Artigo traz apontamentos comparativos na representação política de mulheres, negros e LGBTI+ 2016-2020; É o primeiro de uma série de três textos que vai abordar a diversidade nas eleições 2020.

Por Andressa Mourão Duarte, Izabel Belloc e Joanna Burigo.

Desde o encerramento da contagem de votos e a subsequente celebração, visível sobretudo nas redes sociais, de vitórias de candidaturas negras e LGBTI nas eleições municipais de 2020, viemos nos questionando se poderíamos afirmar, com convicção, que este foi um pleito histórico, resultando na maior diversidade nos quadros de representação política institucional no Brasil. Como as convicções não devem se sustentar sem provas, passamos os dias desde então explorando, organizando e analisando dados oficiais do TSE em arranjo com dados oriundos de organizações independentes da sociedade civil, com vistas a acumular evidências que confirmariam, ou não, esta hipótese.

O que vamos apresentar nesta série de artigos compostos especialmente para o portal Catarinas é uma análise dos resultados a partir de uma perspectiva feminista, que quer celebrar conquistas mas reconhece não poder perder a dimensão do quanto ainda é preciso para que a pluralidade de corpos nos quadros institucionais do Estado correspondam à multiplicidade dos corpos que compõem o Brasil.

Neste artigo, o primeiro de uma série de três, constam um panorama dos dados e informações sobre escopo e metodologia, bem como comentários preliminares sobre a investigação dos resultados por raça e sexo/gênero/sexualidade; no segundo, aprofundaremos a investigação e desdobraremos análises propriamente ditas sobre raça e sexo/gênero/sexualidade em comparativos entre 2016 e 2020; no terceiro e último artigo estenderemos a pesquisa para algumas reflexões surgidas na esteira de casos emblemáticos, e apontamos conclusões e recomendações. A pesquisa é centrada em capitais, com menções pontuais que entendemos como relevantes no interior do país, sobretudo no Rio Grande do Sul, onde as autoras se situam.

BRASIL, RAÇA E SEXO/GÊNERO NAS ELEIÇÕES 2020:

Falar em representatividade na política remete à noção de representação de grupos sociais em espaços de poder político. Remete também às eleições, forma constitucional, no Brasil, de escolha de ocupantes dos principais cargos do Poder Legislativo (Vereadoras e Vereadores Municipais, Deputadas e Deputados Estaduais, Distritais e Federais, Senadoras e Senadores da República) e do Poder Executivo (Prefeitas e Prefeitos Municipais, Governadoras e Governadores Estaduais, Presidenta e Presidente da República). Nas eleições de 2020, que compreendem as fases de registro de candidaturas, campanha eleitoral, votação, apuração e declaração de resultados, foram à eleição todos os cargos do âmbito municipal. Este é o universo de pesquisa deste artigo. As pessoas que lançaram candidaturas, quais foram eleitas e o que isso significa em termos de diversidade/representatividade na ocupação de espaços de poder político, a partir de um enfoque de raça e sexo/gênero em dados combinados, foram os objetos de nossa pergunta central.

O ponto de partida para a resposta exigiu ir em busca de indicadores demográficos (populacionais) e eleitorais, desagregados e cruzados por raça e sexo/gênero. Nossas fontes de dados foram os seguintes repositórios estatísticos e universos: (1) o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, para indicadores demográficos: Censo Demográfico 2010 e PNAD Contínua Anual 2019; e (2) o Tribunal Superior Eleitoral – TSE, para indicadores eleitorais das Eleições 2016 e 2020. A análise compreende dados das Eleições Municipais Ordinárias de 2016 e 2020 e, neste universo, selecionamos candidaturas “aptas” e resultados “eleitos”, “eleitos por QP” e “eleitos por média”. Obviamente não fazem parte da análise os resultados para “eleitos” no segundo turno das Eleições 2020.

Uma dificuldade encontrada foi a falta de dados demográficos oficiais atuais para mulheres e homens indígenas, amarelos e sem declaração de cor/raça, o que explica a utilização de dados do Censo Demográfico de 2010 para esses grupos sociais. Já para mulheres travestis e homens transexuais não existem dados demográficos oficiais. Quanto aos dados eleitorais, apontamos a falta de dados oficiais desagregados para sexualidade e identidade de gênero de candidatas e candidatos. Por fim, foram comparados dados apenas para as Eleições 2016 e 2020 pela inexistência destes de forma desagregada por cor/raça em eleições municipais anteriores, o que impede a construção de uma série histórica mais larga.

Arte: Beatriz Lago sobre dados compilados pelas autoras; tabelas por Izabel Belloc.

Um início de resposta veio na organização dos dados selecionados em comparações de quantitativos e proporções de (1) candidaturas, resultados e variações nas Eleições 2016 e 2020, por raça e sexo/gênero, e (2) candidaturas, resultados e variações para candidaturas travestis e transexuais nas Eleições 2016 e 2020.

