Aviso de gatilho: essa reportagem contém descrição de situações violentas envolvendo grávidas.

Elineide acordou assustada naquela madrugada de domingo, 28 de fevereiro de 2010. A barriga estava rígida, inchada e ela sentia grande dificuldade para respirar. O marido acordou ao perceber a situação da esposa, e tentaram achar a melhor posição para que ela ficasse confortável até amanhecer.

Desde que descobriram a gravidez, em setembro de 2009, circulava entre os dois um misto de felicidade e preocupação. Apesar de já estar com 42 anos e de a situação financeira ser difícil, já que somente ela trabalhava devido ao quadro de saúde do marido cardíaco, Elineide recebeu a notícia com alegria e esperança. Seu filho já era moço, tinha 16 anos, e nas duas últimas vezes que havia engravidado, teve abortos espontâneos.

A felicidade, no entanto, passou a ser substituída pela preocupação conforme a gestação avançava. Após longa espera, ela finalmente conseguiu realizar um ultrassom, em novembro de 2009, na sua cidade, Ceará Mirim, a 33 km da capital Natal, no Rio Grande do Norte. Porém, o médico que a atendeu não informou o resultado do laudo. Percebendo algo diferente, ele apenas pediu que ela retornasse na semana seguinte e, de novo, após 15 dias, para repetir o exame.

Apesar de já ser possível identificar em ultrassom algumas malformações fetais entre a 11ª e a 13ª semana de gestação, com 16 semanas e meia, Elineide e o marido continuavam sem saber qual era a situação da gestação ou do desenvolvimento do bebê. De novembro de 2009, com 16 semanas, a fevereiro de 2010, quando já chegava a 29 semanas, Elineide não tinha informação sobre os riscos daquela gravidez para a sua vida. Sentindo que algo estava errado, com sua barriga crescendo acima do considerado “normal”, inchada e já com sintomas preocupantes – como dores de cabeça, tonturas e falta de ar -, a angústia e o medo se tornaram companhia da família.

Em 24 de fevereiro de 2010, o médico da cidade finalmente recomendou que Elineide fosse até Natal para consultar com outro profissional e confirmar o diagnóstico. Nesse momento, a gestação já chegava à trigésima semana. No dia seguinte, ao ser avaliada na capital, Elineide é encaminhada diretamente ao hospital para a interrupção da gestação. Somente então ela e o marido ficam sabendo que o bebê tinha uma malformação grave, cujo nome era um palavrão e o prognóstico um pesadelo: “Displasia Esquelética Tanatofórica Letal”, uma síndrome que inviabiliza a vida fora do útero. Assim, o feto não nasceria com vida e a continuidade daquela gravidez colocava a própria vida de Elineide em risco.

Apesar de a interrupção da gestação quando a gravidez representa risco de vida à gestante ser um direito garantido pelo artigo 128 do Código Penal desde 1940, a médica que a atendeu, em Natal, não encaminhou a internação de Elineide. Ao invés disso, alegou que realizaria uma junta médica para analisar o caso e autorizar ou não a interrupção da gravidez.

O sofrimento do choque do diagnóstico foi somado à grande dificuldade física que Elineide sofria. Por insistência de familiares, ela conseguiu passar um dia internada. A malformação fetal causava polidrâmnio, isto é, aumento de líquido amniótico, já que o feto não tinha capacidade para absorver e engolir o líquido nas quantidades normais. Por isso, o grande volume da barriga e a dificuldade para respirar. A retirada do líquido precisava ser feita por intervenção médica e de forma periódica (diariamente ou a cada dois dias).

Na maternidade, o ultrassom assinado por dois médicos foi levado à Comissão de Ética, que também ouviu Elineide e o marido para que demonstrassem ciência do que estava acontecendo e optassem, de livre vontade, pela interrupção daquela gestação. No entanto, mesmo com diagnóstico e o desejo expresso do casal, o parecer da Comissão descreveu somente a condição de saúde fetal, suas minúcias técnicas e a inviabilidade da vida extrauterina, sem mencionar uma única vez o risco de vida que Elineide corria com a manutenção daquela gravidez aos 43 anos de idade. Nos termos do parecer, a comissão alega que “mesmo a síndrome sendo incompatível com a vida não há respaldo legal, para interrupção da gestação e encaminha para o juiz emitir o seu parecer” (sic).

