos e fragmentos, se a esquerda não disputa esta pauta, quais segmentos crescem nesse momento de crise do bolsonarismo clássico?
Rosana – O sistema político tem mudado muito, os diagnósticos estão mudando rápido e as peças estão se alterando com este início desastroso do governo Bolsonaro. Antes das eleições, se achava que o pior que poderia acontecer era um impeachment de Bolsonaro para termos o (vice-presidente) general (Hamilton) Mourão assumindo. Agora, as coisas estão se movimentando rápido e ninguém esperava que a capacidade de articulação do Bolsonaro seria tão ruim. Sempre disse que quem perdeu a eleição não foi a esquerda, mas a direita, que foi engolida pela extrema-direita – a composição no Congresso Nacional mostra isso. O que imagino, com uma análise de momento, é que quem vai voltar a se fortalecer são as raposas velhas da direita tradicional, que tinham sido um pouco engolidas pela extrema-direita. Eles são raposas velhas, sabem agir dentro do sistema e têm experiência de articulação. Não vejo um centro forte, com uma figura de Ciro (Gomes) ou Marina (Silva), que teriam um grande espaço para crescer depois de um radicalismo forte, como figuras mais moderadas que vão encarnando este Centro.
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Hoje, quem vejo que vai crescer com a crise e fazer a crise diminuir são as pessoas que estão há 30 anos no Congresso Nacional negociando. Agora, há muita oportunidade para a esquerda, mas infelizmente não vejo a esquerda com capacidade de atrair essas grandes demandas populares. A médio prazo, tende a vencer o Centro. A esquerda ainda está muito machucada e fragmentada. Muito machucada pelo que passou, pelos golpes que sofreu e muito fragmentada porque também tem uma parte da esquerda que não quer ficar vinculada a imagem do PT. Sempre há janelas de oportunidades, não existe ‘quem vai disputar os caminhoneiros’, é como foram os rolezinhos, que nem eram movimentos. Os caminhoneiros são dessas revoltas ambíguas é vão ter grupos que não vão votar em ninguém, outros vão ser mobilizados pela esquerda e outros pela direita. Mas acredito que Bolsonaro tem grande chance de sair enfraquecido e todos podem crescer, menos o radicalismo de extrema-direita, as pessoas já estão cansadas dessa quantidade de mudança e ódio.
Catarinas – Na disputa por este tom mais moderado, os militares podem sair vitoriosos, especialmente a partir da criação de uma imagem de Mourão como alguém ‘moderado? Pedidos de intervenção militar podem ser ampliados?
Rosana – Eu acreditava nisso, mas hoje não mais. Era uma coisa que eu temia muito, mas essa extrema-direita, apenas de ser desorganizada e debilitada, está conseguindo em sua base mais radical neutralizar a figura do Mourão. Então, dentro da base bolsonarista, a figura do Mourão está completamente abafada. Não vejo os setores militares interessados em fazer uma intervenção, eles não precisam mais do que já têm. Não é que não há perigo, mas é porque os militares não querem. Se quisessem, estariam articulados para isso e eles têm pedido moderação.
Na percepção popular, uma parte grande vai dizer ‘chega, a gente tentou, via democracia, mas não deu’. Muitas pessoas já estão dizendo. Só que o Mourão também já foi desacreditado. Hoje, se houver um grande pedido de intervenção militar será quase simbólico, porque não existe algo específico. O Bolsonaro também não tem interesse porque seria engolido. Os militares não tem interesse. Mas na perspectiva popular, a visão é essa: ‘tudo ladrão, tudo corrupto’. Como foi quando elegeu-se Bolsonaro, dizendo que o PT, o PMDB, o PSDB eram a mesma coisa. O que tenho apostado é que as pessoas ficarão desacreditadas, Bolsonaro vai terminar de governar e ninguém sabe o que ocorrerá daqui quatro anos – claro que ninguém pode imaginar o que pode vir à tona de gravidade. Mas hoje, não tem nenhum setor pronto para um impeachment, o sistema está organizado para ele governar por quatro anos e o sistema se regenerar.
Catarinas – O governo tem sido acusado de não ter um projeto para o país e setores afirmam que a discussão de questões em torno de temas que envolvem gênero, por exemplo, são cortina de fumaça ou possuem menos importância. O ataque a direitos a minorias da população não é um dos projetos deste governo?
Rosana – Existe uma agenda, porque eles tiveram que fazer coalizões e acordos com grupos neoliberais, inclusive para se ter o (ministro da Economia) Paulo Guedes. Então, é uma junção entre uma pauta conservadora e neoliberal. Tenho feito o trabalho de seguir e pesquisar o Bolsonaro. Bolsonaro é isso há 27 anos. Ele só fala em kit gay. Ele está há 10 anos pedindo esclarecimento para o MEC sobre o kit gay. Não é cortina de fumaça, elegemos uma pessoa que é obcecada por estas questões. Esse é o Bolsonaro, o Bolsonaro é essa pessoa. Ele passou metade da vida tentando direitos para militares e a outra metade tentando descobrir o kit gay. Então, dizer que isso é cortina de fumaça tem muitos problemas. Ele é essa pessoa, não está fingindo e isso é uma agenda que mobiliza e mata. O número de pessoas LGBTs que sofreu violência cresceu absurdamente: 51% da população sofreram violência depois das eleições – pesquisa coordenada pelo antropólogo Lucas Bulgarelli.