Comparando candidaturas e resultados nas eleições de  2016 e 2020 para os cargos de Prefeito/a, Vice-Prefeito/a e Vereador/a (tabela acima), podemos observar que houve um aumento significativo de candidaturas, sobretudo no que diz respeito à autodeclaração racial de pretos/as e pardos/as.

O percentual de candidatura das mulheres brancas no pleito de 2020 também é superior aos números apresentados nas eleições municipais de 2016. Por outro lado, é possível observar que, apesar do aumento entre as candidaturas de mulheres e negros, os homens brancos continuam maioria tanto no registro de candidaturas como na ocupação de cargos eletivos.

Arte: Beatriz Lago sobre dados compilados pelas autoras; tabelas por Izabel Belloc.

No entanto, é preciso sublinhar que os grupos sociais que mais aumentaram espaço político foram as mulheres indígenas e pretas.

No período, mulheres indígenas passaram de 432 para 695 candidaturas (+ 44,44%) e de 24 para 32 cargos conquistados (+ 66,67%); já as mulheres pretas passaram de 12.331 para 19.223 candidaturas (+ 36,12%) e de 358 para 539 cargos conquistados (+ 51,92%). O que chama a atenção é a diminuição de espaço dos homens brancos, que diminuíram 3.333 cargos no mesmo período, uma perda de espaço de 8,60%, de 2016 para 2020.

Arte: Beatriz Lago sobre dados compilados pelas autoras; tabelas por Izabel Belloc.

Os dados para candidaturas de pessoas travestis e transexuais, seus resultados e variações não puderam ser integrados à primeira tabela porque o TSE não fornece dados eleitorais desagregados por identidade de gênero. Em que pese o precioso e necessário trabalho da Associação Nacional de Travestis e Transexuais – ANTRA, na identificação dessas candidaturas, os dados daí resultantes não são obtidos a partir de informação sobre autodeclaração de candidaturas no seu registro junto ao TSE. Assim, consideramos que esses dados são os quantitativos mínimos encontrados e que podem não significar o total, considerando que a pesquisa foi realizada via busca de perfis nas redes sociais.

Houve crescimento relevante em torno das candidaturas de pessoas  travestis e transexuais: de 82 candidaturas e 8 candidaturas eleitas, em 2016, para 294 candidaturas e 15 eleitas, em 2020. Embora a presença de transexuais e travestis nestas duas eleições ainda seja tímida, podemos identificar um aumento de 87,50% nos espaços ocupados por pessoas travestis e transexuais no nível eleitoral analisado.

Arte: Beatriz Lago sobre dados compilados pelas autoras; tabelas por Izabel Belloc.

A análise preliminar do panorama eleitoral de 2020 aponta que há aumento significativo de diversidade de representatividade política nos quadros institucionais no âmbito municipal, com mais mulheres indígenas e pretas e mais travestis e transexuais ocupando espaços de poder político nos municípios, a partir de janeiro de 2021. 

Arte: Beatriz Lago sobre dados compilados pelas autoras; tabelas por Izabel Belloc.

Aprofundaremos esta análise no próximo artigo desta série, mas não podemos nos despedir desta primeira parte sem antes salientarmos algo que os estudos de raça e gênero vêm demonstrando há muito tempo: em razão de sua formação histórico-política colonial e escravagista, as sociedades latino-americanas, especialmente a brasileira, foram e ainda são organizadas em sistemas de poder que estabelecem hierarquias sociais.

Nesse contexto, quem domina a cena pública, inclusive e sobretudo o poder político-institucional, é o que chamamos de “sujeito universal”: homem, branco, cisgênero, sem deficiências aparentes, de classe média ou alta. É em razão dessa noção universalizante e naturalizada deste sujeito da humanidade – o político homem branco cis – que, mesmo num regime democrático em que espaços de poder e decisão são preenchidos pelo voto direto de um eleitorado que, em sua maioria, não se parece com este sujeito, ele é a maioria dos eleitos.

O resultado das Eleições 2020 mostra que, mesmo sendo 20,16% da população, o “sujeito universal” ocupará 46% dos cargos eletivos municipais, a partir de 1º de janeiro de 2021.

GLOSSÁRIO

Candidatura apta
Candidatura que preenche os requisitos constitucionais e legais para concorrer às eleições.

Eleição municipal
Eleição de prefeitos e vice-prefeitos e de vereadores e, onde houver, de juízes de paz. (do Glossário Eleitoral Brasileiro)

Eleição ordinária
Eleição que ocorre em sua época regular, conforme previsto na Constituição Federal.