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Parecer da Comissão de Ética Médica, assinado por duas médicas da maternidade.

Tendo recebido o parecer de que seria necessário entrar com pedido judicial em uma sexta-feira (26 de fevereiro), Elineide e o marido retornam para a sua cidade e só conseguem encaminhar o pedido na semana seguinte. O parecer, os exames de ultrassom e o pedido formal do casal foram encaminhados à Terceira Vara Criminal da Comarca de Natal. Passa mais uma semana do dia do protocolo (1 de março) até a decisão (8 de março), e a gestação de Elineide já está chegando na 32ª semana. 

O juiz substituto que julgou o caso indeferiu o pedido de interrupção da gestação, alegando que “um suposto risco para a vida da requerente não ficou demonstrado e a idade do feto também já se encontra avançada para a realização do aborto médico”. A ausência de um laudo ou de um parecer médico que explicitasse os riscos de saúde que ela estava correndo foram determinantes para a decisão do juiz.

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Decisão do juiz sobre o pedido de interrupção da gestação de Elineide.

No dia que o juiz emite a sentença negando o direito à Elineide, ela novamente precisa ser hospitalizada devido à dificuldade para respirar. Durante a internação 1,5 litro de líquido amniótico é retirado, e ela recebe alta no dia seguinte.

Três semanas depois, em 30 de março, ela é mais uma vez internada em Natal. Com o rompimento da bolsa, Elineide entra em trabalho de parto, mas é obrigada a aguardar por quatro horas numa cadeira, com a pressão arterial subindo, até que seja encaminhada a uma sala de parto. Ela também é impedida de ser acompanhada por algum familiar durante a internação, mesmo que haja uma lei desde 2005 garantindo o direito. De acordo com o boletim do hospital, o bebê natimorto de aproximadamente 35 semanas é retirado às 21h27. O marido é avisado através de um celular que ela pegou emprestado.

No dia seguinte, ainda sem acompanhante, ela tem uma queda no banheiro e fica por aproximadamente uma hora sem assistência. Às 18 horas, Elineide de Lima Campos, 43 anos, vem a óbito, devido a uma parada cardíaca. Na declaração do óbito, as causas da morte descritas são: “Cor pulmonale agudo”; “Tromboembolismo pulmonar”; “Estatus pós-operatório (cesariana)”; “Miocardiopatia dilatada”; “Pielonefrite aguda”.

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Recorte da declaração de óbito de Elineide com as causas anotadas pela médica.

O estigma do aborto como uma das causas de mortes maternas evitáveis

A negligência médica e a negação do direito à informação sobre seu estado de saúde e à autonomia – o que caracteriza violência obstétrica – chama a atenção no caso de Elineide. Em um estudo realizado pelo Grupo Curumim e Ipas (organização em prol da justiça reprodutiva), Beatriz Galli e Ana Paula Viana, argumentam que, se ela tivesse sido informada do diagnóstico do feto e dos perigos daquela gravidez já na 16ª semana de gestação, quando realiza o primeiro ultrassom em sua cidade, poderia ter optado mais cedo pela interrupção da gestação e, consequentemente, salvado a  sua vida.

É perceptível, no entendimento de médicas/os e outras/os especialistas ouvidas/os por esta reportagem, que o estigma sobre o aborto representa um obstáculo para que alguns profissionais entendam que este poderia ser tanto uma opção terapêutica (curativa) como profilática (preventiva) em algumas situações, e que deve ser ofertada à gestante.

“Existe muita dificuldade de se discutir a questão do aborto distante do conflito moral, do direito do feto (mais recentemente do ‘nascituro’), e acaba-se esquecendo que a mulher é o ser autônomo daquele corpo, daquele útero e daquele feto. Esse é um problema: a questão do estigma que não traz a discussão para a esfera da saúde”, avalia Cristião Rosas, ginecologista obstetra, coordenador da Rede Médica pelo Direito de Decidir (Global Doctors for Choice/Brasil).

O aborto necessário, isto é, realizado para salvar a vida da gestante, é permitido desde 1940 pelo Código Penal brasileiro. No entanto, o olhar sobre o aborto como crime impacta até mesmo no momento de ofertar essa terapêutica nos casos de risco à vida. “A criminalização do aborto é extremamente perversa para todas as pessoas, inclusive para aquelas que têm direito à interrupção nos casos previstos em lei, por conta dessa ideia de que é uma coisa proibida, de que é pra ser feito sigilosamente, entre quatro paredes”, analisa Melania Amorim, ginecologista obstetra, integrante da Global Doctors for Choice e fundadora e diretora da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras (Brasil).