Ou seja, esta é talvez a política mais eficaz de violência hoje, a coisa mais concreta que o governo faz é literalmente a violência contra os grupos mais vulneráveis. E isso não quer dizer que a gente não tenha que discutir os desmontes e a reforma da previdência, porque não existe peso e medida quando as pessoas estão morrendo.
Catarinas – Um dos teus trabalhos de maior destaque é a Escola Comum. Como este espaço tem sido fomentador do surgimento de novos atores no cenário político e qual a importância da figura e da memória de pessoas como Marielle Franco neste novo cenário?
Rosana – Marielle é um símbolo desta virada. E pra mim ficou muito claro neste tour nos Estados Unidos. As pessoas só queriam saber dela. Marielle é um símbolo e vai ser a luz no fim do túnel, a imagem que a gente se apega e segue. Tenho falado que a extrema-direita venceu e as feministas também. Hoje, a gente fica perguntando quando o PT e a esquerda vão voltar para a periferia. Eles não vão voltar. Aquela política nunca mais vai voltar para a periferia, nem sabe mais como fazer, mas os feminismos e movimentos LGBTs chegaram e estão chegando de tudo quanto é jeito, porque a maneira como as feministas se articulam é muito diferente e hoje a gente tem uma nova geração. É uma geração cheia de esperança, qualificada, já são essa geração que não foi a primeira de brigar na internet, mas já aprendeu algumas coisas, como fazer, para além do movimento de internet. É uma geração que confio muito, até nos meninos bolsominions, muitos deles são mais aptos do que as outras gerações. Mas, de um modo geral, a gente tem uma nova geração não apenas na Escola Comum – que seria o topo juventude periférica, jovens brilhantes, com notas brilhantes, que estão se articulando nas mais diversas fontes, indo em projetos da ONU e vão muito longe. São jovens que vão crescer e vão fazer uma política que é outra política, feita com mulheres negras no topo, feita com solidariedade, afeto e preocupação social. É uma geração muito especial e o problema de uma geração especial é como mantê-la especial. Mas a gente tem uma nova sociedade brasileira, que tem 16 a 20 anos, e a gente vai ter uma nova sociedade daqui 10 anos. Não só na escola comum que vemos as meninas discutindo, extremamente preparadas, se virando para conseguir trabalho, uma geração na qual deposito muita esperança.
A Marielle é um símbolo porque foi assassinada pelos mesmos grupos políticos que tem mandado no Brasil, pelos piores grupos. Ela é odiada por homens de extrema-direita. Ela representa essa nova etapa da polarização brasileira, que não é de direita e esquerda, mas que é de homens brancos do patriarcado e das mulheres negras e LGBTs – onde se tem esquerda.
Não adianta dizer que as pautas identitárias estragam a esquerda, não haveria esquerda na periferia se não fossem as pautas identitárias.
Agecom UFSC – Nos teus relatos da viagem aos Estados Unidos, falas muito das críticas ao governo Bolsonaro e da imagem de Marielle muito presente. Essas críticas são de dois setores em crise no Brasil: universidades e mídia. Acredita que podem repercutir no Brasil e na percepção do eleitorado?
Rosana – O cenário mudou. Os grandes meios de comunicação, não pelos motivos corretos, estão apresentando críticas ao Bolsonaro. De alguma maneira, se você tem um alinhamento internacional, os grandes jornais brasileiros começam a repercutir. Hoje existe um alinhamento da imprensa global com a imprensa nacional, a Globo, Folha de São Paulo, Estadão, estão em um único som de crítica ao governo, porque seus interesses talvez não estejam sendo atendidos.
Bolsonaro se elegeu em um colapso, quando ninguém sabia o que fazer com o WhatsApp, mas o sistema vai se regenerando e são instituições muito poderosas, tanto a mídia, quanto as universidades. Acredito que estas estruturas institucionais prevalecerão. A gente pode dizer que a Globo não importa, mas importa. Aquele cara que ama o Bolsonaro vai continuar odiando a Globo. Mas todo aquele 20% que votou no oba-oba, esse percentual está assistindo a Globo. Está falando mal da Globo, mas está ouvindo e vendo. Hoje, há um consenso em criticar Bolsonaro, ficaram quietos com a prisão do (ex-presidente Luiz Inácio) Lula (da Silva), apoiaram o impeachment (da ex-presidente Dilma Rousseff), ficaram temerosos com Bolsonaro, mas agora viram que não dá. Hoje há um acordo da grande mídia brasileira. A questão norte-americana não vai influenciar o eleitor fanático, mas essa linha de transmissão de informação funciona. As universidades estão em crise? Estão. Mas as elites querem estudar nas grandes universidades e ficam constrangidas. Lá (nos Estados Unidos) é muito difícil aceitar que alguém fale o que ele falou, mesmo que (o presidente norte-americano Donald) Trump também tenha dito algumas coisas. Houve um momento de explosão, mas a imagem dele já está bastante desgastada.