Diagnóstico Sinais Vitais revela a situação de adolescentes e jovens no mundo do trabalho da capital; a única faixa em que as mulheres recebem salários maiores que os homens em Florianópolis é na condição de jovens aprendizes.
O diagnóstico social participativo “Sinais Vitais – Adolescentes e jovens no mundo do trabalho”, produzido pelo Instituto Comunitário da Grande Florianópolis (ICOM) e lançado em outubro, apresenta dados sobre as desigualdades de gênero, raça e classe com foco nos jovens e adolescentes de Florianópolis.
A famosa ilha da magia é a capital com o maior Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) do país. Tem números positivos relacionados à renda, educação e duração da vida. Porém, o índice que mede a desigualdade social (Gini) mostra que a distribuição de renda não é igualitária entre a população.
O índice Gini varia de 0 a 1, onde 0 representa a situação de total igualdade, quando todos têm a mesma renda. O valor 1 significa completa desigualdade, quando só uma pessoa detém toda a renda do lugar. Quanto menor o número, maior é a distribuição de renda no local.
Em 2010, o índice da renda domiciliar per capita de Florianópolis foi de 0,54 – praticamente sem nenhuma melhora desde 1991, quando era de 0,55. Nos dados mais recentes, segundo o IBGE, o índice em Florianópolis passou de 0,468 para 0,476, entre 2017 e 2018. No mesmo período, o índice estadual também piorou, passando de 0,414 para 0,417. Isso significa um aumento da concentração de renda na capital, que tem uma desigualdade maior que a do estado.
Os dados apresentados no diagnóstico Sinais Vitais mostram que a alta qualidade de vida da capital não alcança todas as pessoas de maneira equânime. Entre os que ficam de fora, muitos são jovens e adolescentes (14 a 29 anos) – categorias que, juntas, representam 25% da população de Florianópolis.
Dentro dessa faixa etária, as mulheres são a maioria, e muitas se deparam com a barreira da desigualdade. O diagnóstico mostrou que a única faixa em que as mulheres recebem salários maiores que os homens em Florianópolis, é na condição de jovens aprendizes. Quanto maior a faixa salarial, menor a presença feminina na capital.
Os dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) de 2017 indicam que a desigualdade entre homens e mulheres, na região metropolitana de Florianópolis, é mais acentuada do que a média estadual e nacional. Enquanto, o IDHM de homens foi de 0,859, o de mulheres foi de 0,810, diferença maior que a média estadual (de 0,828 para 0,801) e nacional (0,773 para 0,772).
Embora a região metropolitana de Florianópolis tenha menos iniquidades de desenvolvimento humano entre brancos e negros, quando comparada com os índices de Santa Catarina e do Brasil, os indicadores ainda evidenciam graves desigualdades estruturais. Em 2017, o IDHM da população negra foi de 0,80, enquanto o IDHM da população branca foi de 0,85. Desigualdade maior do que a de gênero.
Infelizmente, este cenário não é novidade. Em 2016, os dados coletados pela oitava edição do diagnóstico Sinais Vitais já mostravam que o IDHM diminui conforme o gênero e a raça na cidade. São dados que revelam grandes desigualdades: a renda da população negra é de 30% a 40% menor do que a da população branca, e os homens recebem 36% a mais do que as mulheres.
Larissa Boing, gestora de programas do ICOM, avalia que para mudar a dinâmica de perpetuação de desigualdades raciais e de gênero na capital, é preciso focar na criação de políticas públicas que ampliem as oportunidades para essas populações, com políticas afirmativas em projetos sociais. E, para que essas ações sejam possíveis, é necessário apresentar dados e debater, buscando caminhos conjuntos com sociedade civil organizada, poder público e empresas.
“Muitas empresas já estão com seus setores de diversidade, tendo ações inclusivas em relação a gênero, raça e orientação sexual, mas isso ainda precisa aumentar”, destaca.
