Sem o respaldo da lei, mulheres que vivem o sonho da maternidade compartilhada em uma relação homoafetiva acabam se tornando vítimas de alienação parental

Otávia* quis ser mãe. Sua companheira, Manoela*, também quis ser mãe e tinha o sonho de gestar, então as duas entraram em acordo e começaram juntas a pesquisar sobre inseminação in vitro. Foram dois anos de um processo moroso e tentativas frustradas até que o primeiro teste de gravidez desse positivo e as futuras mães pudessem descansar. 

A bebê nasceu nos Estados Unidos, como suas mães sonharam. Manoela precisou viajar aos sete meses de gestação para conseguir entrar no país. Otávia, que é professora de escola pública em Belo Horizonte, diz que teve de trabalhar mais 20 dias até poder voar ao encontro de sua família. Depois do nascimento, as três voltaram juntas para o Brasil.

Os problemas entre o casal começaram logo depois, quando Otávia pediu para registrar a filha e recebeu uma negativa de sua companheira. Manoela argumentava que o documento era desnecessário e repetia que a bebê havia saído de seu ventre. Otávia se sentia mal. Nos piores dias, pensava que se a pequena adoecesse, não teria o direito de acompanhá-la ao hospital. Nos melhores, se dava conta de que sequer podia sair de férias com a criança. 

Sem consenso, elas romperam a relação assim que a bebê completou oito meses, mas continuaram morando juntas como vinham fazendo nos últimos quatro anos. Por um tempo, funcionou: elas compartilharam o teto e as responsabilidades durante três anos e meio. Depois, Otávia se mudou para um apartamento próximo, para continuar perto da filha.

Aos quatro anos, Vitória* tinha dois quartos e duas mães. Todos os dias, uma a levava para a escola e a outra buscava, conforme mandava o combinado. A ideia era fazer com que a pequena não sentisse a separação de maneira tão brusca, mas o cenário começou a mudar quando Otávia entrou na Justiça para que sua maternidade finalmente fosse reconhecida. 

Quando a primeira intimação judicial chegou, Manoela se zangou e cortou contato. Otávia foi proibida de ver a filha e soube, por meio de uma professora, que no Dia das Mães do ano passado ela seria levada para o exterior, mas não pôde fazer nada. Sua família e seus amigos também tentaram dialogar com Manoela e foram prontamente bloqueados.

Tempos depois, Manoela voltou para o Brasil, e todas as vezes que era procurada pela ex, registrava um novo boletim de ocorrência por importunação e anexava ao processo. O caso segue na Justiça há quase dois anos, sem solução. Otávia não vê a filha há um ano.

“Estou passando por tratamento psicológico e tomando medicamento para dormir, porque é uma dor muito grande não poder estar perto da sua filha e não saber o que a justiça vai decidir”, lamenta.

“Foram quase cinco anos de convivência e ela [Manoela] me tirou esse direito sem se preocupar com as consequências para mim e para a minha filha. Para a minha filha, eu simplesmente sumi – ela não sabe que está sofrendo alienação parental”.

Desigualdades sociais, de classe e de gênero

No estado ao lado, São Paulo, Raquel Melo e Raquel Souza Santos também estão vivendo a experiência da dupla maternidade. Elas estão casadas há 15 anos e decidiram ser mães em 2019, quando começaram a buscar informação sobre o assunto e perceberam que não seria simples. “O primeiro choque foi financeiro. É muito caro, uma verdadeira violação de direitos reprodutivos. Quem tem dinheiro pra pagar inseminação?”, questiona Raquel Melo. 

O casal se interessou pelo procedimento realizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas se deu conta de que a fila era muito grande e o tempo de espera seria incompatível com o relógio biológico de Raquel Souza Santos, a mãe interessada em engravidar. Por isso, elas fizeram um planejamento financeiro e optaram pelo serviço privado.

Mesmo pagando pelo procedimento, Raquel Melo conta que houve desconforto. “A minha companheira é negra. Fora ela, ninguém na clínica era negro, a não ser os funcionários”, observa. “E me refiro aos funcionários de base, os médicos eram todos brancos. Sem dúvida, é um processo muito marcado pelas desigualdades sociais, de classe e de gênero”.

Depois de um ano e meio de tentativas, sua companheira engravidou de gêmeos e os exames e idas à maternidade se tornaram paisagem comum do cotidiano – experiência atravessada pelo olhar heteronormativo. “Muitas vezes eu passei pela situação de chegar na maternidade e me perguntarem quem eu era e o que estava fazendo lá. A invisibilidade é enorme pra mãe que não é gestante. A gente tem que se afirmar o tempo inteiro, senão fica de fora. Por exemplo: aconteceu de, após o ultrassom, o médico não olhar na minha cara”.