O direito de decisão sobre seu processo gestacional nos casos de risco de vida

Apesar de ser um evento comum na vida reprodutiva de pessoas com útero, a gravidez e o parto sempre podem representar algum risco. Pessoas sem qualquer doença, em geral, possuem gravidezes chamadas “de risco habitual”. No entanto, esse risco aumenta quando a pessoa possui doenças prévias ou quando é diagnosticada alguma malformação fetal grave. A avaliação desses riscos e o acompanhamento da gravidade que eles representam devem ser feitos desde o pré-natal até o momento do parto, e é dever do profissional da medicina informar e garantir que as decisões das pacientes sejam respeitadas.

O Código de Ética Médica prevê em seu capítulo I, inciso XXI, que o médico/a aceitará as escolhas de seus pacientes relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas. Ainda que seja direito do/a profissional se recusar a realizar procedimentos contrários à sua consciência, a desobrigação não pode ocorrer em caso de urgência ou emergência, em que não há outro médico para o atendimento, ou quando a negativa possa trazer danos à saúde do paciente. Além disso, também consta, entre outras responsabilidades, que é vedado ao/à médico/a: “deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo” (Art. 24, Cap. IV, p. 25).

Considerando as responsabilidades expressas ao exercício da medicina e que não há, no ordenamento médico ou jurídico brasileiros, a determinação de qual seria a porcentagem de risco à vida que uma gestante deve assumir sem recorrer à interrupção de uma gestação, é dever médico consultar a gestante sobre qual o risco que ela está disposta a correr durante a gestação, independentemente de quão desejada seja a gestação pela futura mãe ou pelos familiares.

“Só a mulher pode decidir quanto e qual o risco ela é capaz de correr. Mas isso não é apresentado corretamente para ela. A gente costuma dizer: ‘o que é o risco de morte materna para você? É um risco de 50%? É um risco de 10%? Mas você pode não querer correr o risco de 0,5%’. Então, esse risco não deve ser arbitrariamente decidido unicamente pela equipe médica. Existem circunstâncias em que o risco de morte materna é altíssimo, como no caso da Síndrome de Marfan, que é de 50%. Mas tem outras circunstâncias em que o risco é mais sutil, como a Síndrome HELLP, por exemplo, em que o risco de morte materna numa eclâmpsia é de 5% e isso é um critério de interrupção da gravidez”, explica Melania Amorim.

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Arte: Amanda Miranda.

De acordo com a obstetra, ainda há atraso e certa resistência de os médicos perceberem as condições que representam risco materno e encaminharem para a interrupção da gestação, quando for o caso. “De forma geral, existe bem menos resistência à interrupção por risco de vida materno do que por outras condições. Porém, às vezes, o que acontece é uma falha na compreensão de que aquilo ali é uma situação de risco de vida materna. Então, a gente tem que ter uma compreensão mais abrangente, de forma a compreender que só a mulher é capaz de determinar qual e quanto risco ela admite correr”, argumenta.

Cristião Rosas corrobora essa percepção. “Perdeu-se um pouco da visão da epidemiologia clínica. O risco, por exemplo, de uma mulher saudável, jovem, que não tem doença nenhuma morrer durante a gestação, parto e puerpério, é 0,06%. Agora, vamos imaginar uma jovem que tenha uma cardiopatia funcional, grau 3, grau 4, com patologias de coarctação de aorta e que, durante o evoluir da gravidez, esse risco pode aumentar para 6% de morte. Isto é, a cada 100, 6 gestantes com essa patologia vão morrer no terceiro trimestre, ou durante o parto, ou logo depois do parto, porque não suportam o volume plasmático maior e a sobrecarga cardíaca, mas não é oferecida a ela a possibilidade de interromper a gravidez no começo dessa gestação”, analisa.

Tanto Melania Amorim quanto Cristião Rosas também apontam que essa dificuldade existe desde a formação médica, tanto devido à pouca informação sobre situações em que o aborto é uma possibilidade de salvar a vida da gestante, quanto em função da ausência de uma lógica do cuidado baseada nos direitos sexuais e reprodutivos de quem gesta.

