Em outubro do ano passado vivi uma experiência que continua a reverberar em mim. Após o espetáculo Medusa enredada: como  lembrar?… mas… como esquecer? de Camila Durães[2], durante a Mostra Rosa Teatral[3] aconteceu um bate papo intenso costurado por compartilhamentos e reflexões.

A performance de Camila Durães trata de experiências de assédio e abuso sexual sofrido por ela e por outras mulheres. Ao narrar o mito de Medusa, a artista nos provoca a pensar sobre o modo como as histórias das mulheres são contadas. Ela nos questiona se a sacerdotisa teria mesmo profanado o templo que lhe era tão sagrado cedendo aos encantos (ou assédios) de Poseidon. Não. O deus dos mares estuprou a sacerdotisa. Após sofrer tal abuso Medusa é punida, expulsa do templo e forçada a viver isolada, como uma monstra. No entanto, mesmo vivendo em reclusão, Perseu a encontrou e a decapitou. Assim, o semideus ganhou da deusa Atena um escudo esculpido com o rosto de Medusa, como prova de sua força e coragem. Camila Durães nos pergunta sobre o ato de recompensar o assassino de uma mulher banida que está a viver escondida.

A artista cruza a contação desse mito com sua prática como violoncelista. Entre narração, questionamentos, acordes, cantos e gritos a artista dispara sensações e memórias nas mulheres da plateia, que foram compartilhadas no bate papo após a apresentação. Percebo que essa conversa não se limitou aos relatos. Para além dos depoimentos, a conversa gerou uma espécie de rede entre as mulheres (e até mesmo os poucos homens) que estavam presentes.

Em algum momento da discussão a professora Maria Brigida de Miranda, do Departamento de Artes Cênicas na UDESC, idealizadora da Mostra Rosa Teatral, comentou sobre suas primeiras experiências com o teatro feminista, em meados de 2006[4]. Segundo ela, era comum que a conversa tomasse alguns desvios da dramaturgia teatral para as histórias das alunas. Então, a professora admitiu que naquele momento ela se incomodava um pouco com esses desvios, mas que com o tempo ela compreendeu o quanto é relevante a gestão de um espaço que além de trazer à tona memórias propicia o diálogo sobre estas.

Ao meu ver, a prática do diálogo parece possibilitar que nós mulheres possamos desenvolver metodologias para se trabalhar com as memórias em tanto em nossas criações artística como em nossos comportamentos e posicionamentos na vida. Entendo que o diálogo  dá a ver o que há de comum nas experiências de vida das mulheres e essa comunhão pode suscitar a reflexão e a criação. Muito além de um espaço de cura (embora seja cura também), o debate sobre questões das mulheres gera redes de força que engendram modos de resistências à organização patriarcal e machista da nossa sociedade.

Vale lembrar da proposição da feminista estadunidense Carol Hanisch em seu artigo O pessoal é político (1969)[5], que aborda como as questões pessoais das mulheres podem ser encaradas como questões políticas. Hanish explica na introdução escrita em 2006, que esse texto foi escrito como um memorando em resposta a uma colega feminista do movimento Woman’s Liberation Movement (WLM) que criticou as práticas de Hanisch como pouco políticas.

Hanisch defende que os encontros feministas que ela conduzia durante os anos 1960 não se tratavam de terapias em grupo. Segundo ela, o conceito de terapia implica em alguma doença que precisa ser curada. Os relatos pessoais das mulheres eram partilhados não com o objetivo de resolver problemas singulares, mas de aproximar as vivências e levantar questões em comum. Estas extrapolam o campo pessoal adentrando assim no campo coletivo, ou ainda, no campo político.

A autora expressa também seu incômodo pela associação de que as mulheres precisam de terapia. Há algo que se revela na simplicidade e honestidade de contar as coisas como elas acontecem no dia a dia: a condição deprimente de ser mulher. Compreendo que a proposta de Hanisch dá a ver que partilhar questões pessoais não se trata de uma demonstração de fraqueza e sim de estratégias de construção de redes de força coletiva.