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Joaquim e Tereza nasceram no dia 9 de fevereiro | Foto: arquivo pessoal.

Cansada do sentimento de não pertencimento, ela buscou apoio num grupo de dupla maternidade e o encontrou, mas também se deparou com outras problemáticas. “Eu percebi que havia um trauma muito grande em mães que não conseguem registrar os filhos”, relata Raquel Melo. “Para fazer o registro, seria preciso ter a certidão de criança nascida, a certidão de casamento e uma carta da clínica de reprodução humana que fez o atendimento atestando que fiz parte desse processo e sou a outra mãe. Veja o nível de desrespeito”.

O medo a acompanhou durante quase toda a gestação de sua companheira e ela chegou a deixar uma advogada de sobreaviso, caso tivesse problemas com o cartório.

“Eu pensava: como assim eu preciso de um papel assinado por alguém que eu nunca vi me autorizando a registrar os meus filhos?”, desabafa. “É muito violento. Tudo gera insegurança.”

Para o alívio das duas mães, após o nascimento, os gêmeos puderam ser registrados por ambas. Quando conversei com Melo, eles haviam acabado de completar 41 dias de vida e estavam saudáveis. Ela estava feliz e cansada ao mesmo tempo, saindo de uma reunião de trabalho, pois não teve o direito à licença maternidade garantido. Para segurar as pontas, o jeito foi mobilizar uma rede de apoio composta pelas mulheres das famílias.

“Baby boom”

“Eu fui a primeira mulher do Brasil a ter um filho por inseminação artificial, com doadores anônimos, dentro de uma relação homoafetiva”, compartilha a carioca Ana Lodi, diretora-presidenta do Instituto Semear Diversidade. Hoje, ela vive em Santa Catarina. “Eu até conheço casais de mulheres que têm filhos mais velhos que o meu, mas elas fizeram o procedimento fora do país, trouxeram de casamentos com homens ou adotaram”.

Seu primeiro filho nasceu em 2001. A segunda filha veio cinco anos depois, em 2006. “Eu brinco que não tive problema pra sair do armário porque nunca estive nele. O meu problema era não ter filhos… Eu não tinha referência”, relembra. “Um dia, uma terapeuta me disse que eu podia, sim, ser mãe, só precisava pensar no método – e eu fui amadurecendo essa ideia ao longo dos anos. Depois que conquistei a minha estabilidade financeira, resolvi gestar o primeiro filho e a minha ex-mulher gestou a segunda. O doador foi o mesmo”.

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André e Anna Laura posam para a foto com Ana Lodi e Letícia (meio), sua esposa | Foto: arquivo pessoal.

Na época, a novidade era tamanha que quando o casal foi descoberto pela mídia, concedeu dezenas de entrevistas. Hoje, o cenário não é tão incomum assim: de acordo com a Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg/BR), entre 2013 e fevereiro deste ano foram realizados 47.124 registros de crianças por duas mães em todo o Brasil. 

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O estado com maior número de registros é São Paulo, somando 11.194, o equivalente a 23,7% do total. Santa Catarina ocupa o 12º lugar no ranking, com 1.207 registros, ou seja, 2,7%. No mesmo período, os casamentos homoafetivos entre mulheres, em território nacional, foram 43.273, número que ultrapassa o de casamentos entre homens: 39.760.

O “baby boom”, nas palavras de Ana, ocorreu após três conquistas relevantes para a comunidade LGBTQ+: em 2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que casais homotransafetivos tinham o direito de adotar filhos juntos; em 2011, o mesmo órgão equiparou essas relações às de união estável; em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) emitiu a resolução que tornou possível o casamento civil homoafetivo no Brasil.

“A minha companheira acompanhou inseminação e parto e vice-versa, mas ainda não existia a possibilidade de fazer a certidão de nascimento com duas mães”, resgata Ana.

“Quando veio o provimento que permitiu esse registro, fomos ao cartório e o juiz mandou vistas para o Ministério Público, que foi logo perguntando sobre a união estável. A gente explicou que se casou e se separou muito antes de ser possível emitir esses documentos, mas o direito das crianças não muda. Então, eles concederam. Agora as certidões dos nossos filhos têm duas mães e quatro avós, com sobrenomes das duas famílias”.

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Foto: arquivo pessoal de Ana Lodi.

Omissão na legislação

Apesar dos avanços, ainda não alcançamos a equidade de direitos e a legislação brasileira escancara o problema. Hoje, não existe uma lei específica a respeito da dupla maternidade, portanto, casais homoafetivos precisam levar suas questões para o judiciário se quiserem buscar amparo legal por analogia.