Eleição suplementar
As eleições suplementares estão previstas no art. 187, 201 e 212 do Código Eleitoral, caracterizando-se pela renovação das eleições apenas em algumas seções eleitorais. Ocorre nos casos em que a Junta Apuradora verificar que os votos das seções anuladas e daquelas cujos eleitores foram impedidos de votar poderão alterar a representação de qualquer partido ou classificação de candidato eleito pelo princípio majoritário. Nestes casos, fará imediata comunicação do fato ao Tribunal Regional, que marcará, se for o caso, dia para a renovação da votação naquelas seções. Diferencia-se do instituto da renovação das eleições (art. 224 do CE), pois esta ocorrerá quando a nulidade atingir a mais de metade dos votos da circunscrição eleitoral, que será o país nas eleições presidenciais, o Estado nas eleições federais e estaduais, ou o município nas eleições municipais. (do Glossário Eleitoral Brasileiro)

Média (eleição por)
Valor obtido da divisão do número de votos válidos a cada partido político ou coligação (eleições anteriores a 2020) pelo número de vagas obtidas no cálculo do quociente partidário (QP) mais um (+1). Serve para definir a distribuição das vagas restantes – sobras – que caberão a cada legenda entre todos os partidos participantes do pleito. O detalhamento do cálculo está previsto no art. 109 e seguintes do Código Eleitoral. Historicamente, até o advento da Lei n° 9.504/1997, os votos em branco eram computados, bem como os dados às coligações partidárias (atualmente sequer são permitidas coligações nas eleições proporcionais, conforme a EC n° 97/2017, que alterou a redação do art. 17, § 1° da CF/1988). (do Glossário Eleitoral Brasileiro)

QP – Quociente partidário (eleição por)
Valor obtido da divisão do número de votos válidos dado ao partido ou coligação (eleições anteriores a 2020) pelo quociente eleitoral (QE). Serve para definir o número inicial de vagas que caberá a cada partido ou coligação (eleições anteriores a 2020) que tenha alcançado o quociente eleitoral (QE). O detalhamento do cálculo está previsto no Código Eleitoral. (do Glossário Eleitoral Brasileiro)

Paridade
Segundo Niki Johnson, Cecilia Rocha e Marcela Schenck, em seu texto Hacia una Democracia Paritaria. La Representación Política de las Mujeres, a União Europeia define paridade como “taxas de participação similares ou equivalentes (entre 40% e 60%) de mulheres e homens no conjunto do processo democrático” (traduzido).

Para Nancy Fraser, em seu libro Fortunas del Feminismo, “a justiça exige paridade participativa em todos os eixos principais de diferenciação social, não só o gênero, mas também a «raça», a etnia, a sexualidade, a religião e a nacionalidade” (traduzido).

A Declaração das Mulheres Afrodescendentes e Indígenas da América Latina, o Caribe e a Diáspora presentes na XIII Conferência Regional sobre a Mulher (realizada em Montevidéu, Uruguai, em outubro de 2016) exigiu: “Que seja garantida nossa representação como mulheres afrodescendentes e indígenas nos espaços de tomada de decisões políticas e desenho de políticas públicas específicas. Ou seja, que a paridade também seja uma realidade para nós.”

Sujeita Universal
Yuderkys Espinoza Miñoso (2017), em seu artigo La política sexual radical autónoma, sus debates internos y su crítica a la ideología de la diversidad sexual, se refere a um “sujeito mulher universal modulado e caracterizado pelas hegemonias branco-burguesas-hetero das práticas e da teoria feminista”.

Sujeito Universal
Na edição mexicana, de 2016, d’O El Segundo Sexo, Simone de Beauvoir (1949) define o sujeito universal como o homem que “representa ao mesmo tempo o positivo e o neutro”; “um tipo humano absoluto que é o tipo masculino”; “Ele é o  Sujeito, ele é o Absoluto; ela é o Outro” (traduzido).

Já a jurista costarriquenha Alda Facio (2009), em seu artigo Metodología para el análisis de género del fenómeno legal, identifica o sujeito universal no “homem ocidental, branco, cristão, heterossexual, sem deficiências visíveis” (traduzido); e complementa afirmando que esses homens se mostram como se fossem “totalmente objetivos, neutros e universalmente válidos, como a posição que ocupa esse ser privilegiado fosse o parâmetro do humano” (traduzido).

Érica Antunes Pereira (2012), em seu artigo Construção social do sujeito feminino e hermenêutica do cotidiano: reflexões teóricas, refere uma “categoria do sujeito universal da História – macho, branco, civilizado do Primeiro Mundo e em posição de comando”.

Por fim, Margareth Rago (1998) afirma, em seu artigo Epistemologia Feminista, Gênero e História, “um conceito universal de homem, que remete ao branco-heterossexual-civilizado-do-Primeiro-Mundo, deixando-se de lado todos aqueles que escapam deste modelo de referência”.

*Autoras: Andressa Mourão Duarte é cientista social e mestranda em Ciências Sociais (UFSM/BR); Izabel Belloc é advogada e mestra em Gênero e Políticas de Igualdade (FLACSO/UY); Joanna Burigo é comunicadora e professora feminista, mestra em Gênero, Mídia e Cultura (LSE/UK).

**Artigo atualizado com a inclusão do verbete sujeita universal, em 6 de outubro de 2021, às 14h03.

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