Roda realizada após o bate papo e apresentação do espetáculo na Casa Vermelha, em Florianópolis/ Foto: Chris Mayer

Faço aqui uma analogia aos encontros de mulheres que aconteciam durante a Segunda Onda do movimento feminista à conversa que se desencadeou ao final da performance de Camila Durães. Sinto que a partilha das mulheres ali presentes se relacionam a essa criação coletiva de estratégias de força para ações feministas. Contudo, parece relevante compreender as associações sobre coletivo e coletividade que traço entre coletivos feministas, como o WLM, e o contexto de um debate pós espetáculo.

O grupo de mulheres e homens presentes nesse debate não se organiza como um coletivo feminista tal qual os grupos guiados e frequentados por Carol Hanisch, afinal, não há constância de encontros, nem pautas ou ações a serem definidas enquanto grupo. Os participantes desse debate estiveram juntos durante as quatro horas que durou a ação e em nenhum momento tivemos a pretensão de nos tornar um coletivo. Contudo, percebo uma força de reverberação que se deu nesse encontro (forte o suficiente a me fazer escrever sobre isso mesmo já passado algum tempo), força essa construída coletivamente.

As reverberações que se dão em meu corpo se constituem dos atravessamentos das falas de cada pessoa ali presente. Cada desabafo, relato, reflexão, choro ou questionamento enredam-se em meu corpo como força coletiva. Percebo que essa reverberação se revela também em meu posicionamento crítico diante as situações que vivo diariamente em minha condição de mulher gorda, branca, cis e de classe média. Minha memória se cruza as memórias de outras mulheres, e, dessa forma, meu corpo atua nessa coletividade política.

Proponho que no contexto atual em que vivemos é possível expandir a noção das organizações em coletivos para a percepção da reverberação das coletividades. Não quero dizer que as organizações em coletivos são formatos superados, muito pelo contrário, vejo o quanto esses ainda são necessários[6]. Também não sou ingênua de acreditar que qualquer espaço de debate tem seu potencial de reverberação dessas coletividades realizado. Contudo, algumas ações são disparadoras de disponibilidade e postulam o quanto questões pessoais são políticas, assim como aconteceu no enredamento Medusa-Camila-plateia.

 

[1] Jussara Belchior é bailarina gorda. Integrou elenco do Grupo Cena 11 entre 2007 e 2017. Pesquisa sobre poéticas gordas em seu solo Peso Bruto (2017) e em seu doutorado em andamento

[2] Camila Durães é violoncelista e pesquisadora. É doutoranda na Área de Concentração de Estudos de Gênero do PPGICH-UFSC, onde se dedica a pesquisa teórico-prática sobre criadoras e compositoras brasileiras e suas criações para violoncelo solo. Desenvolve pesquisas na área de performance e análise de Música Contemporânea/ Música Nova, com ênfase na performance violoncelista, e, desde 2014, no campo de estudos de Gênero, Feminismos e Música.

[3] A Mostra Rosa Teatral reúne espetáculos, oficinas, palestras, partilhas e exposição de fotografias como maneira de celebrar a saúde das mulheres durante o mês de outubro, mês da campanha de prevenção ao câncer de mama. Mais informações disponíveis em: https://www.facebook.com/events/2085998375048489/?active_tab=about Acesso em fevereiro de 2019.

[4] Em 2006 a professora Maria Brigida de Miranda foi coordenadora do  projeto de pesquisa acadêmico intitulado Poéticas do Feminino e Masculino: A prática teatral na perspectiva das teorias de gênero no Centro de Artes na UDESC.

[5] O artigo de Carol Hanish The Personal Is Political, disponível aqui: http://carolhanisch.org/CHwritings/PIP.html , foi publicado inicialmente em Notes from the Second Year: Women’s Liberation em 1970. Nos anos seguintes o texto foi amplamente difundido dentro do Movimento Feminista e outros lugares, além de ser traduzido em diversas línguas.

[6] Recentemente passei a integrar um coletivo de estudos sobre o corpo gordo, o Grupo de Estudos Transdisciplinares do Corpo Gordo no Brasil, formado por pesquisadoras e pesquisadores gordos de diferentes áreas de atuação e regiões do Brasil.

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