Apesar de não haver cruzamento relacionado às desigualdades de gênero e raça entre os dados apresentados, podemos observar que as mulheres negras são as mais atingidas, podem ter renda média 76% inferior em relação aos homens brancos. Para Larissa Boing, gestora de programas do ICOM, a acentuada desigualdade revelada pelos números presentes no diagnóstico não é uma condição apenas da capital catarinense. “Essa é uma característica brasileira, resultado do machismo, do patriarcado e do racismo estrutural”, afirma.
Nona edição
Em 2021, na nona edição do diagnóstico social participativo, o ICOM traz à tona uma importante discussão, sobre como a inserção de adolescentes e jovens no mundo do trabalho, de maneira regular, pode transformar esse cenário desigual.
Segundo dados de 2019, 1 a cada 4 trabalhadores formais na capital é jovem. No entanto, o novo diagnostico mostra que a inserção destes jovens é marcada por vários gargalos, como a informalidade, baixa remuneração, alto índice de rotatividade, dificuldade de conciliação com os estudos, além da discriminação por gênero, raça e território.
Em suas 160 páginas, o diagnóstico “Sinais Vitais – Adolescentes e jovens no mundo do trabalho” traz dados relevantes sobre o mercado de trabalho para adolescentes na cidade – as áreas em que atuam, quanto ganham, e quais de seus direitos não estão sendo respeitados.
O relatório da nona edição foi lançado em evento online, neste mês, pelo canal do ICOM no Youtube.
Trabalho Infantil
Um dos pontos discutidos nesta edição do diagnóstico são os dados sobre trabalho infantil em Florianopolis. Em 2019, o IBGE identificou 4.515 crianças e adolescentes trabalhando na capital que é símbolo de desenvolvimento humano. Em Florianópolis, no ano de 2018, 66 denúncias de trabalho infantil foram registradas pela Procuradoria Regional do Trabalho e pelo Disque 100.
Larissa afirma que apesar do diagnóstico não trazer comparativos com outras cidades, o número por si só é um sinal de alerta.
“São crianças e adolescentes que não estão tendo seus direitos respeitados, e isso compromete todo o desenvolvimento dessas pessoas, inclusive perpetuando o ciclo de pobreza.”
A nona edição do Sinais Vitais identificou alguns tipos de trabalho infantil mais comuns em Florianopolis: trabalhos no comércio ambulante no centro e nas praias; como guardador de carro e distribuidor de panfletos nas ruas; carregador nas feiras, trabalhos domésticos como jardinagem, cuidados de pessoas e faxina, trabalho de garçom em restaurantes e de atleta em clubes de futebol, entre outros.
De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o trabalho infantil corresponde a atividades econômicas ou de sobrevivência, com ou sem fins lucrativos, remuneradas ou não, desempenhadas por crianças ou adolescentes em idade inferior a 16 anos, independentemente da sua condição ocupacional. A exceção é para aqueles com mais de 14 anos, na condição de jovem aprendiz.
Adolescentes e jovens no mundo do trabalho
Outro ponto discutido no diagnóstico é a atuação de jovens aprendizes em Florianópolis. Jovem Aprendiz é um programa federal que possibilita a inclusão social através do primeiro emprego. O programa é amparado pela Lei do Aprendiz (Lei nº 10097/2000), regulamentada em 2005, que determina que toda empresa de grande ou médio porte tenha de 5 a 15% de aprendizes entre seus funcionários.
Leia mais
O programa é uma grande oportunidade de garantir o direito ao crescimento saudável aos jovens, possibilitando que possam estudar e se preparar para o mercado de trabalho, no tempo adequado. A professora Paula Schommer, presidenta do ICOM, concorda. Paula, inclusive, trabalhou como menor aprendiz dos 14 aos 17 anos, em um programa do Banco do Brasil.
“Foi um período em que aprendi demais. Pude contribuir com a renda familiar, o que foi importante pra minha família. Pude desenvolver habilidades e ampliar perspectivas. Foi a base para desenvolver meus estudos e alcançar outras possibilidades”, comentou durante o evento de lançamento.