“Existe uma dificuldade de os médicos compreenderem o que são os direitos reprodutivos. Há uma tendência, especialmente na formação médica da área de ginecologia e obstetrícia, de ser muito focada no binômio materno-fetal. É tão importante para o médico salvar a vida da mãe quanto salvar a vida do feto. Por isso, a gente vê essa pouca compreensão de professores renomados de medicina e obstetrícia, que relutam ‘Não, eu acho que dá pra levar essa gestação’. Mas quem tem que decidir é ela! É como se existisse uma mesma equivalência de valor entre o feto e o valor daquela mulher”, declara Cristião.

Mortes maternas evitáveis: uma pandemia no Brasil

Na análise do caso de Elineide, Paula Viana e Beatriz Galli argumentam que a morte evitável da gestante potiguar representa uma trajetória similar aos inúmeros óbitos que acontecem em cidades brasileiras entre mulheres, em sua maioria, de origem pobre, com pouco acesso à informação e com atendimento de saúde público precário. Locais onde pouca ou quase nenhuma atenção se dá à saúde reprodutiva, à assistência perinatal e, ao mesmo tempo, onde se acumula casos de desrespeito por falta de informação sobre o que os resultados dos exames estão dizendo sobre o próprio corpo delas.

Em entrevista para essa reportagem, Viana apontou que o caso de Elineide também é  emblemático porque demonstra a interpretação que médicos/as e juízes/as fazem a respeito do risco de morte. Segundo ela, há dois fatores de análise dos riscos: o risco reprodutivo, que envolve mulheres que não poderiam nem mesmo engravidar, e o risco obstétrico, que envolve pessoas que engravidam e têm alguma doença preexistente ou que foi desenvolvida durante a gravidez. 

“O caso da Elineide é impressionante porque ela decidiu, ela e o marido, com muito pesar, interromper aquela gravidez que não foi planejada, mas foi muito querida por eles, por toda a família. Um caso de malformação fetal que gerava risco de morte para aquela mulher, e isso não foi apontado substancialmente no parecer médico em um hospital universitário, que está formando profissionais”, lamenta a enfermeira, ativista feminista e coordenadora do Grupo Curumim.

“A gente vê muitas Elineides morrendo todos os dias. As mulheres morrem pelo aborto inseguro, em geral, e as mulheres morrem pelo não aborto. Elas morrem por não terem tido a chance de fazer a interrupção daquela gestação para salvar suas vidas”, acrescenta Viana.

Morte materna é aquela em que uma mulher morre durante a gestação, parto ou puerpério (período de 42 dias após o parto ou aborto), “independentemente da duração ou da localização da gravidez, e desde que seja por causa relacionada com ou agravada pela gravidez ou por medidas ligadas a ela, mas não associada a causas acidentais ou incidentais”, conforme a 10ª Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID-10) da Organização Mundial da Saúde (OMS).

A preocupação com a redução dos índices de mortalidade materna é foco de muitos acordos internacionais. Em 2000, entre as pactuações dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) com metas para 2015, estava melhorar a saúde das gestantes e reduzir em 75% a razão de mortalidade materna (RMM) com base no registrado em 1990. Globalmente, a RMM caiu 45% e o objetivo se manteve como uma agenda inconclusa. No Brasil, a meta era chegar a 35 óbitos maternos por 100 mil nascidos vivos em 2015, o que tampouco foi alcançado. O cálculo da RMM é feito dividindo o número de mortes maternas pelo número de nascidos vivos em determinado período e multiplicando o resultado por 100.000. 

Novamente, nas pactuações dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), a redução da mortalidade materna volta a figurar na meta 3.1 (ODS 3), que objetiva que a RMM global seja inferior a 70 óbitos por 100 mil nascidos vivos. O Brasil, que possui, em média, 60 mortes por 100 mil nascidos vivos, se comprometeu a reduzir a RMM para, no máximo, 30/100 mil nascidos vivos até 2030. Em 2022, continuamos longe da meta no país.

De acordo com o Boletim Epidemiológico nº 20, vol. 51, publicado pelo Ministério da Saúde em maio de 2020, no período de 2015 a 2019, a razão da mortalidade materna no Brasil vinha se mantendo estável, com leve tendência à queda. Entre 2017 e 2018, por exemplo, a RMM reduziu 8,4% ao passar de 64,5 para 59,1, respectivamente, sendo que 65% das mortes por causas maternas em 2018 foram de mulheres pretas ou pardas.