“O que temos é um apanhado de entendimentos jurisprudenciais que permitem que esses casais se equiparem aos casais heteroafetivos no contexto do direito de família, onde o que pauta as decisões judiciais é o melhor interesse dos filhos. Sem dúvida, a legislação precisa evoluir para acompanhar a sociedade”, avalia Lázara Daniele Guidio Biondo Crocetti, advogada especialista em direitos das famílias. 

É por isso que mães como Raquel Melo encontram empecilhos para exercer seu direito à licença maternidade. “É incabível negar o direito à licença maternidade à mãe não gestante na dupla maternidade, haja vista que a mãe não gestante também é mãe e que não pode ser discriminada por se tratar de uma maternidade homoafetiva”, explica a especialista.

“De toda forma, o casal precisará recorrer ao poder judiciário, porque o INSS dificilmente reconhecerá o direito ao benefício administrativamente, principalmente quando um único nascimento for fato gerador para o deferimento de duas licenças maternidade.”

Quando se trata do registro de nascimento da criança na dupla maternidade, o provimento 63/2017 do Conselho Nacional de Justiça prevê o modelo para lavratura do registro em caso de reprodução assistida, desde que todos os documentos exigidos estejam em mãos. Uma falha pode gerar anos de desgaste, como vem ocorrendo no caso de Otávia e Manoela, que nunca se casaram nem assinaram o documento de união estável.

Em busca de sanar o problema, a deputada Maria do Rosário (PT-RS) propôs o Projeto de Lei 5423/20, que garante o direito de registro de dupla maternidade ou paternidade a casais homoafetivos que tiverem filhos, independentemente do estado civil. O PL segue em trâmite na Câmara dos Deputados. Você pode deixar sua opinião sobre ele clicando aqui.

Também não se pode deixar de levar em consideração que a inseminação realizada em clínicas de reprodução humana demanda um gasto incompatível com a realidade socioeconômica dos brasileiros, alargando as desigualdades sociais e raciais. 

O Sistema Único de Saúde tem um programa de reprodução assistida, mas o tamanho da fila gera frustrações. De acordo com o SUS, o tempo médio de espera é de quatro anos, devido à escassez de centros de atendimento conveniados: das 141 clínicas de fertilização in vitro do Brasil, apenas 13 atendem pelo Sistema Único de Saúde. O infortúnio é que cada ano é precioso quando alguém deseja engravidar. Para uma mulher de 30 anos, a taxa de sucesso do procedimento é de 34%. Já aos 45 anos, essa taxa cai para 12%. 

Além disso, muitas vezes é preciso se deslocar para ter acesso à fertilização, afinal, das 27 unidades federativas brasileiras, somente oito oferecem atendimento gratuito ou a “preço razoável”, conforme indicação do SUS. São elas: Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Distrito Federal, Goiás, Bahia, Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul.

Para as famílias pobres, a inseminação caseira acaba parecendo a única via de acesso, mas pode levar a sanções, pois o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Lei de Transplante de Órgãos proíbem a comercialização de gametas (óvulos e espermatozoides). Em outros casos, falta a garantia de que o material genético foi devidamente doado.

“A parentalidade é um direito da criança e, no meu entendimento, negar o conhecimento e o registro dessa paternidade sem que se tenha certeza de que se trata de um doador desinteressado, como ocorre na reprodução assistida, me parece ferir o Estatuto da Criança e do Adolescente e configurar uma prática de alienação parental”, comenta Crocetti.

Por fim, existem os casos de sucesso em que o judiciário entendeu que negar o registro da dupla maternidade nas reproduções caseiras fere o princípio da isonomia, mas não sem dor de cabeça.

“É um processo desgastante, haja vista o caráter cisheteronormativo e branco do poder judiciário”, pontuam as advogadas Márcia Regina F. de V. Nascimento e Mariana Septimio Rosa de Souza e a bacharel em direito Jozeli Rosa de Souza em artigo sobre o tema.

“Em uma sociedade estruturada no racismo e pautada pela misoginia, pelo sexismo e pelo machismo, as mulheres negras e as outras mulheridades são constantemente confrontadas pela sua existência. Quando esses atravessamentos encontram a diversidade sexual, é possível perceber como o ódio a mulheres é naturalizado e como ser mulher e amar outra mulher é desafiador em um sistema que nos odeia e ensina o auto-ódio”, finalizam.

*Nomes fictícios adotados para preservar a identidade das envolvidas.

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Palavras-chave:
  • Jess Carvalho

    Jess Carvalho é jornalista e pesquisadora da bissexualidade. Atua como editora, repórter e colunista no Portal Catarinas...

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