O Sinais Vitais identificou que o potencial de contratação em Florianópolis é de 15 mil jovens aprendizes. Em 2018, haviam 2.265 jovens aprendizes com contrato ativo. No mesmo ano, 7 mil pessoas em Florianópolis aguardavam por uma vaga de emprego nesta modalidade.
Durante o evento de lançamento, a jovem Larissa Porto, 19 anos, compartilhou a sua experiência como jovem aprendiz em duas empresas diferentes. Para ela, atuar como jovem aprendiz trouxe um presente: a oportunidade de criar conexões.
“Criei minha primeira conexão com o mercado de trabalho, pude conhecer de perto como funciona uma empresa. Também pude criar conexões com outras pessoas, principalmente com outros jovens que também estavam tendo essa primeira experiência profissional.”
Para a jovem, que hoje cursa Fisioterapia na UFSC, a experiência também foi importante enquanto conexão pessoal. “Me conectei mais comigo mesma, descobri qualidades que eu não sabia que eu tinha. Eu evoluí como pessoa, em vários âmbitos da minha vida.”
Atuando como jovem aprendiz, Larissa teve contato com um projeto sobre empreendedorismo, e se descobriu uma empreendedora. Larissa também acredita que o programa é muito importante para criar jovens ativos, que se preocupam com a sociedade.
Desafios encontrados
Em 2018, 80% dos jovens aprendizes tiveram seu contrato interrompido antes de completar um ano de trabalho. Em 43% dos casos, isso aconteceu antes dos seis meses.
Para as empresas ouvidas, os obstáculos enfrentados são a falta de mão de obra qualificada; o desafio da contratação e a necessidade de um diálogo ampliado com as instituições qualificadoras, para que a trilha de conhecimento oferecida atenda às expectativas tanto dos adolescentes quanto das organizações.
As instituições qualificadoras são organizações que oferecem o curso de aprendizagem – um requisito para a contratação do jovem aprendiz. Estas instituições são responsáveis pela formação técnico-profissional e pelo desenvolvimento do conteúdo pedagógico dos programas de aprendizagem, em convênio firmado com as organizações que contratam jovens aprendizes.
A Lei da Aprendizagem (10.097/ 2000) prevê que este serviço deve ser prestado, primordialmente, pelas instituições que integram os Serviços Nacionais de Aprendizagem (Sistema S) e, de modo suplementar, pelas escolas técnicas de educação e pelas Organizações da Sociedade Civil (OSCs).
Porém, os dados de Florianópolis revelam que, na cidade, este serviço é prestado prioritariamente pelas OSCs, o que confirma a importância da atuação delas na qualificação profissional e inserção dos adolescentes e jovens no mundo do trabalho.
Mas, ao ouvir o que os jovens têm a dizer sobre o encerramento precoce dos contratos, outras razões são apontadas: pressão psicológica; pouco tempo livre; sentimento de incapacidade ou falta de identificação com o ambiente de trabalho.
É preciso ouvir os jovens, suas percepções e narrativas, para poder humanizar os dados, e partir disso, construir transformações possíveis. Em uma oficina realizada pelo ICOM, intitulada “Oficina Sinais Vitais”, alguns jovens compartilharam suas frustrações e experiências como jovem aprendiz em empresas da capital.
“Na minha empresa, me vêem como o ‘menor aprendiz’. Nem sabem o meu nome, me chamam de ‘aprendiz’.”
“O espaço que eles vão me dar lá dentro vai ser a experiência que eu vou ter, e eu sinto que eles não se sentem nem responsáveis, porque eu vou sair de lá sem experiência nenhuma […] Eu acho que sou capaz de muito mais do que pegar um cafezinho, e talvez eles não tenham consciência de como isso atinge a gente, ainda mais sendo o primeiro emprego.”