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No entanto, com a pandemia de Covid-19, esse número subiu, colocando o Brasil em primeiro lugar no ranking de países com maior número de mortes maternas do mundo no período. Segundo o Boletim Epidemiológico n. 20, vol. 53, de maio de 2022, em 2019 e em 2020 foram notificados 1.576 e 1.965 óbitos maternos ao Sistema de Informações de Mortalidade (SIM/DATASUS), respectivamente. Após aplicação do fator de correção, estima-se que tenham ocorrido 1.655 e 2.039 óbitos maternos em 2019 e 2020, respectivamente. Há um aumento acentuado da RMM, variando de 57,9 óbitos maternos para cada 100 mil nascidos vivos em 2019 para 74,7 em 2020. Dos 2.039 óbitos maternos ocorridos em 2020, 56% foram de mulheres com 30 anos ou mais e 65,4% de mulheres negras, sendo 53,7% pardas e 11,7% pretas.

Já em 2021, morreram 2.796 mulheres grávidas ou puérperas, segundo dados informados pelo Painel de Monitoramento de Mortalidade Materna do Ministério da Saúde. Esse número representa mais de 100 mortes por 100 mil nascidos vivos, como mostrou o levantamento realizado pela coluna de Marcos Madero no UOL, com ajuda de Marcos Nakamura, obstetra do Instituto Fernandes Figueira da Fiocruz e presidente da comissão nacional especializada de mortalidade materna da Febrasgo. Foi o maior número registrado desde 1996, quando começou a série de dados disponíveis, e 77% mais mortes do que o registrado em 2019, antes da pandemia.

As razões para esse aumento são inúmeras, como receio e dificuldade de grávidas buscarem serviços de saúde por medo da infecção, demora na vacinação para a Covid-19 desse público, que é considerado grupo de risco para a doença, demora no diagnóstico, na internação e na intubação daquelas com sintomas graves, entre outras. A contaminação por Covid-19 também pode agravar situações já de risco para a gestante, como pressão alta e diabetes.

Também é necessário considerar outro lado perverso da pandemia: o aumento do número de mortes maternas não relacionadas à Covid, mas que ocorreram por falta de assistência adequada. “As mulheres ficaram desassistidas do ponto de vista da hemorragia, da hipertensão, da infecção pós-parto, então morreram mais mulheres porque o foco estava sendo só para a Covid”, avalia Melania Amorim. 

“Foi uma mortandade. Por isso que eu sempre digo que foi um verdadeiro feminicídio de Estado. Se a gente tá chamando a pandemia de genocídio, especificamente para as mortes maternas foi um feminicídio do Estado”, destaca a médica.

Pesquisa qualitativa realizada por Debora Diniz, Luciana Brito e Gabriela Rondon, publicada na Revista The Lancet Americas, demonstrou que a falta de assistência esteve profundamente associada às mortes maternas durante a pandemia. Alguns familiares das mulheres que morreram durante a gravidez, relataram que elas foram recomendadas a voltar para casa, pois se tratava de “mal-estar da gravidez”, “nervosismo” ou “algo da cabeça”. Também houve relatos de que a equipe médica estava mais preocupada em salvar o feto, e que deixava a gravidez progredir com essa intenção.

“A morte materna é um dos indicadores de saúde mais brutais da sociedade, porque ela mostra como aquela sociedade dá valor às suas mulheres, às suas meninas. Mais de 90% das mortes maternas são totalmente evitáveis, se os recursos tecnológicos estiverem à disposição no momento. O aborto terapêutico no Brasil é muito pouco oferecido. Menos de 1% das interrupções de gestações em nosso país são para salvar a vida da gestante”, analisa Rosas.

Monitoramento dos riscos de morte em uma gravidez: causas diretas e indiretas 

Conforme o entrevistado, a avaliação dos riscos que cada gestação representa para a vida da gestante deve considerar não só o monitoramento das doenças prévias e de possíveis complicações que possam existir, além do diagnóstico fetal através de ultrassom, mas também a idade, o local onde a pessoa vive, seu contexto socioeconômico e cultural e questões como sua acessibilidade a serviços de saúde de emergência.