A Oficina Sinais Vitais ocorreu em janeiro de 2020, na Irmandade do Divino Espírito Santo (IDES), em Florianópolis. 17 adolescentes estiveram presentes. Nela, os jovens também conversaram sobre o que os motivou a procurar um emprego de menor aprendiz.
“Desde criança eu queria me sentir mais independente. Não gostava de ser criança e queria ser adulta e pagar conta. Aí sempre procurei”.
Segundo Larissa Boing, buscando ampliar as reflexões sobre como tornar as experiências mais positivas para os jovens, essas falas foram apresentadas em outras duas oficinas realizadas pelo ICOM, com especialistas e empresas da capital.
Na próxima terça-feira, dia 26, o ICOM irá realizar um seminário online sobre o programa Jovem Aprendiz, aprofundando os dados do diagnóstico, discutindo a situação atual da aprendizagem neste momento de pandemia, e propondo a reflexão sobre os depoimentos dos adolescentes. O seminário é aberto à comunidade e as inscrições podem ser feitas neste link.
Diagnóstico Sinais Vitais
Ter um panorama específico do que se quer transformar, é o ponto de partida para realizar ações efetivas e alterar uma realidade. Esse é o princípio do diagnóstico social participativo Sinais Vitais, produzido pelo Instituto Comunitário da Grande Florianópolis (ICOM).
O Sinais Vitais existe há 13 anos e desde então, já são nove edições. A metodologia utilizada para a elaboração é inspirada no Vital Signs, programa de dados desenvolvido pela Community Foundations of Canada.
A edição “Sinais Vitais – Adolescentes e jovens no mundo do trabalho” utilizou indicadores primários com organizações da sociedade civil, bem como secundários junto ao poder público municipal, estadual e federal, além de base de dados oficiais e instituições de pesquisa do Brasil.
Foi construída de forma participativa pelo ICOM, representantes do setor público e do setor privado, além de especialistas, organizações da sociedade civil, e principalmente com os próprios adolescentes e jovens.
Além de dar visibilidade ao atual contexto de Florianópolis, o Sinais Vitais busca informar as pessoas e subsidiar políticas públicas para a melhoria das condições de vida. Muito mais do que um relatório, o Sinais Vitais é um processo de articulação da comunidade e reflexão conjunta sobre os indicadores da cidade.
Ilha da Tecnologia
A nova edição do Sinais Vitais também conta com um capítulo sobre o crescimento do setor tecnológico de Florianópolis. O diagnóstico mostra como as empresas e os polos tecnológicos estão geograficamente próximos de áreas de vulnerabilidade social, e por que abrir as portas para a contratação de aprendizes pode transformar realidades.
E já existem iniciativas nesse sentido. Um exemplo é o projeto <tectrampo/>, idealizado e financiado pela Involves ,em parceria com a Cheesecake Labs – duas empresas do setor da tecnologia. O projeto é gerido pelo ICOM, e está em fase piloto. Por meio dele, o ICOM seleciona jovens em situação de vulnerabilidade social, que vão receber apoio financeiro no valor de R$ 1.100,00, enquanto fazem seus cursos na área da programação.
Florianópolis desponta no cenário nacional como o maior polo tecnológico do país. O setor representa 5,6% da economia de Santa Catarina, movimentando R$ 249 bilhões em 2015. É uma área em crescimento que também tem espaço para a inserção de adolescentes e jovens: em 2018, as empresas do setor da tecnologia tinham potencial para contratar 511 jovens aprendizes.
Serviço
A nona edição do Sinais Vitais foi realizada pelo ICOM, financiado pelo Ministério Público do Trabalho de Santa Catarina (MPT/SC), via Termo de Ajuste de Conduta (TAC) e pela Secretaria Municipal de Assistência Social (SEMAS), via Fundo da Infância e Adolescência (FIA).
Faça o download do relatório Sinais Vitais – Adolescentes e jovens no mundo do trabalho.