Com relação às causas das mortes maternas, existem as diretas e as indiretas. As causas diretas são relacionadas a complicações durante a gravidez, aborto, parto ou puerpério decorrentes de intervenções, omissões, tratamento incorreto ou a uma cadeia de eventos resultantes de alguma dessas causas. Já as causas indiretas são consequência de patologias graves que a gestante já tinha no começo da gravidez e que, pelos próprios processos biológicos e fisiológicos, acabam se agravando com o evoluir da gestação. “Há um número importante de patologias cardíacas, respiratórias, infecciosas, hipertensivas, colagenoses, renais, etc., que são muito graves durante a gravidez, que podem, em determinado momento, evoluir para um processo de irreversibilidade daquela saúde”, explica Rosas.

Em uma tentativa de levantar as principais doenças prévias que costumam se agravar durante a gravidez e incorrer em risco de vida para a gestante, a Febrasgo elaborou uma lista a partir de estudos de várias partes do mundo. Apesar de serem doenças conhecidas de qualquer médico, nem sempre são informadas para as gestantes como fatores de risco na gravidez e raramente são tidas como indicativo para que seja ofertada a interrupção daquela gestação. A relação pode ser consultada aqui

“São situações em que as mulheres tinham que estar orientadas sobre a possibilidade de complicações durante a gravidez, e que aumentaria o risco de morte de maneira significativa. Aqui não estamos dizendo que tem que fazer, estamos apontando que essa mulher tem que se informar. A vida é dela, ela que tem que tomar a decisão”, defende o médico.

O Boletim Epidemiológico nº 20, vol. 51, aponta que, de 1996 a 2018, foram 38.919 óbitos maternos, sendo 67% deles decorrentes de causas obstétricas diretas. Já as causas indiretas foram responsáveis por 29% das mortes maternas no período. Antes da pandemia de Covid-19, as principais causas de mortalidade materna no Brasil eram diretas: hipertensão, hemorragia, infecção puerperal e complicações do aborto inseguro, respectivamente. Segundo o Boletim Epidemiológico n. 20, vol. 53, de maio de 2022, em 2020, entre as causas indiretas de óbito materno estavam as doenças do aparelho circulatório, doenças do aparelho respiratório e doenças infecciosas e parasitárias maternas. Devido à pandemia de Covid-19 – infecção que tem o curso piorado pela gravidez –, esta se tornou a primeira causa de mortalidade materna no Brasil em 2021.

Gestação em crianças

Outro contexto de risco de vida para a gestante, além de configurar gestação decorrente de estupro de vulnerável, são as gravidezes de meninas de 10 a 14 anos. De acordo com estudo realizado no contexto latino-americano, essas crianças correm risco até cinco vezes maior de morrerem durante a gestação, parto ou puerpério comparado a uma mulher adulta de 20 a 24 anos. 

Como explica Rosas, essas meninas têm mais chances de terem bebês prematuros, de baixo peso, partos difíceis, complicações pós-parto, maior número de cesarianas, além de maior taxa de mortalidade materna e da alta mortalidade neonatal. De acordo o obstetra, são muitos os casos de crianças com complicações em sua saúde, além de outros efeitos diretos e indiretos da gravidez nessa faixa etária. “Essas são as invisíveis brasileiras, porque elas chegam nas unidades básicas de saúde e lhes é oferecido o pré-natal. Ninguém conversa com a mãe, com ela, que ela pode fazer uma interrupção da gravidez, que aquilo, pela lei, é uma gestação decorrente de estupro e que ela tem um risco, que vai se agravando durante a gravidez, de complicações maternas e reprodutivas significativamente maior do que uma mulher adulta”, critica o entrevistado. 

Estudo da Rede Feminista de Saúde, mostrou que, entre 2015 e 2019, em média 25 mil crianças menores de 14 anos levam a termo gravidezes decorrentes de estupro de vulnerável por ano. Já em 2021, uma criança menor de 14 anos pariu a cada 30 minutos no país. Uma delas foi uma menina moradora do Piauí que não teve o aborto realizado por recusa da mãe. Neste mês de setembro, a mesma menina engravidou pela segunda vez em decorrência de estupro. Enquanto encontra-se acolhida em um abrigo do Conselho Tutelar, junto com o bebê da primeira gestação, o pai e a mãe entraram em um acordo para autorizar a interrupção.

Em junho deste ano, uma menina grávida aos 10 anos quase teve desfecho semelhante ao ser impedida de abortar e retirada do seio familiar para que não acessasse esse direito por decisão de uma juíza em Santa Catarina. Além de o aborto ser permitido quando a gravidez é resultado de estupro, essas meninas ainda têm o agravante do risco de vida. Este é um problema social e de saúde que atinge, especialmente, crianças e famílias empobrecidas, negras, com baixa taxa de escolaridade, moradoras das periferias e com menor acesso à saúde e ao sistema de justiça.

Gestantes sentenciadas pelo estigma e desinformação

Omissão de laudos ou diagnósticos, criação de obstáculos para a realização do aborto e demora para encaminhar para a interrupção legal da gestação foram situações pelas quais Elineide passou e que levaram ao desfecho trágico de sua história.

Conforme preconiza o Código Penal brasileiro e as Normas Técnicas do Ministério da Saúde, não é necessário autorização judicial para a interrupção da gestação nos três casos permitidos em lei: risco de vida, gravidez decorrente de estupro e anencefalia fetal. No entanto, de acordo com Melania Amorim, ainda há muito desconhecimento sobre essas normativas por médicos de várias partes do país.

“Alguns ainda não sabem que não precisam de autorização judicial, e que basta escrever no prontuário e a junta médica indicar a interrupção da gravidez. Claro que, havendo indicação médica, ainda se leva em conta a decisão da gestante”, explica.

Outro aspecto recorrente no tratamento de gestantes tanto pelo sistema de saúde quanto pelo judiciário, é o anulamento da mulher como sujeito e o não reconhecimento de seus desejos e direitos. É o que ocorreu no caso de Elineide. No laudo emitido pela Comissão de Ética que avaliou a sua gestação, ela desaparece enquanto pessoa. A centralidade está em explicar a malformação do feto. Nem uma palavra sobre a sua condição de saúde, os sintomas graves da gestação aos 43 anos, o mal-estar geral, a constante falta de ar, a impossibilidade de dormir e de se locomover pelo volume de líquido amniótico aumentado e o risco à sua vida.

Amorim exemplifica casos de doenças como a Síndrome HELLP e a eclâmpsia, em que o diagnóstico pode ser feito muito precocemente e, ainda assim, é comum ver médicos prolongando a gravidez com o objetivo de garantir o que chamam de “proteção fetal”. A médica também relata situações de retardo no início do tratamento de algum câncer quando o serviço de oncologia se depara com a pessoa no curso da gestação. “Não só a doença pode avançar mais celeremente, como acaba aumentando o próprio risco daquela gravidez”.

Quando o foco se torna o prolongamento da gravidez em busca da “viabilidade” fetal fora do útero, mulheres com a vida constituída que, muitas vezes, são a base de sustentação econômica e emocional de suas famílias são sentenciadas. A tragédia social da mortalidade materna no Brasil afeta, principalmente, as mais vulneráveis que, ao falecerem, deixam bebês e crianças pequenas órfãs e desassistidas. “É uma tragédia de proporções devastadoras. No mundo, são 830 mortes maternas por dia, isso dá uma morte materna a cada 2 minutos. 99% dessas mortes ocorrem em países em desenvolvimento e a maioria das vítimas são pobres, pardas, pretas ou de populações vulneráveis”, complementa Amorim.

Além do aborto como um direito sexual e reprodutivo, é necessário considerá-lo como uma terapêutica para evitar a morte materna, algo possível quando as convicções morais e religiosas não estiverem acima do direito à vida e do melhor cuidado em saúde das gestantes no Brasil. “Nossa Constituição diz que o Brasil é um Estado laico, mas as políticas públicas de saúde não são laicas. Elas têm um forte componente religioso, moral e, eu diria, antiético e imoral, considerando o contexto atual das evidências científicas. Também é criminoso, retrógrado e inoperante, porque além de não evitar os abortos, ainda mata as mulheres, ao não garantir acesso às tecnologias seguras de interrupção da gravidez”, conclui Rosas.

Essa reportagem faz parte das estratégias de comunicação desenvolvidas conjuntamente entre Portal Catarinas, Grupo Curumim, Anis Instituto de Bioética, Campanha Nem Presa Nem Morta, Rede Feminista de Saúde, Cépia Cidadania e Coletivo Margarida Alves.

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    Jornalista, mestre em Letras (Unicentro/PR) e doutora em Estudos de Gênero pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Hu...

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